(entrevista em português do Brasil, país de residência da entrevistada)
A Carla foi estudante de licenciatura, mestrado e doutoramento na FADEUP. Quer falar-nos do seu percurso? O que tem feito após concluir a sua licenciatura? Durante a licenciatura, fiz a opção de voleibol e, ao concluir o curso, já saí como treinadora.. Paralelamente, fui autorizada a assistir às aulas de Recreação e Lazer. Dessa forma, ao me formar na FCDEF (atualmente FADEUP), já atuava como treinadora de minivoleibol das iniciadas femininas do Sporting Clube de Espinho (SCE) e como professora de ginástica aeróbica em diversos locais no Porto e em Espinho. Devido à baixa remuneração como treinadora de voleibol, acabei me dedicando ao fitness e montei meu próprio ginásio em Espinho, num espaço de uma escola pública, onde dava aulas de aeróbica, ginástica para a terceira idade e dança aeróbica, até decidir me mudar para o Brasil. Em 1997, estava trabalhando na escola Dr. Manuel Gomes de Almeida e, nas férias, vim ao Brasil, onde conheci aquele que se tornaria meu marido - Dario era amigo da esposa do Prof. Roberto Santos da UERJ, que fez o Doutorado na FCDEF e residiu na minha cidade, Espinho. Nesse mesmo ano, larguei tudo em Portugal, me casei e me mudei para o Rio de Janeiro. Quando cheguei ao Brasil, trabalhei como voluntária num projeto na Vila Olímpica com o Professor Ênio Figueiredo (antigo selecionador de voleibol da seleção brasileira). Mais tarde, fiz uma novela (Hilda Furacão) e acabei no Banco UNIBANCO, até engravidar da minha primeira filha. No Brasil, eu não tinha rede familiar e, por isso, a opção de trabalhar e cuidar de filho é ingrata. Cheguei a trabalhar com vendas em grandes grifes cariocas e até montei uma empresa de moda de praia infantil. Porém, quando minha filha tinha 2 anos, minha mãe foi diagnosticada com câncer. Nessa época, fechei a empresa e voltei para Portugal. Após retornar de Portugal, ocupei outros empregos, realizei trabalho social em casas portuguesas e entidades filantrópicas, enquanto cuidava dos meus 3 filhos. Um dia, num evento do Consulado Português no Rio, onde recebíamos o Presidente da República, Dr. Cavaco Silva, encontrei o Prof. Paulo Cunha e Silva. Conversamos bastante, mas, quando ele me perguntou "O que tens feito?", respondi: “Sabe, professor, aqui ser mãe é complicado, pois não temos com quem deixar nossos filhos.” O Professor, em tom de brincadeira, respondeu: “Ah... és dondoca.” Na hora, não disse nada, mas aquilo ficou matutando na minha mente. Eu precisava provar que não era dondoca, precisava sair da minha zona de conforto e arriscar, mas levaria mais alguns anos até eu realmente dar esse passo. Em 2008, voltei a Portugal e resolvi me candidatar ao Mestrado em Gestão Esportiva (GD). Nessa época, minha filha mais velha estudava em Portugal e estava no 5º ano, o do meio tinha 6 anos e poderia ingressar na escola primária, enquanto o mais novo tinha apenas 2 anos e meio... mas eu arrisquei, e consegui ser aprovada no Mestrado em GD. Entretanto fiz o doutoramento, concluído em 2016, e hoje sou docente universitária. Porque escolheu a área do Desporto para a sua formação? Quando percebeu que era esse o caminho a seguir? Eu fui atleta de voleibol do SCE, jogava desde os 12 anos, e, mesmo durante a faculdade, sempre fui atleta das séniores do SCE. Era filha de um professor de escola primária, que foi estudante da 1ª turma de Monitores em Educação Física do Porto (tenho até a foto da turma de papai). Meu pai fazia economia em Moçambique e foi diretor da Escola de Arte e Ofícios da Moamba... mas, após o 25 de abril, tivemos de regressar a Portugal. A primeira coisa que papai fez foi colocar os 3 filhos a fazer ginástica. Lá em casa, o Desporto, a escola e a catequese eram a nossa base moral... e os 3 filhos de meus pais seguiram a opção Desporto na escola... somente minha irmã decidiu ir para Matemática no 12º ano, mas eu e meu irmão somos crias da FCDEF... e meu irmão é o Filipe André Paula da Rocha, o FILÓ (ex-jogador de futebol, estudante da FCDEF e treinador de futebol em Portugal). Quando fazia o 9º ano da opção de Desporto, o meu pai já me chamava para dar aulas de EF na escola primária de Anat, onde ele dava aulas e era diretor. Meu pai levava seus estudantes às 'corridas' com seu próprio recurso. E eu ia como sua 'adjunta'. Eu fazia o lanche e colocava a molecada no carro de papai. Logo aí, o bichinho do ensino já tinha sido passado por meus pais... pois, sempre que estes precisavam, nós íamos para a escola de um ou de outro os ajudar com suas turmas. Da ginástica, eu e minha irmã seguimos para o voleibol, e o meu irmão para o futebol. Meu pai era presidente do Clube Os Magos (Anta - Espinho)... família ligada ao Desporto. Minha mãe também tinha jogado voleibol, quando nova, pelo SCE. A Carla foi estudante dos três ciclos de estudo na FADEUP. Porque escolheu a FADEUP para a sua formação? Em relação à licenciatura, eu podia ter feito no INEF ou na Madeira, mas meus pais se opuseram. E isso é uma história bem interessante, porque eu tinha reprovado a matemática no 12º ano e, por isso, tive de fazer o exame nacional, não podendo, portanto, concorrer na primeira época. Na 2ª época, havia vaga no INEF e na Madeira, mas meus pais não me deixaram concorrer. E eu disse que ia ficar sem faculdade (ir para um instituto nunca fez parte de meus planos, nem de meus pais), pois as chances de haver vaga na 3ª época no Porto eram 1 para 1 milhão. Mas meus pais disseram para aguardar ou fazer novamente o 12º ano. Em fevereiro de 1990, meu pai morre num acidente trágico (lembrando que o acesso à universidade em 1989 foi caótico em função da famosa prova PGA, e isso atrasou todo o ano letivo). Poucas semanas após sua partida, minha madrinha me liga, dizendo que viu no JN que havia 1ª vaga na 3ª época no ISE [ndr: atual FADEUP]. As chances eram pequenas... mas sabia que minha média era superior à última pessoa que passou na 1ª época... e, sim, a vaga foi minha. Iniciei o ano letivo em abril de 1990 no antigo ISEF. É docente na área da gestão desportiva na Universidade Federal do Pará, Brasil. Como é que vê o estado atual da gestão desportiva no Brasil? Quais são os principais desafios? Trabalho com Gestão Desportiva (GD) no Brasil desde 2008, e o processo de desenvolvimento acadêmico tem sido fabuloso. Não só graças ao apoio dos Professores Pedro Sarmento e Maria José Carvalho (que formaram tantos profissionais brasileiros), como também graças a professores como Lamartine da Costa (meu co-orientador de doutorado) e Flávia Bastos da USP. Ambos formaram um time de profissionais na área da GD de grande qualidade, e hoje o Brasil colhe frutos desse trabalho. No entanto, existe um fosso entre a academia, o mundo desportivo (clubes, federações e confederações brasileiras), a política, CONFEF/CREFs e associações. Este fosso tem vindo a ser combatido através da ABRAGESP (Associação Brasileira de Gestão Esportiva) e dos profissionais da área da GD que atuam no Brasil e no exterior. No entanto, muito há ainda a fazer, quer seja seguindo o modelo de gestão esportiva europeu ou o americano. Neste momento, o Brasil tem um know-how de organização de grandes e mega eventos muito bom, mas a formação acadêmica ainda está muito voltada para a academia e pouco para o mercado. Não temos MBA, mestrados ou doutorados na área da GD. Nenhuma universidade pública oferece o curso de licenciatura em GD... somente os Institutos Tecnológicos o fazem. A EF tem saturação de cursos de licenciatura, seja público ou privado (já para não falar no EAD), mas muito generalistas e com baixa preparação para atuarem no mercado da GD. Os cursos de EF são maioritariamente meio período, o que não favorece a dedicação do estudante aos estudos. Mas precisamos de lembrar que o Brasil é continental, e a realidade 'Brasil' é 'enxergada' pelo que os estados do RJ e SP ditam. Aqui no Estado do Pará (PA), a situação é completamente diferente. Até há pouco tempo, nenhuma universidade pública oferecia a formação em Bacharel em Belém... A minha universidade é uma delas, que até 2023 se recusava a ofertar o bacharelato... e hoje tenta implementar a dupla titulação (bacharel e licenciatura). Lembrando que, para atuar nas escolas brasileiras, temos de ser licenciados, e para atuar fora da escola (como academias, clubes ou postos de saúde), temos de ser bacharéis. A realidade dos estados do norte, no quesito Desporto, é mais precária do que nos estados do nordeste, sul ou sudeste. E falar em GD é quase um insulto para alguns colegas de licenciatura em EF. O Prof. Tubino foi um dos maiores lutadores pela unificação da EF e do Desporto... mas aqui no Pará, os estudantes não ouviram falar de Tubino. Enquanto docente e também como investigadora tem centrado os seus interesses nas áreas do olimpismo e do desenvolvimento sustentável, temas centrais, aliás, da sua tese de doutoramento. Como é que o Desporto atual lida com as questões do desenvolvimento sustentável? Há uma maior preocupação? De que forma o Desporto pode ser elemento influenciador das boas práticas? Com a COP 30 chegando a Belém (em novembro deste ano), eu já fui contactada por entidades nacionais e internacionais para que possamos conectar o Desporto ao desenvolvimento sustentável. O próprio Professor Lamartine da Costa está desenvolvendo um livro sobre esta temática, a ser lançado ainda este ano. Lembrando que ele foi um dos idealizadores (junto com os Professores Marques e Bento) do livro de 1997 que a FCEEF publicou: Enviroment and Sport - An International Overview. A ONU Desporto já agendou uma reunião comigo (como coordenadora do GPEx - Grupo de Pesquisa e Extensão Gestão e Inovação Esportiva da UFPA, que eu criei em 2021) para discutirmos um evento aqui em Belém do Pará sobre Desporto e desenvolvimento sustentável. Quem tem puxado e alertado para estas questões tem sido o Comité Olímpico Internacional (COI), afinal, eles são os idealizadores do maior evento desportivo mundial (um não... quatro: Jogos Olímpicos (JO) de Verão, de Inverno, Juventude de Verão e Juventude de Inverno) e os que mais são criticados por seus 'elefantes brancos', instalações abandonadas (Atenas 2004 e Rio 2026), por impactos negativos no meio ambiente (em especial nos JO de inverno), por doping e falta de fair play (como aconteceu em Paris com espionagem no futebol feminino). Desenvolvimento sustentável não se trata apenas de meio ambiente, trata-se de cuidado com o meio ambiente através de projetos economicamente viáveis e socialmente justos... o que nem sempre acontece. Não podemos colocar todas 'as nossas fichas' na preservação ambiental e esquecer as pessoas, os mais desfavorecidos, os excluídos, o fair play ou mesmo a viabilidade económica do projeto... a cidade (ou cidades, já que as regras mudaram) não podem sair “quebradas” da organização deste mega evento. O que o COI for fazendo vai chegando às Federações e confederações internacionais e depois às nacionais e clubes... Mas a população pode desempenhar um papel crucial, como algumas cidades que votaram contra o acolhimento de JO, pois não viam benefícios advindos desta organização. A pressão social é extremamente importante. A Carla é portuguesa, mas vive há vários anos no Brasil, onde continua a manter uma forte ligação à comunidade portuguesa local, nomeadamente através de grupos associativos. O que diria a um brasileiro que tenha vontade de estudar em Portugal e na FADEUP? E o que diria a um estudante FADEUP que tenha vontade de viver uma experiência de mobilidade no Brasil? A todos que foram meus estudantes, eu sempre recomendo que estudem fora. Aos que têm condições, que façam mestrado ou doutorado na FADEUP, e, aos que não podem, que tentem estudar noutro estado, pois isso abre os horizontes. Já mandei alguns estudantes para estudarem na FADEUP e, neste momento, tenho um estudante que terminou a licenciatura e está se preparando para concorrer ao Mestrado em Atividade Física e Saúde. Minha filha é um exemplo de luso-descendente, sendo formada na FAUP. Os meus filhos frequentam cursos de engenharia química e economia e já os incentivei a irem para Portugal num ano de intercâmbio. As possibilidades que um intercâmbio dá são enormes. Os estudantes têm a oportunidade de estudarem com outros estudantes de várias nacionalidades, num local onde se fala o português (o que ajuda no caso do estudante brasileiro), de conhecerem outras culturas, de verem novas formas de olhar para um problema, de verem soluções que aqui não existem, para além, claro, que a FADEUP é a melhor faculdade de Desporto portuguesa e uma das melhores do mundo. Na minha época de estudante de licenciatura, o intercâmbio ainda não existia, mas eu tive a oportunidade de viajar pela seleção da U.Porto com a equipa de voleibol feminino ou misto. Valeu cada centavo gasto... pois pude estar sentada aos pés do muro de Berlim, logo após a sua queda, e, sendo filha de um pai comunista, me deu direito a muitas lágrimas pela tristeza do que vi e vivi nesse local. Meu pai não era mais vivo, mas queria muito que ele tivesse feito essa viagem comigo e pudesse discutir com ele como isso era bom. O que recorda com mais saudade do período que viveu como estudante FADEUP? Tenho como recordação da licenciatura o BARRACÃO e, claro, o Sr. Rui. Eu acordava cedo, pegava comboio e autocarro para ir para as aulas, e, na hora do almoço, o sono batia forte. O Sr. Rui sabia disso e nos deixava dormir nos colchões do barracão. Da época do mestrado, tenho muito a agradecer ao Prof. Sarmento e à Prof. Maria José, que me acolheram no seu gabinete, juntamente com os meus colegas Daiane (uma irmã para mim), Israel (cunhadinho), Thiago Santos (hoje docente da FADEUP), Cacá e outros tantos colegas de mestrado, que cuidavam de meus filhos para eu poder estudar e fazer os trabalhos... incrível a solidariedade. Do período do doutorado, sou grata aos meus colegas de Juiz de Fora: Guto, Edson, Carneirinho, Marcelo e Boschi. Recorda-se de alguma história que a tenha marcado enquanto estudante da Faculdade e que possa partilhar connosco? Sim, teve um colega nosso brasileiro que foi defender o seu doutorado perante professores da FADEUP e um professor grego que dava aulas no mestrado. O nosso colega não falava inglês, a sua apresentação tinha sido atípica e todos que assistiam temiam pelo pior. Mas ele foi aprovado e, no fim, questionamos o Professor Grego e a resposta dele foi fabulosa: “É fácil para mim, que estudei numa escola privada com direito a desporto e excelentes condições de vida, falar grego e inglês com facilidade. Mas o colega aqui dormia em terra batida e foi estudar tarde numa escola pública brasileira, que, pelo que soube, não oferta boas condições de ensino. Perseverou, fez o mestrado e trabalhou numa universidade privada. Juntou seu dinheiro (suado) para vir para Portugal fazer o doutorado. Quem sou eu para questioná-lo?” Esta foi uma grande lição de vida... Qual é a sua maior realização até hoje? Meus filhos e ser capaz de provar que, afinal, não sou uma dondoca (infelizmente, o Prof. Paulo faleceu antes da minha defesa de doutorado, mas, na minha tese, tem um agradecimento especial a este querido Professor. Afinal, foi ele quem me empurrou da zona de conforto). Como ocupa os tempos livres? Amo dar palestras, cursos de formação e organizar eventos, ou seja, trabalhando além do ensino. Mas, para além disso, aproveito cada momento livre para visitar meus filhos em Niterói e rever familiares e amigos, e ir a Portugal pelo menos uma vez ao ano, ver minha filha, irmãos, primos, cunhada e sobrinhas... Claro que a caminhada diária não conta, já é rotina, assim como meus grupos de estudos religiosos, a colaboração com a direção da Tuna Luso-Brasileira ou junto à Comunidade Luso Brasileira do Pará. Dia 1 de fevereiro, iremos receber o nosso secretário das comunidades portuguesas aqui em Belém, Dr. José Almeida Cesáreo, e o Embaixador Português. As nossas raízes estão aqui e aí. E, como diz minha filha: “Mãe, não somos nem carne nem peixe. Em Portugal somos brasileiros e no Brasil somos portugueses” [risos]. Quer deixar algum conselho aos nossos estudantes? Não sei se seria conselho, mas, em 1992, eu dediquei as minhas férias indo num comboio de ajuda humanitária para a Guerra da Bósnia-Herzegovina. Os jovens hoje reclamam que o mundo está egoísta, que a sociedade só pensa em resultados ou dinheiro. Pois bem, antes do século XXI, não era muito diferente, mas havia jovens que faziam a diferença. Acreditem, vai-vos fazer melhor a vocês, que são voluntários, do que àqueles moleques em África, Ucrânia ou das favelas brasileiras que vocês vão ajudar. Quem sabe, assim, vocês consigam desenvolver projetos desportivo-sociais ambientalmente corretos que efetivamente impactem na sociedade... Quem sabe!!!! O que espera do futuro? Pouca coisa... filhos crescidos e fazendo o bem, impactar de forma positiva na vida de alguns jovens que passam por mim, ser melhor pessoa a cada dia e continuar a sonhar. |