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Um ventilador, dois doentes: como explicar a um deles que não é prioritário? “Nenhum pode ser discriminado em função da idade. É um erro”

Um ventilador, dois doentes: como explicar a um deles que não é prioritário? “Nenhum pode ser discriminado em função da idade. É um erro”
STR/GETTY IMAGES

E se?... Por enquanto, é apenas isso: um cenário hipotético, catastrófico, no qual faltam camas, ventiladores e mãos especializadas para tantos cuidados. É dever da ciência equacionar todos os horizontes possíveis, procurar o melhor e preparar-se para o pior, traçar planos para evitar a deriva. É isso que prevê o parecer do Conselho Nacional de Ética e Deontologia da Ordem dos Médicos, um documento que estabelece recomendações para priorizar a admissão e o tratamento de doentes com covid-19 num contexto de colapso do sistema de saúde. E se tudo ruir? E se tudo for abundantemente escasso? Que critérios serão utilizados? Quem decidirá? Alguém será deixado para trás? Como explicar a um doente que o seu caso não é prioritário? Estas e outras perguntas são respondidas por Rui Nunes, presidente da Associação Portuguesa de Bioética, em entrevista ao Expresso: “Nenhum doente pode ser discriminado em função da idade. Há muito a tentação de dizer ‘ah, bom, estas pessoas já têm muita idade e então são dispensáveis’. Isso é um erro”

Das poucas certezas em tempos de pandemia é a incerteza. O medo também. O que acontecerá se a capacidade de resposta do Sistema Nacional de Saúde for silenciada pela abundância na escassez de tudo? Onde se deitará a deontologia médica se não houver camas disponíveis nas unidades de cuidados intensivos? Como pode um médico encher o peito com o dever cumprido se tiver apenas um ventilador para dois doentes? Escolhas terão de ser feitas. São urgentes coordenadas éticas para evitar a deriva e um parecer da Ordem dos Médicos orienta para as decisões que ninguém quer ter de tomar. O documento avança com um conjunto de considerações e recomendações para instituir um “processo de triagem dos doentes” que “necessitem de terapia intensiva”, uma vez que a “ordem de chegada do pedido de admissão ou da chegada aos serviços de urgência hospitalar” não devem constituir critérios de prioridade. Assim, “não se trata de tomar decisões de valor, mas de reservar recursos que podem tornar-se extremamente escassos para aqueles que têm, antes de mais, maior probabilidade de sobrevivência após o tratamento”. O objetivo, lê-se, “é salvar mais vidas e mais anos de vida”. Um dos fatores que pesa na decisão é “a presença de comorbilidades e o estado funcional dos múltiplos órgãos”, que devem ser avaliados “juntamente com a idade”. Além disso, “os doentes onde o benefício é mínimo e improvável por doença avançada ou terminal não devem, tal como em situações de não emergência, fazer terapia intensiva”. No caso de decisões de suspensão de atitudes curativas, “o médico não pode abandonar nenhum doente”, “devendo sempre garantir acompanhamento paliativo adequado”. A Ordem dos Médicos sugere igualmente que, “se for previsível um período agónico a curto prazo, deve considerar-se transferência para um ambiente fora da UCI e tanto quanto possível respeitador da sua intimidade”. O parecer pode ser consultado integralmente AQUI. O presidente da Associação Portuguesa de Bioética, Rui Nunes, clarifica como poderá ser o mais negro de todos os cenários. E porque é preciso estar preparado para esse cenário mesmo que o professor catedrático da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto tenha quase a certeza de que não se vai chegar a esse ponto.

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