Máscaras – um legado pós-pandémico

Ao fechar o capítulo da pandemia, poderemos refletir no que poderemos transportar de ganhos e boas práticas para um futuro melhor. A recomendação do uso mais generalizado de máscara em alguns contextos fará parte dessa evolução.

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Nelson Garrido

A utilização das máscaras em contexto pandémico remonta ao século XIV, quando a peste negra devastou a Europa e Ásia. Recorreram-se a máscaras em forma de bico de ave onde existiam ervas perfumadas, com a finalidade de proteger o seu utilizador do que consideravam a origem das doenças, os chamados miasmas. No século XIX, destacam-se as descobertas de Joseph Lister (papel da esterilização na prevenção da infeção) e Louis Pasteur (papel dos germes como agentes etiológicos da infeção) e vale a pena lembrar Carl Flügge e Johann Mikulicz-Radecki, que demonstraram que o acto de falar emana gotículas, que podem transportar microrganismos. Perante tal descoberta desenham, em 1897, uma máscara que relatam como “um pedaço de gaze para cobrir nariz, boca e queixo, presa por dois atilhos”. Mais tarde, acredita-se que a ampla utilização de máscaras foi um fator importante no controlo da pandemia por Influenza de 1918/19

Atualmente, durante a pandemia por covid-19, a utilização de máscaras é uma das medidas não farmacológicas para prevenir e controlar a disseminação do SARS-CoV-2. Se refletirmos sobre o acto de usar máscara, pode-se pensar em várias formas, como a proteção, a “afirmação de uma convicção” ou até como acessório de moda. A nível de proteção, há que observar as boas práticas na sua utilização, para o cumprimento da sua função. Ainda hoje, cuidados fundamentais da manutenção devem ser recordados: desde a sua troca, por uma nova, após quatro a seis horas de utilização ou sempre que esta ficar húmida, até ao seu transporte, num invólucro fechado, respirável, limpo e seco (nunca no bolso!). Adicionalmente, recordar que é importante não utilizar a máscara como bandolete, colar ou pulseira (a máscara deverá estar sempre colocada na face, a cobrir o nariz, boca e queixo e, quando não utilizada, armazenada corretamente); não a retirar para espirrar ou tossir (é essa a sua função: conter as gotículas emanadas). E, claro, sempre que se tocar na máscara, higienizar as mãos.

Já no âmbito de “afirmação de uma convicção”, considera-se a utilização da máscara como um acto de civismo, uma vez que permite não só a proteção do utilizador como também de terceiros. As características da máscara (se de uso único ou múltiplo, assim como o material de que é feita) pressupõem eventuais preocupações ecológicas, relacionadas com a sua sustentabilidade. Por outro lado, os respiradores munidos de válvula expiratória (para facilitar a respirabilidade do utilizador) são conhecidos vulgarmente por equipamento “egoísta”, uma vez que esta válvula pode permitir a passagem de gotículas de dentro para fora (protegendo, assim, só quem a utiliza). 

Recorrentemente, pacientes com alergia ao pólen reconheciam, de forma até humorística, que a única forma de passar sem medicação a Primavera “era usar máscara e óculos sempre que se saísse de casa”. Essa recomendação, tornada irónica ao limite no nosso contexto atual, permitiu, pela primeira vez, reconhecer o impacto da máscara nos sintomas de rinite em ambiente de vida real. Num trabalho realizado em Israel, os autores observaram que num grupo de quase 2000 enfermeiras, incluindo cerca de 300 com rinite alérgica intermitente a grave, o uso da máscara durante o período de trabalho no hospital esteve associado a uma diminuição das queixas nasais, mas não oftalmológicas, de rinite alérgica (Dror et al. J Allergy Clin Immunol Pract. 2020). 

Esta observação é consistente e prova o conceito da competência na função de filtro das máscaras impedindo o acesso de aeroalergenios às vias aéreas. No caso dos pólens (10-100 μm), esporos de fungos (2-50 μm) ou fezes de ácaros (10-40 μm) que são, por si só, responsáveis por mais de 90% das rinites alérgicas em Portugal, o filtro de uma máscara cirúrgica (partículas com mais de 3 μm) ou de um respirador FFP2 ou N95 (mais de 0.04 μm) sugere e permite explicar este benefício observado. Acrescem ainda os efeitos físicos, nomeadamente o aumento da temperatura e da humidade do ar inalado através da máscara, que podem contribuir para atenuar a resposta alérgica. Assim, os alergénios que não sejam filtrados e, por isso, inalados, serão em menor número e induzindo resposta que possa ser, ainda que de forma ligeira, atenuada.

Na patologia respiratória, os benefícios da máscara não são exclusivos para a protecção de aeroalergenios nos indivíduos sensibilizados. Muitos residentes em cidades poluídas, ou com concentrações elevadas de micropartículas aerossolizadas, como em Pequim por exemplo, já usavam habitualmente máscara quando no exterior. Também aqui, desde que a máscara seja a adequada, e que se ajuste de forma eficiente ao seu utilizador, os benefícios estão demonstrados.

Para os alérgicos, a banalização do uso destes dispositivos de proteção vem trazer mais uma opção, muito válida, em contextos de atividades específicas num ambiente que, mesmo sem vírus, lhes pode ser extraordinariamente adverso. Principalmente pelos complexos prévios à pandemia para o uso de máscara em público e o que isso poderia significar.

Como legado, podemos também esperar um contributo adicional na diminuição do estigma no combate a doenças como a tuberculose e, sobretudo, a recomendação do uso de máscara em público aquando da gripe sazonal, de forma a quebrar parte das cadeias de transmissão que sobrecarregavam anualmente os serviços de saúde. Não será possível aceitar, igualmente, que qualquer pessoa com sintomas respiratórios aguarde numa sala de espera mal ventilada e sem máscara. A quebra de transmissão de vários organismos respiratórios associadas às medidas não farmacológicas é factual (Pranay et al. Open Forum Infectious Diseases, 2021) e, ainda que não seja expectável nem desejável mantê-las como um todo, as máscaras poderão ajudar a quebrar parte da transmissão em períodos sazonais típicos.

Sob o ponto de vista sociológico, a representação da máscara para a sociedade ocidental sofreu alterações: de uma visão pré-pandémica, em que a sua utilização estava associada a uma população vulnerável (como, por exemplo, doentes oncológicos) ou hipocondríaca, até uma visão pandémica, como sinal de proteção e respeito pelo outro. Esta perspetiva pandémica terá as suas repercussões no futuro, com a sensibilização da população em geral e dos profissionais de saúde, para as boas práticas na prevenção e controlo das infeções respiratórias, seja a nível comunitário ou nosocomial.

Ao fechar o capítulo da pandemia, poderemos refletir no que poderemos transportar de ganhos e boas práticas para um futuro melhor. A recomendação do uso mais generalizado de máscara em alguns contextos fará parte dessa evolução.

Bernardo Mateiro Gomes, Médico Especialista em Saúde Pública, Docente Universitário na FMUP/ISPUP
André Moreira, Médico Especialista em Imunoalergologia, Docente Universitário na FMUP/ISPUP/FCNAUP
David Peres, Médico interno de saúde pública e profissional de controlo de infeção

Os autores escrevem segundo o novo acordo ortográfico​

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