Atividade de investigação em Criminologia
O que motivou a escolha pelas áreas da economia e da criminologia? Quais foram os principais marcos na sua trajetória académica e científica?
Tenho por hábito dizer que me encontro numa segunda vida académica e científica, iniciada sensivelmente há cerca de quinze anos. A primeira vida, há cerca de trinta anos. A primeira na Economia, e agora na Criminologia. A minha trajetória académica e científica tem sido marcada pela busca de uma compreensão da tomada de decisão, o que a determina e que impacto tem em nós mesmos, no grupo em que nos integramos, nas pessoas e instituições com quem, direta e indiretamente, interagimos. Além disso, tenho muito interesse em tudo quanto seja a avaliação de intervenções no sistema de justiça e no sistema de segurança. Na “primeira vida”, a minha atenção esteve dirigida para as decisões em contexto de escassez. Na “segunda vida”, concentro-me nas decisões sobre comportamentos que causam dano às outras pessoas ou ao meio ambiente. Na Economia, os meus interesses começaram por se prender a questões da macroeconomia e sobretudo da política monetária, muito embora crescente e rapidamente mais voltadas para a tentativa de explicar a tomada de decisão individual e a tomada de decisão em grupo, assim como o modo como estas se repercutem sobre os grandes agregados macroeconómicos. Na Criminologia, o meu interesse tem vindo a solidificar em torno da avaliação de programas de intervenção no sistema de justiça e de segurança, dos custos do crime, da criminalidade económico-financeira, e ainda em torno da modelização da interação entre indivíduos no planeamento, na execução e na ocultação de atividade criminal, num contexto de criminalidade organizada e grupal. Apesar de me referir a esta trajetória como sendo composta por duas vidas, na verdade, é um percurso de fortíssima continuidade fundada em elementos comuns: a decisão humana, o recurso a método científico, a análise estatística; e o aproveitamento de contributos quantitativos tomados de empréstimo da matemática, com os quais podemos examinar a interação entre agentes, como seja a teoria dos jogos ou a análise de redes.
Ao longo da carreira científica, houve algum momento ou experiência que redefiniu a sua perspetiva sobre estas áreas de estudo? Poderia compartilhar essa experiência connosco?
Não diria tanto a perspetiva sobre as áreas de estudo da Economia e da Criminologia, mas sim a forma como trabalho dentro dos quadros teóricos. Se nos primeiros anos, procurava discutir simplesmente em que medida os dados empíricos permitiam confirmar ou infirmar as previsões para as quais os modelos teóricos apontavam, hoje e cada vez mais, sou levado a discutir criticamente os pressupostos dos modelos teóricos - que, afinal, não se aplicam aos dados concretos - e a procurar contribuir para a redefinição desses quadros teóricos. Acredito que seja uma evolução natural após alguma experiência acumulada, com as muitas leituras que o tempo permitiu e com o contacto com colegas extremamente luminosos de áreas transversais, com os quais tenho tido a grata felicidade de interagir ou de trabalhar em projetos conjuntos produzindo-se resultados muito interessantes, hoje e cada vez mais, no domínio dos comportamentos desviantes e na reação social aos mesmos.
Alguns dos seus atuais interesses de investigação entrecruzam a Criminologia com a Análise Económica do Direito. Poderia partilhar com a comunidade científica da U.Porto de que forma perspetiva a evolução destas áreas de estudo num futuro próximo, particularmente em matéria de metodologias e temas emergentes?
A Análise Económica do Direito aplica os princípios da Economia na avaliação da lei e do impacto das suas alterações, numa perspetiva de análise de eficiência e da criação de incentivos que afetam o comportamento e a tomada de decisão, de cada indivíduo, e de grupos de indivíduos. Cruza-se com a Criminologia quando o objeto corresponde ao crime, aos seus agentes e à correspondente reação social, podendo ser aplicada quando, por exemplo, se pretende analisar a eficiência de meios de dissuasão alternativos, ou se procura estimar os efeitos de um programa de intervenção, no sistema de justiça e no sistema de segurança ou junto de populações vulneráveis, ou ainda se pretende estimar os custos do crime. Existe espaço de crescimento para o cruzamento da Análise Económica do Direito com a Criminologia, designadamente no estudo das interações que se produzem entre um agente e o sistema formal de controlo, ou ainda entre indivíduos que resolvem, de forma regular e sistemática, planear, executar e ocultar crimes, na rede de Internet ou da Darknet. No entanto, o exercício de investigação torna-se ainda mais interessante com a consideração da inteligência artificial, a partir do momento que certos tipos de ações na rede são executados por bots e não diretamente por humanos. Nesse novo quadro mais complexo, só considerando ser a máquina otimizadora na sua atuação, será possível estudar a eficácia e a eficiência de melhores estratégias de combate ao crime. (A designação de “bot” corresponde a uma aplicação informática que desempenha tarefas automatizadas, nomeadamente na Internet).
De que forma pode a investigação científica, nestas áreas das ciências sociais, contribuir para a criação de políticas públicas mais eficazes e equitativas, simultaneamente promovendo a justiça social?
A implementação de uma política pública é sempre uma intervenção sobre o estado corrente no modo como os indivíduos interagem em sociedade. Por isso, importa perceber como estes a vão receber e como vão reagir. Importa prever se o choque provocado pela política desencadeia o surgimento de comportamentos delinquentes ou o agudizar de alguns outros já existentes, ou se, pelo contrário e desejavelmente, conseguimos bloquear ou minimizar algum fenómeno criminal, a par de se dever procurar saber se a sociedade beneficiará de um ganho líquido de bem-estar que se faça acompanhar de uma promoção da justiça social. Baseando-nos na recolha de dados empíricos, no recurso a conhecimentos acumulados pela Criminologia e a instrumentos de Análise Económica do Direito, e na análise quantitativa e qualitativa de dados, podemos avaliar cientificamente, por exemplo, um programa de proteção de vítimas de um determinado crime, propondo aos decisores políticas baseadas na evidência. A Escola de Criminologia tem realizado estudos desta natureza, respondendo a pedidos da própria comunidade e de entidades do sistema de justiça e do sistema de segurança. Esta abordagem integrada não só promove a eficiência na atuação pública, como também pode contribuir para a justiça social e para o tratamento equitativo de pessoas que estejam em circunstâncias de especial vulnerabilidade. Trata-se, aliás, de um fim que valoriza muito o trabalho que se pode fazer em Criminologia, e que deve ser conhecido, numa altura em que esta área de conhecimento merece ser mais reconhecida no nosso país.
Poder-nos-ia dar a conhecer algum projeto que lhe seja particularmente caro e que tenha tido, ou espere vir a ter, um impacto significativo tanto na comunidade científica como na sociedade em geral?
Gostaria de relevar três projetos.
Uma das áreas de investigação da Criminologia em que temos participado, e em que a Escola de Criminologia começa a ter já alguma experiência acumulada, tem que ver com a análise da resposta judicial a certos tipos de crime. Nesse âmbito, um dos projetos consistiu no exame de decisões judiciais produzidas sobre o crime de violência doméstica, tendo-se examinado os agentes (vítima e presumível agressor), o crime e suas circunstâncias, a decisão judicial, e os fatores, explicitamente ou não considerados na lei, que na análise de dados se revelaram como determinantes daquela decisão. Foram produzidas recomendações que informam cientificamente ações de formação de magistrados e que podem levar mesmo ao desenho de propostas de alteração da lei, beneficiando a sociedade.
No contexto de estudos atentos à tomada de decisão, gostaria de salientar um projeto de desenvolvimento de um modelo teórico de decisão estratégica que pretendeu analisar, de forma comparativa, a eficácia de instrumentos de dissuasão do cometimento de uma ilicitude no contexto de crimes contra a natureza, mais especificamente nas pescas. Concluído o modelo teórico, as suas conclusões carecem agora de validação empírica. Finalmente, e numa outra esfera de conhecimento no domínio da Criminologia, desenvolvemos um projeto focado em comportamentos desonestos no empreendedorismo. Nesse projeto, construiu-se uma escala de medida desse tipo de comportamentos. Identificaram-se fatores pessoais e contextuais de risco e produziu-se um manual de boas práticas com base em conhecimentos criminológicos e organizacionais para aplicar em contexto de incubação de iniciativas de empreendedorismo, beneficiando todo o ecossistema empreendedor.
Atualmente assume a direção da Escola de Criminologia da FDUP. Que pistas de investigação estão especialmente na ordem do dia, na área específica da criminologia? Há alguma temática que, na sua opinião, merece destacar?
O fenómeno criminal é diverso, não sendo possível destacar apenas uma temática. A Escola de Criminologia pretende continuar a afirmar-se como o centro do estudo do comportamento desviante em Portugal e, por isso, está atenta aos desafios mais recentes com que a sociedade se confronta e em que é requerida uma resposta cientificamente fundada. Estamos, por isso, muito atentos ao fenómeno criminal que acontece no lugar em que uma parte muito significativa das pessoas se movimenta e que é : a grande rede de Internet. Para além de se dever compreender as variadas práticas de ilicitude que nesse contexto têm lugar, os agentes que aí atuam, o modus operandi, a vitimização e os comportamentos de risco e de evitamento, também é prestada atenção à necessidade de se identificarem regularidades na forma como os ofensores interagem com o contexto, com os pares, e com o sistema formal de controlo minimamente existente, alargando-se à consideração dos novos desafios trazidos pela inteligência artificial e pelo big data.
Este foco não pode, entretanto, prejudicar a atenção que deve continuar a ser dada ao estudo avaliativo de intervenções junto de ofensores, de vítimas e outras populações especialmente vulneráveis, e de outras formas de intervenção no sistema de justiça e no sistema de segurança, à reinserção na sociedade após reclusão, aos comportamentos aditivos e à sua relação com o cometimento de crimes, aos crimes contra a natureza, aos demais crimes de colarinho branco, à criminalidade grupal e redes criminais, transversal ao contexto mais presencial e ao contexto ciber.
A nível internacional, já integrou o Conselho Executivo da Sociedade Europeia de Criminologia, da qual continua a ser, atualmente, um membro ativo. Na sua opinião, o que pode o nosso país aprender, quiçá implementar, de acordo com as melhores práticas internacionais?
Na minha perspetiva, a criação de conhecimento deve ter como objetivo responder a problemas e necessidades da sociedade. Mas isso exige que esta, ou os seus representantes políticos, procurem aplicar esse conhecimento em benefício de todos, sobretudo porque grande parte da atividade científica é financiada com fundos públicos. A meu ver, é aqui que reside a grande questão, e poucos são os Estados em que isso funciona bem. Por isso, não falarei de melhores práticas internacionais, mas sim universais. Vamos a um exemplo. Admitamos que investigadores realizam a avaliação científica de uma prática de intervenção com vítimas ou com um grupo especialmente vulnerável da sociedade. Recolhem-se dados, produz-se o estudo. Conclui-se que parte daquela intervenção é positiva, mas que urge mudar outras partes, convidando a medidas urgentes de natureza e interesse público. Produzem-se relatórios técnicos, que são enviados para responsáveis políticos, relevando-se a necessidade de intervir. Faz-se uma apresentação pública do estudo e comenta-se em notícias. Entretanto, conseguem-se publicações científicas internacionais e respetivas citações, mas, quando se procura o aproveitamento para benefício público, com frequência nada acontece. Sou especialmente muito crítico nesta questão. Penso que continua a existir falta de cultura científica de quem toma decisões com impacto público, em parte, admito, por eventual deficiente habilidade na comunicação dos resultados científicos, mas é notória a perspetiva muito limitada com que se pensa a intervenção, numa lógica que facilmente reduz a zero o valor atual dos benefícios futuros de alterações que hoje poderiam ser realizadas, de forma informada, com base em conhecimento científico.
Para finalizar, gostaríamos de explorar um lado mais pessoal. Para lá da docência e da investigação (que se desdobram em muitos outros cargos e afiliações), o que o ajuda a navegar uma carreira científica tão preenchida? Há algum hobby que mantenha, por exemplo?
A atividade científica, com participação em grupos de investigação e trabalho em diversos projetos, alguns muito exigentes em termos de tempo e de atenção, a par de uma atividade académica repartida entre a preparação de aulas, apoio e orientação de estudantes, bem como a gestão académica, distribuída pela direção da Escola de Criminologia e pela participação em diversos órgãos de gestão da Faculdade tem sido muito absorvente. Assim, o pouco tempo disponível fica reservado para cuidar de necessidades da família, muitas vezes prejudicada nesta vida profissional que rapidamente se confunde com a pessoal e que extravasa os limites temporais, espaciais e mentais que estariam naturalmente estabelecidos por aquilo que é uma relação contratual a nível laboral.