Esta semana, em Portugal, ultrapassámos os 100 000 casos ativos de infeção por SARS-CoV-2. Desde 15 de fevereiro deste ano que não se verificava um valor tão elevado. Há um ano atrás, na passagem de ano, tínhamos cerca de 75 000 casos positivos. Estamos pior do que há um ano?

Peço que me acompanhem num pequeno raciocínio:

Num dia de sol, a utilização do guarda-chuva não é necessária porque nos mantemos certamente secos. Já num dia de chuva a utilização do guarda-chuva é fundamental para não nos molharmos. Percebemos que um guarda chuva protege a pessoa da chuva, mesmo que seja incapaz de fazer parar de chover. Na realidade, na impossibilidade de parar a chuva, interessa criar condições individuais de proteção, com utilização de guarda-chuvas e impermeáveis, e coletivas de organização dos sistemas, como a drenagem de águas, que permitam lidar com a pluviosidade de forma a que esta não nos afete e que possamos permanecer secos e confortáveis.

A conclusão é simples: não podemos parar a chuva, mas podemos viver confortáveis apesar dela!

Desde sempre vivemos com as doenças e com as infeções: parasitamos e somos parasitados por numerosos agentes microbiológicos com os quais estabelecemos um equilíbrio que nos permite viver e muitas vezes cooperar ativa e positivamente: um dos primeiros exemplos foram as mitocôndrias, integradas no interior da própria célula para a produção de energia e sem as quais toda a biologia que conhecemos seria diferente e provavelmente impossível. Mas há mais exemplos nas bactérias do intestino que fazem uma parte importante da digestão ou nas da pele que reforçam o poder de barreira e proteção. A longo prazo, a batalha pela sobrevivência é ganha, conforme se prova pela nossa própria existência enquanto espécie humana.

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Nos últimos anos conseguimos uma evolução tecnológica que nos permite ser mais rápidos a desequilibrar a nosso favor, através da disponibilização e do acesso alargado às vacinas, com os programas populacionais de vacinação, e aos antibióticos. O que hoje parece consolidado é na verdade muito recente, com uma história de cerca de 70 anos que se conta apenas após a segunda Grande Guerra Mundial.

Em 31 de dezembro de 2019 começou oficialmente a crise da COVID-19, mais tarde denominada de pandemia e por todos percebida como uma emergência, sobretudo após termos assistido à rutura dos sistemas de saúde europeus, entre março e junho de 2020. Nesta altura não tínhamos vacinas, nem antibióticos. A única solução era mesmo fecharmo-nos dentro de casa e esperar que o vírus não tivesse já entrado.

Esta opção serviu o objetivo de diminuir o número de infetados e com eles a gravidade (chegámos a atingir taxas de letalidade de 4,4%, significativamente superiores aos 1,5% atuais), espaçando no tempo para permitir o aparecimento de tratamentos eficazes, ainda que, como vimos adiante, fosse insuficiente para conter as cadeias de transmissão. Não foi possível suster a circulação do vírus que passou a ter uma distribuição mundial. Temos de viver com este vírus e apesar dele, procurando o reequilíbrio de sobrevivência e de conforto a que estamos habituados após milhares de anos enquanto espécie humana.

Nestes dois anos que entretanto passaram, surgiram vacinas capazes de proteger face à doença e medicamentos eficazes para a tratar. Apesar do número de casos superior ao do ano passado, temos uma gravidade muito contida com menos doentes graves, menos doentes críticos e menos mortalidade específica, mas continuamos a ter um sistema formal de organização como se não nada disto se verificasse.

Temos guarda-chuva, percebemos que a chuva não vai parar, mas continuamos fechados dentro de casa para não nos molharmos!

Há que mudar a avaliação: não interessa tanto os casos, mas o seu impacto na saúde. Podemos viver com o vírus no nariz desde que não provoque doença.

Temos de evoluir na definição de caso, deixando cair a exclusividade da positividade microbiológica para uma integração clínica, à semelhança do que acontece na maioria das outras doenças, o que diminuiria imediatamente o peso da doença. Os portadores assintomáticos deixariam de ser considerados doentes, libertando os serviços de saúde para quem efetivamente necessita de cuidados entre os doentes COVID-19 e as restantes doentes não-COVID. Isto é particularmente evidente nos Cuidados de Saúde Primários que, em Portugal, desde o início da pandemia, orientaram diariamente mais de 97% dos doentes, obrigados a protocolos desajustados das necessidades clínicas, mantendo o funcionamento dos centros de assistência do ambulatório (ADR-C) e dos centros de vacinação, e forçados a uma reorganização que condiciona a forma e o acesso da população aos serviços de saúde e à assistência médica.

Temos de partir do princípio de que todos podemos ser portadores, obrigando-nos e aos outros a um conjunto de medidas de proteção individual, sobretudo ao nível da utilização das máscaras e de evitar os grandes aglomerados de pessoas, com que teremos de conviver mais algum tempo.

Temos de evoluir para um discurso claro e transparente, capaz de melhorar de facto a literacia de todos, ao nível da eficácia, da eficiência e da justificação das medidas que são implementadas. Na perspetiva de que não existe o conhecimento absoluto, teremos sempre dúvidas sobre aspetos práticos de implementação como os critérios de internamento dos doentes, os grupos alvo da vacinação, ou as indicações para determinados tratamentos mais específicos. Estamos habituados a discutir estas questões no meio científico, mas não o podemos fazer nos holofotes mediáticos, onde criará receios e medos com impacto significativamente negativo em quem não consegue dominar esta incerteza.

Temos de ouvir os profissionais no terreno, integrando os seus contributos na otimização dos recursos disponíveis e em soluções localmente interessantes e aceitáveis para os objetivos delineados.

Temos de ouvir as pessoas e integrar as suas expectativas nas árvores de decisão, tanto ao nível da assistência clínica, como ao nível da ação política, jurídica, económica e social, para alcançar uma base sólida de entendimento capaz de juntar todos em objetivos realmente específicos, mensuráveis, alcançáveis, relevantes e temporalmente exequíveis.

Em conclusão, vamos continuar a ter chuva, mas temos guarda-chuva, sabemos utilizá-lo, e não precisamos mais de ficar em casa para não nos molharmos.