Um percurso dedicado às Ciências Veterinárias
Conte-nos um pouco sobre a sua trajetória pessoal, e sobre o que a levou a escolher as Ciências Veterinárias como área de estudo e profissão.
Sempre gostei especialmente das áreas de conhecimento relacionadas com a Biologia, a Medicina / Medicina Veterinária, Matemática e Física /Química, percurso que segui no secundário e onde tive sempre notas muito altas. Acabei por escolher a área das Ciências Veterinárias, por ser uma área abrangente que permite abraçar temas desde a clínica à cirurgia, mas também à investigação básica e aplicada. No dia em que tive de escolher a primeira opção de candidatura ao Ensino Superior, a minha mãe (Bióloga) ajudou muito na escolha. A minha mãe, Bióloga, assim como o meu avô, Médico, mas também cientista - influenciaram-me sempre para a paixão pela Ciência e pelo conhecimento / pensamento científico. Tirei o curso de Medicina Veterinária da Universidade Técnica de Lisboa (atualmente Universidade de Lisboa); tive ainda a oportunidade de fazer parte da minha licenciatura em Medicina Veterinária na Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade de Copenhaga, e dediquei o meu estágio à clínica e cirurgia de Animais de Companhia e Equinos. Como a Ciência e a Investigação são a minha paixão, iniciei, imediatamente após a licenciatura, o Doutoramento em Ciências Veterinárias, no Instituto Gulbenkian Ciência, com o Professor Hugo Gil Ferreira como orientador, em 1996. Nessa altura já o meu trabalho de investigação se identificava com a perspetiva One Health e com a noção que a Ciência deve ser transversal e multidisciplinar. Durante o Doutoramento, tive a oportunidade de ainda desenvolver o meu trabalho de investigação na Faculdade de Medicina, em Freiburg, no Instituto de Fisiologia, com a orientação do Professor Rainer Greger. Nesse entretanto, fui contratada pelo ICBAS; a partir desse momento, consegui sempre conciliar clínica com investigação básica e aplicada, quer no Ensino, quer na Ciência.
Consegue identificar 2 ou 3 marcos, na sua carreira profissional, mais relevantes para si?
Realmente há momentos da nossa vida em que tomamos decisões que marcam de forma definitiva o nosso trajeto. No meu caso foi o meu Doutoramento em Ciências Veterinárias e a minha formação em Freiburg, onde tive acesso a ciência e investigação com cientistas fabulosos e laboratórios com condições inexplicáveis. O segundo marco foi quando mudei a minha linha de investigação em 2003, inicialmente focada em estudos de eletrofisiologia aplicados à Fibrose Quística. Nessa altura, essa grande mudança foi especialmente impulsionada porque, após o meu Doutoramento, cruzei-me com colegas que, infelizmente, nunca souberam o que era Ciência de qualidade, nem ética na Ciência. Por isso, mudei radicalmente a minha área de investigação, afastei-me da mediocridade, e formei uma equipa multidisciplinar de investigação dedicada ao desenvolvimento de dispositivos médicos e terapias celulares no âmbito da Medicina Regenerativa, em Animais e no Homem. Esta mudança permitiu-me, mais uma vez, aceder e formar-me com investigadores muito relevantes, quer do Banc de Sang i Teixits em Barcelona, Espanha, quer no Regea Institute em Tâmpere, Finlândia, e perceber que há boa e má Ciência, e que cabe a cada um de nós participar de forma ética, correta, inventiva e de “corpo e alma” na boa Ciência.
O uso de células estaminais embrionárias, obtidas por transferência nuclear somática para uso terapêutico com o grupo de Ian Wilmut (ovelha clonada de Dolly), marcou o início da sua investigação. Pode explicar-nos um pouco o processo, os seus riscos/ benefícios e a sua aplicação clínica?
Tive o enorme privilégio de coorientar a tese de Doutoramento do Ricardo Ribas, juntamente com a Professor Mário Sousa e Professor Ian Wilmut, ambos investigadores marcantes e fenomenais. Foi um doutoramento que marcou um passo importante na minha careira, onde melhorámos a técnica de clonagem, ou transferência nuclear somática, inicialmente descrita pelo Professor Ian Wilmut, e obtivemos o primeiro animal clonado Português – o ratinho Figo. As células estaminais embrionárias, obtidas por transferência nuclear somática, têm um potencial regenerativo enorme; no entanto, têm alguns obstáculos éticos, e mesmo religiosos, quando o procedimento é feito especialmente com células / embriões humanos.
A utilização e manipulação de células-tronco embrionárias humanas, mesmo para uso terapêutico, levanta questões éticas e científicas que ainda perduram. Que alternativas existem?
Atualmente existem alternativas às células estaminais embrionárias, especialmente as células estaminais pluripotentes induzidas (iPSCs), as células estaminais mesenquimatosas de vários tecidos, especialmente de tecidos extra-embrionários como o sangue e o tecido do cordão umbilical, mas também da polpa dentária, membrana sinovial…
Como coordenadora de um grupo de investigação multidisciplinar em cirurgia experimental e medicina regenerativa, pode falar-nos sobre o trabalho que têm vindo a desenvolver, e qual o contributo do mesmo para a sociedade?
O nosso grupo de investigação é um esforço multidisciplinar em que Biologia celular e molecular, Física, Engenharia, Medicina, Medicina Veterinária e Bio-empreendedorismo se unem para fazer a diferença na Medicina Regenerativa. O objetivo final é avaliar in vivo o efeito terapêutico de terapias celulares (humanas e veterinárias), juntamente com dispositivos médicos e biomateriais inovadores na regeneração de tecidos, respondendo às necessidades da Clínica. Os nossos projetos têm sempre, como objetivo final, o desenvolvimento de produtos de engenharia de tecidos com base em células somáticas, de acordo com as melhores práticas delineadas pela Agência Europeia de Medicamentos. Neste momento, somos inventores de várias patentes pertencentes à Universidade do Porto, e de várias tecnologias / produtos já presentes no mercado nacional e europeu, como por exemplo um substituto ósseo para aplicação em regeneração óssea, processamento e criopreservação da polpa dentária de dentes definitivos para obtenção de células estaminais mesenquimatosas (MSCs) para aplicação clínica, de tubos-guia para reconstrução / regeneração de nervo periférico e de terapias celulares à base de MSCs da membrana sinovial e secretoma de MSCs do sangue e tecido do cordão umbilical para regeneração músculo-esquelética e articular em cães e cavalos. Esta última patente será ainda desenvolvida para aplicação clínica em humanos.
Conte-nos um pouco sobre os projetos financiados, atualmente em execução, nos quais participa ou lidera. Quais as suas temáticas e principais objetivos, e de que forma estes projetos se complementam?
Os vários projetos que temos em curso são projetos essencialmente construídos tendo em consideração a formação de consórcios entre a academia e as empresas farmacêuticas e de biotecnologia médica. Estes consórcios permitiram-nos desenvolver vários dispositivos médicos e terapias celulares que acabam por atingir o mercado, por serem sujeitos a processos regulamentares e de Qualidade, e por serem desenvolvidos em parceria com empresas com grande experiência nestas áreas de conhecimento médico. O nosso grupo de investigação tem grande experiência na testagem in vitro e in vivo destas novas terapias, permitindo uma validação pré-clínica e clínica robustas.
Qual acredita ser o fator mais importante para ter sucesso na angariação de financiamento competitivo?
Acima de tudo, participar de forma positiva e construtiva em consórcios e equipas multidisciplinares; sozinhos não conseguimos ser bons em todas as áreas, mas a simbiose entre investigadores, laboratórios e empresas / indústria permite atingir patamares incalculáveis na ciência aplicada.
Que conselhos daria a todos(as) aqueles que se encontram atualmente a desenvolver propostas de investigação, de forma a melhor se prepararem e responderem, de forma mais competitiva, a futuros concursos de financiamento de projetos de IC&DT em vários domínios científicos, como é o exemplo do concurso da FCT?
Nunca perderem o entusiasmo e procurarem sempre parcerias. Ter em atenção que, na Ciência, estamos sempre a aprender e a avançar no nosso conhecimento e que isso nunca se faz sozinho. E, acima de tudo, fazer Ciência com ética e seriedade e, se possível, sempre com alguma paixão.
Dado o contexto atual em que vivemos e o impacto da pandemia COVID-19, quais considera que serão alguns dos futuros desafios, relacionados com a ciência e a inovação, que a investigação enfrentará nos próximos anos?
A pandemia que ainda estamos a atravessar veio demonstrar, mais uma vez, que a Ciência e os Cientistas são peças fundamentais para a sobrevivência e para a saúde global, por isso, devem ser sempre acarinhados. A sociedade deve sempre apoiar a Ciência e o desenvolvimento tecnológico… Imaginem como seria esta pandemia sem a Ciência…
Na sua opinião, qual/quais o(s) principal(ais) passos ou políticas que o país deve adotar para ser uma referência europeia em termos de investigação na área da medicina regenerativa?
Entrámos numa era fabulosa, onde a Medicina Regenerativa, as Terapias Celulares e a Engenharia de Tecidos permitem não só recuperar e regenerar tecidos estruturais, mas também tecidos funcionais… Para além de serem também já relevantes para o tratamento de cancro, para a regeneração de tecidos / órgãos, cujo potencial regenerativo é limitado ou inexistente… É uma nova era da Medicina e da Medicina Veterinária que ainda necessita de estandardizar protocolos, validar ensaios pré-clínicos e clínicos e alargar o número de tratamentos compassivos, de modo a melhorar o bem-estar do Homem, mas também dos nossos animais.
Poderá consultar mais informações e contactos na página pessoal da investigadora, acessível aqui.
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