O Professor foi durante quase quatro décadas docente da Faculdade, de onde se aposentou, já este ano, por limite de idade. O que o motivou a ser professor? De fato, nunca tive um “plano” gizado desde muito cedo sobre o que queria ser quando “fosse grande”. Tudo na minha vida académica ocorreu num flow contínuo. Foi como se tudo estivesse “escrito nas estrelas” há já algum tempo. O desafio era segui-las sem colocar grandes entraves. Sem “complicar” o curso normal da minha vida e da minha família. A minha formação inicial é em Contabilidade e Administração. Durante alguns anos dei aulas sobre estas matérias em conjunção com a minha paixão pela prática de artes marciais durante cerca de 40 anos. Tive uma série de problemas nos joelhos e um amigo das artes marciais sugeriu que consultasse um médio Fisiatra que também era acupunctor – o Dr. Mário Jorge. Mais tarde, numa das consultas e tratamento, fiquei a saber que era docente no Instituto Superior de Educação Física (ISEF) do Porto. Para surpresa minha perguntou-me se nunca tinha pensado fazer o curso de Educação Física. Refleti sobre esta “janela nova” que se poderia abrir na minha vida e matriculei-me. Em suma, ser professor não teve nenhuma motivação especial, a não ser o corolário da minha vida desde que abracei o mundo das artes marciais. Mas não era fácil ser professor num domínio que exige, dos alunos, muita paciência, disciplina, rigor e um forte sentimento de ser sempre principiante em tudo quanto se faz. …. There is no easy way to be a teacher or a disciple, although it must be the greatest joy in this life. … (retirado do discurso de despedida de Richard Baker ao seu Mestre Zen Shunryu Suzuki. Um belíssimo livro do Mestre Shunryu Suzuki é Zen Mind Beginner´s Mind) E quando percebeu que o Desporto era o caminho que gostaria de seguir? À medida que a licenciatura em Educação Física ia “correndo”, nem sempre ao ritmo desejado, a opção pela futura lecionação e investigação em Ciências do Desporto foi maturando lentamente em mim. Depois de me tornar assistente estagiário no ISEF tudo levou um outro rumo em termos de investigação pelo fato de ter conhecido, logo no início, grandes investigadores (Robert Malina dos Estados Unidos, Gaston Beunen e Jan Borms da Bélgica) que colocaram sementes que germinariam no seu tempo. E, devo dizer, com ótimos frutos que muito apreciei na bela companhia de muitos companheiras e companheiros. Gostava que nos falasse um pouco da sua ligação à Faculdade. Da forma como se iniciou e das memórias que guarda desses primeiros tempos? Parte do que queria dizer foi revelado nas respostas anteriores. Mas os tempos iniciais de estudante da licenciatura não foram nada fáceis. Não havia manuais de estudo das várias unidades curriculares, a biblioteca não tinha documentos atuais e era praticamente inexistente, não havia computadores, não havia… . Mas havia, isso sim, um forte sentimento de superação destas dificuldades e de grande companheirismo entre os colegas de curso. Lembro bem que se quiséssemos ter algo para estudar, ou ver algum artigo de uma revista, tínhamos que ir à biblioteca do ISEF em Lisboa. De carro, bem cedo (por volta das 5:00h da manhã), chegar à Cruz Quebrada logo na abertura da biblioteca, procurar livros e artigos, fotocopiar tudo e voltar no mesmo dia por volta das 18:00h. E isto durante vários anos. Lembro também, quando já era assistente estagiário, da presença dos primeiros computadores Mac, na verdade dois, e da lista de “espera” para trabalhar neles. E também recordo o modo muito efusivo como celebrávamos, todos, as conquistas de cada um(a). E, claro, os momentos em que começamos a percorrer caminhos bem distintos em termos de investigação e marcação de “território” no ISEF e depois na FCDEF. E ainda bem que assim foi. Afinal, a “crise da adolescência” foi relativamente fácil de superar. Mas também teve as suas dificuldades, como convém. Agora que tenho 70 anos, e com outro distanciamento e algum discernimento, volto a um poema de Ryokan, Mestre Zen do século 18 que muito gosto e que releio com frequência revendo-me na sua advertência (retirado do livro Dewdrops on a lotus leaf. Zen poems of Ryokan), I watch people in the world Throw away their lives lusting after things, Never able to satisfy their desires, Falling into deep despair And torturing themselves. Even if they get what they want How long will they be able to enjoy it? For one heavenly pleasure They suffer ten torments of hell, Binding themselves more firmly to the grindstone. Such people are like monkeys Frantically grasping for the moon in the water And then falling into a whirlpool. How endlessly those caught up in the floating world suffer. Qual foi o maior desafio que encontrou enquanto docente? Ser capaz de apaixonar e entusiasmar os estudantes pelas matérias que lecionava e pela investigação que fazia. Cada ano haveria de ocorrer algo diferente. Novo. De reinvenção nas apresentações dos temas até aos “discursos”. Procurei na medida do possível impregnar a lecionação de gravitas. Mas nunca foi fácil, nem esperei que fosse. Nos últimos anos esteve envolvido em grandes projetos de investigação, casos do INEX e do REACT. Para onde pende mais o coração, para o José Maia professor ou para o José Maia investigador? Tal como no Oriente se afirma que meditação e ação são uma só, também para mim docência e investigação são uma só, em sua essência. Devem andar de mãos dadas. Em unidade. Sempre. Entre os anos 80, quando começou a dar aulas, e os tempos atuais, seguramente muita coisa terá mudado. Que mudanças mais significativas encontra na docência? Não sou um estudioso nas matérias de formação de Professores ou da Didática. Só posso falar pelo que fui, e por alguns colegas que tive a honra enorme de acompanhar ao longo dos anos de transformação do ISEF na Faculdade de Desporto reputada internacionalmente por tudo quanto fez e faz. Não obstante o que acabei de escrever, e no meu modesto entender, o que marcou a mudança foi o fato dos docentes também serem investigadores. Repetindo-me, investigação e docência devem que andar de mãos dadas. Já não se “falava somente de manual” e pela “boca dos outros”. Era a nossa própria fala que valia, fortificada pela existência de um quadro sólido de programas de investigação. Tudo rodeado de uma enorme paixão em divulgar o “fervilhar de ideias e resultados” nas melhores montras da ciência. Se o Professor José Maia tivesse de escolher “o momento” da carreira, qual seria esse momento? Quando estava no 4º ano da licenciatura escolhi a opção de treino no andebol. Não havia mais estudantes inscritos. Só eu! A questão que se colocou na altura foi esta: faria sentido abrir uma opção só para um estudante? Muito provavelmente não. Contudo, o docente era o Professor António Teixeira Marques, e a sua resposta foi inequívoca – se o estudante decidiu por esta opção de treino, então a sua “obrigação e missão” era responder às expectativas criadas pelo estudante. E nada o demoveu de dar aulas só para mim. O que se passou durante esse ano letivo foi extraordinário. Entendo todo este tempo como uma verdadeira lição entre o Mestre e o candidato a “discípulo” sobre a complexidade da Teoria e Metodologia do Treino aplicada ao andebol. No ano seguinte, a minha tese de licenciatura também versou sobre o andebol e o meu orientador foi o Professor António Teixeira Marques. Nestes dois anos começou a desabrochar uma amizade que permaneceria sólida e extremamente rica até à sua partida inesperada. Sem estes dois anos e o interesse que de seguida o Professor António Teixeira Marques colocou em todo o meu trajeto no ISEF, depois FCDEF e mais tarde FADEUP muito provavelmente a minha história de vida académica teria sido outra. O que fazia dele muito especial era o modo como lidava com as pessoas – sempre muito afável, atento, interessado, motivador, empenhado no sucesso dos colegas mais novos. E sem nada esperar em troca. Até nisto a sua vida foi uma enorme lição sobre o altruísmo. Ele encarnava este espírito referido nestes versos da poetisa e mística Lalleshwari de Kasmir (1320–1392), To learn the scriptures is easy, to live them, hard. Que imagem gostava que os estudantes guardassem do Professor José Maia? Há sempre uma verdadeira distância entre aquilo que “verdadeiramente” somos e o modo como somos “vistos” pelas pessoas à nossa volta. Parece que somos “uma legião”. A imagem que gostaria é esta - a que mais correspondesse à realidade de um docente apaixonado por tudo quanto fazia. Que nunca deixava de responder a desafios e que procurava envolver os estudantes nos mais variados projetos de investigação. Tudo embelezado por um enorme compromisso, rigor e dedicação. Ainda hoje tenho na memória estas belas palavras, um sério conselho que nem sempre consegui realizar em tudo quanto pude fazer ao longo destes anos, … it means that you should perform your prescribed duty to the very limits of the human capacity for excellence and perfection, doing the work that is appropriate to your stage of life. (retirado do livro Sai Baba Gita) Com tantos anos de Faculdade certamente passou por alguns momentos memoráveis. Lembra-se de alguma história em particular que possa partilhar connosco? É difícil falar de uma história em particular tão rica foi a minha vida na FADEUP a quem tanto devo. Vou selecionar não histórias no sentido da pergunta, mas momentos que marcaram, também, a história da FADEUP. Do ponto de vista institucional, um evento memorável foi a chegada do Professor António Manuel Fonseca ao cargo de Diretor da FADEUP imprimindo um ritmo novo carregado de esperança na renovação da instituição. Mas não foi, nem é fácil, responder ao desafio da mudança e do rejuvenescimento do corpo docente a par da re-estrutura curricular nos vários ciclos e dos grupos disciplinares. Ficam aqui as belas palavras do poeta António Machado, Caminante no hay camino, se hace camino al andar Do ponto de vista pessoal, um outro evento memorável foi a companhia dos colegas Júlio Garganta, João Paulo Vilas-Boas, Isabel Mesquita e António Fonseca na direção do Programa Doutoral em Ciências do Desporto. Por último, ver ex-estudantes de doutoramento tornaram-se colegas mais novos na FADEUP e noutras instituições universitárias Portuguesas e estrangeiras é uma alegria dificilmente contida. Em duas ou três palavras, a sua passagem pela Faculdade… Foi extraordinária e devo isso a muita gente – aos meus colegas da FADEUP, aos estudantes (licenciatura, mestrado e doutoramento), aos funcionários e aos meus colegas espalhados por vários países. AGRADECIMENTO é a palavra essencial. Nunca deixarei que saia da minha mente este forte sentimento de GRATIDÃO sobretudo por ter tido oportunidade de viajar por vários países lecionando e investigando, ter conhecido grandes investigadores que mais tarde se tornaram “cúmplices” de projetos de grande importância para a FADEUP. Também carrego comigo o aviso solene do Professor Abel Salazar que me ajudou durante toda a minha vida no ISEF, depois FCDEF, e finalmente FADEUP, Um médico que só sabe de Medicina nem de Medicina sabe. Qual é a sua maior realização? Ter sido capaz, com ajuda de outros colegas, de formar Mestres e Doutores reconhecidos nacional e internacionalmente nas suas áreas profissionais. Do meu ponto de vista, a nossa maior realização é ser capaz de “passar o bastão” para que a corrida continue “rasgando” novos horizontes. Como ocupa os tempos livres? Atualmente ainda estou fortemente ligado a projetos de investigação financiados por várias agências, e tenho “trabalho” até 2025. Fora este tempo, alegremente passado no convívio com ex-estudantes de doutoramento e colegas de vários países, leio e releio os meus autores favoritos do Oriente e do Ocidente. Vivo, também, a minha vida familiar com a minha esposa, os nossos filhos e netos ao ritmo do quotidiano. Quer deixar algum conselho aos estudantes da Faculdade? Não será conselho, mas sugestões. A primeira é que estudem com grande intensidade e paixão os assuntos que os trouxeram à Faculdade. O segundo é que aproveitem as mais variadas atividades que a Faculdade e a Universidade colocam à disposição. A terceira é que procurem não estar “fechados” ao “saber” do Desporto – deixem que a literatura, a poesia e a filosofia vos interpela, vos retire de o sossego paralisante do porquê mudar? Que sejam isso mesmo – universitários – no sentido mais lato do espírito renascentista. E que tenham bem presente estes belos conselhos de Séneca, filósofo romano (4 a.C. - 65 d.C.), sobre o valor do tempo, … reivindica-te para ti, e o tempo que até agora era arrancado ou subtraído ou escapava, recolhe-o e conserva-o. Persuade-te de que as coisas são como te escrevo: parte do nosso tempo nos é arrancada, parte nos é furtada, parte nos escapa. Entretanto, a pior perda é a que se faz por negligência. (retirado da primeira carta dirigida a Lucílio) E do sério aviso de Erling Kagge (retirado do livro a Arte de caminhar. Um passo de cada vez) Houve um dia em que a minha avó deixou de andar. Nesse mesmo dia morreu. E planos para o futuro? Se possível, continuar a trabalhar em prol do extraordinário nome da FADEUP. Mas também tenho que voltar às minhas paixões. Por exemplo, retomar as leituras de Rumi, Hafez e Kabir, dos mestres Zen e do pensamento hindu. E, claro, da poesia extraordinária de Mirabai e Lalla. Agora que sou avô de um neto (Xavier) e uma neta (Aurora), o meu tempo passa sempre por eles. Espero, ainda, puder viajar por lugares que sempre me fascinaram. |