ID: 92971414
 
Público - P2
23-05-2021
País: Portugal
Âmbito: Lazer

Demência: histórias de quem vai perdendo a noção de si

Há 200 mil pessoas que vivem com uma demência em Portugal, número que vai duplicar até 2050. O Älme O Pai pôs o mundo a olhar para a complexidade destas doenças e para as diÄculdades vividas por doentes e cuidadores. Não existe uma cura “milagrosa”, mas a prevenção pode evitar cerca de 40% dos casos Sofia NevesPor M aria meteu na cabeça que tinha de ir à estação de comboios naquele dia. O gosto por viagens, que a acompanhou nos seus 77 anos, dizia-lhe que precisava de comprar um bilhete de comboio para um qualquer destino. Mas nesse dia, nessa viagem, Maria acabou por cair, fracturou o fémur e teve um AVC.
Esteve seis meses no hospital e Æcou Æsicamente dependente. Teve de se mudar para casa da Ælha, algo que nunca quis e sempre contestou.
Os primeiros sinais de que algo não estava bem com Maria começaram anos antes, mas Márcia, a Ælha, não percebeu que estava perante o início de uma demência.
“Começou com uma agressividade muito grande dirigida à pessoa que estava mais próxima, que era eu. Eram atitudes desmedidas, descontroladas, sem contexto. Eu tocava à campainha para visitar a minha mãe e ela recebia-me já com uma agressividade tremenda.
Passados uns minutos, ia acalmando e passava para um perÆl oposto. Ia do oito ao 80”, conta Márcia Cruz.
Maria, uma trabalhadora doméstica que sempre foi “autónoma e independente”, começou a esquecer-se de pagar quando metia gasolina. Simplesmente enchia o depósito e arrancava. Os dois gatos que tinha também começaram a comer mais, porque Maria achava que ainda não os tinham alimentado.
Outro dos primeiros sinais que Márcia notou foi que a mãe deixou de conseguir controlar o dinheiro que gastava. Um despesismo impensável uns anos antes, Maria “sempre foi muito orientada nesse sentido”. Às vezes, ia buscar 100 euros ao banco e no dia seguinte já não os tinha e nada explicava esse gasto. Ou levantava a reforma toda em dois dias.
Ia tomar o habitual pingo ao café e era capaz de deixar dez euros de gorjeta sem se aperceber. “A dada altura, percebi que a minha mãe tinha cinco secadores de cabelo e seis embalagens de queijo no frigoríÆco porque se esquecia que os tinha e voltava a comprar”, recorda Márcia, que teve diÆculdade em fazer a mãe perceber que era preciso procurar ajuda. “Não estou maluca, estou muito bem.
Quem precisava de ajuda és tu”, respondia.
A família sabe agora que Maria é uma das 200 mil pessoas que têm uma demência em Portugal, um dos quatro países da OCDE com maior prevalência de casos destas doenças entre a população.
“Quando falamos em demência, estamos a falar de um leque muito alargado de doenças.
A maior parte dos demenciados em Portugal tem Alzheimer, a demência que tem maior prevalência no mundo inteiro”, explica Lia Fernandes, psiquiatra do Hospital de São João, no Porto. “Logo a seguir vêm as demências vasculares, em número ainda elevado, e as demências mais raras, como a de corpos de Lewy, a demência frontotemporal e a ligada à doença de Parkinson, entre outras.” O Ælme O Pai, que nos faz entrar no mundo da pessoa com demência e duvidar do que é realidade ou alucinação (e valeu um Óscar a Anthony Hopkins), pôs o mundo a olhar para a complexidade destas doenças e para as diÆculdades vividas por doentes e cuidadores.
Lia Fernandes explica que estas doenças afectam três áreas muito importantes, ainda que cada uma tenha características diferentes.
Primeiro, a cognição dos doentes que inclui a atenção, a memória, a orientação é afectada. Depois, há mudanças na parte comDemência.
“A nossa mãe já não é quem era, é outra pessoa” portamental: os doentes Æcam muitas vezes agitados, irritam-se com facilidade e podem tornar-se agressivos. E, por último, a demência começa a prejudicar as actividades normais do quotidiano. “Começam por perder as actividades de vida diária: sair à rua, ser capaz de fazer as compras, saber se já deitaram ou não sal na comida, este é logo um dos primeiros sinais. Tudo isto vai-se degradando progressivamente e depois perdem as funções básicas: o lavar-se, pentear-se, vestir-se, tomar banho”, explica a também professora da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto (FMUP).
Principal factor de risco é a idade Numa fase inicial, Lia Fernandes diz que é preciso estar atento aos pequenos esquecimentos , quando as pessoas não sabem onde puseram os óculos, o relógio, as chaves. Outro dos sinais precoces da perda de memória é deixar as bocas do fogão ligadas ou ir ao supermercado e esquecer o que lá se ia buscar.
“O Ælme retrata muito bem as situações reais e coloca-nos na pele do próprio doente. Também Æcamos baralhados com aquelas trocas todas. Seguimos a confusão que se estabelece na cabeça do Anthony.” O principal factor de risco para estas doenças é a idade. Ainda que a demência possa surgir em idades mais precoces, é mais frequente a partir dos 65 anos.
A psiquiatra diz que, em geral, as famílias só procuram ajuda nas fases moderadas e graves, quando os doentes começam a ter mais alterações do comportamento.
“Quando é que eles vêm às consultas e às urgências? Gostaríamos que fosse na primeira fase, em que é mais relevante a perda da memória, mas infelizmente não é assim. Banaliza-se o esquecimento, desculpa-se por a pessoa estar a Æcar mais velha. Esses comportamentos começam a interferir no dia-a-dia, alguns doentes fogem, deambulam sem sentido. Isso começa a ser mais perturbador e é por isso que os familiares os trazem às consultas”, refere a especialista.
Na última fase, há a perda total da autonomia da pessoa. Começam a Æcar acamados, totalmente dependentes. Este é “o curso normal das demências”, assinala Lia Fernandes.
Foi assim com a mãe de Paulo Azevedo, que tem demência de corpos de Lewy. Aos 87 anos, Maria Teresa vive com o marido, também já idoso, e com um cuidador. Precisa de ajuda para praticamente tudo: para comer, para se vestir, se levantar, na higiene diária, embora não esteja acamada.
“Nas tarefas do dia-a-dia não tem independência alguma. Nos últimos anos, a situação começou-se a agravar. Temos tentado contrariar o curso da doença com a medicação, e tem resultado bastante bem, mas sabemos que é apenas ganhar tempo”, conta o Ælho.
“Foi uma evolução muito lenta no início. Começou com algumas confusões, algum esquecimento, coisas que associamos à idade e não damos muita importância no início. Aquilo que me fez suspeitar inicialmente de um estado de demência ou problema mental foram as visões que a minha mãe dizia ter: via padrões nas paredes, bichos, objectos.” O próprio doente apercebe-se que há uma deterioração de certas capacidades, sobretudo nas fases iniciais. Sabe que se esquece de coisas e que não consegue realizar as actividades normais, mas por vezes vai tentando contornar essas diÆculdades e há uma negação das situações. “É algo que vemos no Ælme.
No início, o personagem não sabia onde colocava o relógio. Começa a pensar que não é
ele que está mal alguém é que lhe tirou o relógio, naquele caso a funcionária”, explica a professora da FMUP.
E vão deixando de conhecer as pessoas que lhes são mais próximas. Primeiro os netos tornam-se estranhos, depois os Ælhos. “É frequente chamarem aos Ælhos os nomes dos irmãos, porque prevalecem as memórias mais antigas. Confundem também o marido com o pai, ou a esposa com a mãe. No Æm, desconhecem-se a si próprios. No Ælme, já no Æm, Anthony chega a perguntar: Quem sou? ” Aníbal tem pavor de sair da sua casa Quando viu o Ælme O Pai, Maria João Almeida reviu-se nestas cenas. Ao seu pai, Aníbal, a demência vascular já vai roubando memórias.
Às vezes, não sabe os nomes das coisas, outras esquece os nomes das pessoas. “O meu pai, às vezes, acha que de noite há bichos que descem do sótão e andam no quarto e repete-se muitas vezes”, diz a Ælha.
Aníbal estava ao cuidado da mãe de Maria João até esta morrer há alguns anos. Tem alguma autonomia, “ainda vai tratando dele”, diz a Ælha, mas já não pode Æcar sozinho. É preciso controlar a medicação. Tem incontinência e diÆculdades em andar, apesar de ainda dar dois passeios por dia no quintal.
“Recusa-se a sair de casa, não quer, tem pavor de ser tirado dali e levou muito a peito as vezes que percebeu que as conversas iam nesse sentido. A doutora Lia disse-me que, no caso do meu pai, ele estava num processo degenerativo e se saísse do ambiente dele ia piorar a pique”, explica Maria João. Lia Fernandes diz ter uma “posição diferente” em relação a alguns colegas, porque só é a favor da institucionalização em lares ou centros de dia “em Æm de linha”. “Tanto quanto possível, devemos manter os idosos no seu meio, porque têm as referências todas. Para Anthony, por exemplo, era muito importante ter o quadro que a Ælha pintou ou saber onde estava o piano. São referências que nos devolvem a nossa identidade. É muito importante que não se mexa nisso. A institucionalização altera tudo. Claro que em muitas situações é difícil ter cuidadores ou familiares presentes a tempo inteiro, mas para mim é o ideal.” Maria João diz que precisou de abdicar de “muita coisa” para cuidar do pai, chegando até a pedir o estatuto de maior acompanhado.
“Todos os dias estou em Coimbra e ele está a 200 quilómetros, só passo os Æns-de-semana com ele. Às segundas-feiras, às vezes, ainda Æco, porque tenho de o levar a consultas, fazer compras, tratar do que for preciso. Qualquer coisa que aconteça, uma das funcionárias ligame, portanto é como se eu lá estivesse também durante a semana”, diz a Ælha, que tem feito formações e tentado juntar-se a comunidades com pessoas que estão a passar pela mesma situação.
A demência tem cura? Diagnosticar demência é um processo complexo que requer a intervenção de uma equipa multidisciplinar (neurologistas, psiquiatras, psicólogos, entre outros). É fundamental que o cuidador principal esteja envolvido em todas as etapas, assinala a especialista do S. João.
Não existe uma cura “milagrosa” para a demência, mas a prevenção é essencial, até porque, sublinha Lia Fernandes, cerca de 40% dos casos podem ser prevenidos. “Quanto mais escolaridade uma pessoa tem, melhor se defende destes processos neurodegenerativos.” E é fundamental actuar no início, mas também ao longo da vida: ler muito, ter estimulação intelectual. É como se abríssemos auto-estradas dentro do nosso cérebro. Se tudo isto não nos permitir prevenir na totalidade, permite-nos adiar o desenvolvimento destas doenças.” Já na idade adulta, é importante prevenir situações de obesidade, hipertensão, factores de riscos já conhecidos para as patologias cardiovasculares. “Na idade avançada, as depressões, que devem ser bem tratadas, a diabetes, o tabagismo, a vida sedentária, pouco exercício físico, também devem ser tidos em conta. Nessas idades, é preciso existir estimulação social, sair de casa e ir ao café, por exemplo.
Numa revisão recente, também se acrescentaram os traumatismos cranianos, o álcool e a poluição, que parecem ter um efeito bastante nefasto”, adianta a psiquiatra.
No fundo, é preciso investir em hábitos de vida saudáveis e Lia Fernandes diz que, mesmo depois dos 70 anos, fazer caminhadas Ærmes, em que o ritmo cardíaco acelera, é benéÆco e ler, fazer sudoku e palavras cruzadas também.
“És a minha mãe?” O número de doentes com demência em Portugal duplicará até 2050, atingindo 3,82% da população. Os valores ultrapassam a tendência da UE, segundo dados da Alzheimer Europe divulgados em Fevereiro de 2020. Um factor determinante desta mudança será um aumento signiÆcativo do número de pessoas com mais de 70 anos e, em particular, a faixa das pessoas com mais de 85 anos, que mais do que duplicará entre 2018 e 2050.
Mas a psiquiatra do São João diz que, apesar do elevado número de doentes que existe e destas previsões, ainda não há respostas adequadas e suÆcientes para a prestação de apoio, tanto ao doente, como às famílias.
Nos casos de demência, e quando o doente está mais frágil, o contacto, o afecto e a empatia tornam-se muito importantes. Se antes já era difícil, com a pandemia de covid-19 foi quase impossível responder a estas necessidades. Muitos doentes Æcaram privados dos poucos contactos que tinham com os centros de dia ou com familiares. “Há muitas situações que regrediram e há pessoas que estão muito pior depois destes meses, mesmo em termos de depressões”, aponta a psiquiatra.
Muitas vezes, a mãe de Márcia cisma que não está em casa. “Tenho de ir para a minha casa, tu sequestraste-me”, acusa. “É capaz de estar um dia à volta disto. Outras vezes diz que estamos num hotel bonito, que gosta da paisagem ou que temos de ir para o avião”, conta a Ælha, que já desenvolveu mecanismos para lidar com todas estas situações.
“Os livros dizem que devemos orientá-los para a realidade, mas acho que isso não resulta. As noites são muito agitadas, acorda muitas vezes desorientada. Na maior parte das vezes diz que não gosta daquele hotel, que eu escolhi mal. Diz-me que só quis poupar dinheiro [no hotel] e está numa revolta porque se quer ir embora. Então eu digo-lhe: Olha, vamos ter de aguentar esta noite, porque já paguei a estadia com direito a pequeno-almoço e é uma pena perdermos isso. E ela lá me diz: Ah, tens razão, se já está pago, aproveitamos o pequeno-almoço e depois vamos embora. Ela aí acalma-se e quando acorda já está noutra.” Márcia aprendeu a usar o humor, a contar piadas que sabe que vão fazer a mãe rir, a pôr música, a colocar vídeos de Quem Quer Ser Milionário, porque Maria era uma pessoa com muita cultura geral e “adora ver esse tipo de concursos”: “É capaz de estar ali horas no desaÆo com os participantes.” Maria diz muitas vezes que tem outra Ælha, outra Márcia, que é muito parecida com a Ælha que tem à sua frente, mas que não é bem ela. “Os meus irmãos tinham muita diÆculdade em perceber que a nossa mãe já não é a mãe que era, é outra pessoa. Têm medo do dia em que ela não os conheça, mas vai acontecer.” Até porque o diálogo que se segue é mais frequente do que Márcia gostaria que fosse.
És minha mãe? Não, eu chamo-te mamã, tu é que és a minha mãe.
Tens a certeza? Tenho.
OK, ainda bem.
Quando é que eles vêm às consultas? Gostaríamos que fosse na primeira fase, mas não é assim. Banaliza-se o esquecimento, desculpa-se por a pessoa estar a ficar mais velha Lia Fernandes MIGUEL FERASO CABRAL
Demência: histórias de quem vai perdendo a noção de si P16/17

Autor: Sofia Neves
Temas: Universidade do Porto/FMUP