É cirurgião, cientista, professor catedrático, pai de três filhos, marido e, enquanto médico, garante que, pelos doentes, atende “o telemóvel a qualquer hora do dia ou da noite”. Adelino Leite-Moreira, coordenador científico da Unidade de Investigação Cardiovascular da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto (FMUP), vive intensamente sem tempo, de maneira a ter disponibilidade para o mais importante: aplicar à cirurgia cardiotorácica o melhor da ciência, para tratar patologias cardíacas.

Quando nos recebe, às 9h17 de uma manhã de segunda-feira, Leite-Moreira acabou de fazer um turno de 24 horas no serviço de urgências. Dois dias antes fizera o mesmo. Nessa semana faria mais uma vez, no sábado iria operar o dia todo e, no domingo, voltaria às urgências. Mas o raciocínio está irrepreensível, lúcido como o gabinete inundado de luz natural onde nos encontramos, no sexto piso do Centro de Investigação Médica da FMUP. O que o move na vida é “ajudar os doentes”, reconhecendo que, ao longo do tempo, aprendeu, também, “a desligar”, quando está com a família.

A insuficiência cardíaca é uma doença muito grave, com um prognóstico devastador, comparável às formas mais letais de cancro e, muitas vezes, as pessoas não têm essa noção”, enfatiza o cirurgião-cientista, que vive duplamente com o coração nas mãos para salvar vidas.

Adelino Leite-Moreira lidera uma equipa multidisciplinar de cerca de trinta pessoas, no projeto Sequential Cardiac Resynchronization Therapy (SECRET), apoiado em cerca de 370 mil euros pela Fundação “La Caixa”, através do Concurso Health Research, em parceria com a Fundação para a Ciência e para a Tecnologia (FCT). O médico de 55 anos está a desenvolver uma terapêutica inovadora para tratar a insuficiência cardíaca. Neste momento, o SECRET tem já o protótipo e o modelo animal prontos e, além do desenvolvimento tecnológico, a equipa está focada em “criar um modelo experimental de doença, para testar a validade do dispositivo o maior número de vezes possível”.

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Cerca de 2% da população “ocidental” [Europa e América do Norte] sofre de insuficiência cardíaca, 5% a 10% dos quais são potenciais candidatos à terapia de ressincronização cardíaca — o pacemaker que deteta e corrige os impulsos elétricos dos ventrículos cardíacos. Mas cerca de um terço dos doentes não respondem a este dispositivo.

O novo ressincronizador, desenvolvido pelo cirurgião, vai permitir uma resposta mais adequada, através da estimulação de múltiplos pontos cardíacos, ajustada ao doente. “O coração é uma bomba, que esvazia e enche”, explica o também diretor do Departamento de Cirurgia e Fisiologia do Hospital de São João. No passado, pensava-se que este órgão central da circulação sanguínea “só estava doente quando se esvaziava mal e quando tinha de contrair”, prossegue na explicação, reforçando que, hoje, já está “demonstrado e estabelecido” que o coração “também pode estar doente quando relaxa e enche”. Foi esta descoberta que veio mudar o campo da investigação sobre insuficiência cardíaca e ajudar a compreender “os mecanismos da doença” para se encontrar soluções terapêuticas mais adequadas como a da SECRET.

O novo e revolucionário pacemaker desenvolvido no Porto vai permitir uma resposta mais adequada, através da estimulação de múltiplos pontos cardíacos, ajustada ao doente

“Mecanismos” é aliás a palavra que sempre despertou o interesse deste cirurgião-cientista, autor de mais de trezentos artigos científicos, uma centena de prémios e que adora “tecnologias, engenharia, matemática, física”. Quando era mais novo  “desmontava e montava os brinquedos e os eletrodomésticos” de forma a compreender a engenharia aplicada.

“Um cirurgião cardíaco tem de saber o funcionamento e de ‘desmontar’ o coração, reparar as peças que estão estragadas e voltar a montá-lo”, nota o médico, para explicar como começou a interessar-se em saber “como é que o coração falha”.

A primeira vez que se apaixonou por essa ciência foi quando leu um texto de fisiologia cardíaca, ainda no segundo ano da faculdade, em 1984, na mesma instituição onde hoje é docente e cirurgião. Pensou que, um dia, também gostaria de fazer “descobertas científicas”. No final do curso de Medicina, em 1989, teve a oportunidade de se envolver em projetos de investigação e lecionar, ao mesmo tempo que se preparava para o exame nacional de ingresso na especialidade. Dois anos depois deparou-se com um artigo científico, “sobre fisiologia da diástole do relaxamento do músculo cardíaco, escrito precisamente pelo diretor do laboratório para onde iria [trabalhar na Bélgica]”, recorda o cientista que é também chefe de serviço de cirurgia cardiotorácica no Hospital de São João, no Porto. Essa investigação mudaria a sua carreira. Hoje é um dos consultores mundiais em matéria de cirurgia cardíaca, colocando o centro de investigação que dirige entre os melhores do mundo.

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Como bolseiro de Doutoramento da atual FCT, Adelino Leite-Moreira esteve três anos na Faculdade de Medicina da Universidade de Antuérpia. O colega com quem foi trabalhar estava a implementar “modelos de trabalho em coração intacto [estudo experimental de coração in vivo, ou seja, a bater] que envolvia um conjunto de procedimentos cirúrgicos”. O também presidente da Sociedade Portuguesa de Cirurgia Cardiotorácica e Vascular começou “a fazer observações sobre o comportamento da diástole e relaxamento no coração intacto”. Verificou que os princípios que regulavam esse funcionamento “não podiam ser derivados diretamente do que saía anteriormente do músculo isolado”. Suspeitou, então, que isso “poderia ter implicações para compreender o funcionamento do coração normal, mas também o funcionamento em situações de doença”.

É assim que surge o seu primeiro trabalho de investigação. “Isso obrigou-me, com muito menos recursos — e numa fase de aprendizagem — a ter muito à-vontade a trabalhar com o coração a bater, percebendo como se pode intervir, otimizando o seu potencial funcionamento”, analisa.

Quando voltou para Portugal, em 1994, regressou com uma experiência profissional ímpar e duas inquietações: como iria conciliar a paixão pela cirurgia e a parte clínica com a investigação – tendo em conta que os pares olhavam com desconfiança para essa relação – e como iria pôr em prática o que aprendeu para ajudar os doentes? Com obstinação, resiliência e “muito trabalho”, afirma ter conseguido conquistar espaço e demonstrar as mais valias de anos dedicados à investigação laboratorial. Nomeadamente o facto de ser um dos poucos cirurgiões que, na época, estavam preparados quer para fazer cirurgias com o coração a bater, quer para implementar novas técnicas cirúrgicas e os devidos protocolos.

“Um cirurgião cardíaco tem de saber o funcionamento e de ‘desmontar’ o coração, reparar as peças que estão estragadas e voltar a montá-lo”, nota o médico, para explicar como começou a interessar-se em saber “como é que o coração falha”

A ideia do novo dispositivo surge, então, fruto dessa experiência acumulada como cirurgião-cientista, observando os mecanismos do coração, analisando tecido cirúrgico, e de um diálogo incessante com especialistas de várias áreas. Da cirurgia cardíaca à biotecnologia, por exemplo, passando pela engenharia ou mesmo técnicos laboratoriais. “Achamos que o dispositivo tem margem para ser ainda mais eficaz”, afirma, indicando como exemplo “a possibilidade de também ser aplicado, com algumas modificações, ao lado direito do coração” — que ejeta sangue para os pulmões—, e que é uma área de estudo negligenciada.

“Sabemos que o organismo é muito mais intolerante a uma falha do ventrículo direito, principalmente se essa falha for aguda e, quando acontece, nós temos muito poucas armas terapêuticas”, salienta. É um dispositivo que “vai otimizar a sincronia do lado esquerdo do coração”, procurando dar resposta àqueles que não respondem aos pacemakers disponíveis atualmente, e que “otimiza mesmo os que já respondem”.

O coordenador científico do SECRET está convicto que a investigação em curso vai não só melhorar a qualidade de vida dos doentes de insuficiência cardíaca e salvar vidas, como também permitir dar passos importantes, no progresso tecnológico de dispositivos cardíacos e no desenvolvimento de técnicas cirúrgicas cardiotorácicas.

Este artigo faz parte de uma série sobre investigação científica de ponta e é uma parceria entre o Observador, a Fundação “La Caixa” e o BPI. O projeto SequentialCardiacResynchronizationTherapy / Uma Nova Terapia para a Insuficiência Cardíaca, liderado por Adelino Leite-Moreira, da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto ,(IGC) foi um dos 25 selecionados (dez em Portugal) entre 785 candidaturas – para financiamento pela Fundação sediada em Barcelona, ao abrigo da edição de 2018 do Concurso HealthResearch. O investigador recebeu 370 mil euros para desenvolver o projeto ao longo de três anos. O HealthResearch apoia projetos de investigação em saúde e as candidaturas para a edição de 2021 estão abertas até 3 de dezembro.