Distinguido com o Geoffrey Dyson Award 2022 pela International Society of Biomechanics in Sports
Sendo o primeiro português, em 34 edições, a conquistar o galardão internacional mais prestigiado na área da biomecânica do desporto – Geoffrey Dyson Award –, o que simboliza, para si, este prémio?
Trata-se do reconhecimento do trabalho de uma vida profissional, sempre ligada ao ensino, investigação e divulgação do conhecimento em Biomecânica (na Universidade do Porto, Faculdade de Desporto) e à prática desportiva (primeiro como treinador e, depois, como dirigente federativo e do Comité Olímpico de Portugal), procurando estabelecer tantas e tão consistentes pontes quanto possível entre a ciência e a prática. Mas este não foi um processo solitário; antes pelo contrário! Foi um caminho percorrido na companhia de colegas, colaboradores e estudantes notáveis, que verdadeiramente permitiram o crescimento da biomecânica do desporto na Universidade do Porto e no universo desportivo, com que vimos colaborando.
Fale-nos um pouco sobre o seu percurso científico na U.Porto, e da forma como este foi importante para a obtenção deste prémio.
O meu percurso na U.Porto tem já mais de 40 anos. Começou em 1978 com o ingresso no então Instituto Superior de Educação Física, como estudante, onde, depois dos cinco anos de licenciatura, ingressei como Assistente Estagiário. Realizei Provas de Aptidão Pedagógica e de Capacidade Científica (PAPCC) em 1987, e concluí o doutoramento em 1993, sempre na U.Porto. Então lecionava disciplinas de natação, mas o meu trabalho científico foi, desde o princípio, ligado à Biofísica e à Biomecânica. A assunção plena de responsabilidades académicas na área aconteceu em 1997, quando assumi funções como Professor Associado de Biomecânica. Prestei Provas de Agregação em 2004 e, no mesmo ano, tomei posse como Professor Catedrático. O caminho percorrido no século XX foi marcado por muitas dificuldades, desde logo decorrentes da reduzida tradição científica do ISEF (depois Faculdade de Ciências do Desporto e de Educação Física – FCDEF – e, finalmente, Faculdade de Desporto – FADEUP), que se traduzia também, naturalmente, numa confrangedora escassez de meios para a realização de investigação científica de qualidade. No início deste percurso, o meu companheiro de estrada era o André Costa, envolvido também na Biomecânica pela via do Atletismo (faleceu em 1993, num trágico acidente rodoviário quando regressava, exatamente, de um estágio de saltadores nacionais). Juntos, lá fomos conseguindo alguns apoios da faculdade e da Reitoria, que nos permitiram dar início a vivências internacionais (foi nesse tempo que nasceu a sólida amizade de ambos pelo Prof. Doutor Alberto Carlos Amadio, da Universidade de São Paulo, Brasil) e adquirir as primeiras soluções de recolha e leitura de imagens vídeo, mas, sobretudo, os primeiros meios informáticos que nos permitiram partir para a digitalização e modulação cinemática 2D de movimentos desportivos com código próprio: um computador Commodore Amiga 2000. Neste tempo, a disciplina de Biomecânica era lecionada por um Assistente Convidado, inicialmente não doutorado, pelo que os primeiros passos científicos foram guiados pelo saudoso Prof. Doutor José Ferreira da Silva, da Faculdade de Ciências, que acabou por assumir a regência da disciplina na nossa faculdade, e que aceitou orientar as minhas provas de APCC e o meu doutoramento. Até 1997, os meus esforços concentraram-se na natação e na biomecânica da natação, tendo conseguido uma razoavelmente forte aceitação da U.Porto na comunidade desportiva nacional e um também crescente reconhecimento na comunidade científica internacional da Biomecânica da Natação. Registe-se a curiosidade de, nesta, tudo ter começado muito pelo facto de, para além de tentar fazer investigação com alguma qualidade, ser também treinador e por não me cansar de teimar em levar a ciência para dentro de água (literalmente!). Só a partir daí, de 1997, é que impus a mim próprio a responsabilidade de “fazer outra biomecânica”, que não apenas da natação, ao assumir a responsabilidade pela área na U.Porto enquanto Professor Associado. Comecei, portanto, como “professor de natação que usava a biomecânica” para, depois, passar a “professor de biomecânica que também estudava a natação”, desse ponto de vista. O ano de 1997 foi também o ano de estreia das novas instalações da faculdade na Asprela, dando início a um processo transformacional avassalador. Foi como se o elevado potencial de todos na instituição, frenado durante anos, fosse subitamente libertado, e essa explosão catalisada por uma motivação exuberante para realizar e mostrar trabalho, afirmando a U.Porto no espaço académico e científico do desporto, em Portugal e fora de portas. Foi o despertar para um período magnífico, inesquecível, quase heroico. Daí a, em 2006, organizarmos no Porto o “congresso mundial” de Biomecânica e Medicina da Natação e a, em 2011, o “congresso mundial” de Biomecânica do Desporto, foi um passo natural, mas que antes nem ousávamos imaginar. O passo seguinte foi a criação de um espaço laboratorial dedicado à Biomecânica na U.Porto. Este tipo de infraestrutura é muito dispendioso e não é fácil de implementar de forma a que se possa tornar competitivo à escala nacional e, muito menos, internacional. Porém, depois de ter assumido as minhas primeiras responsabilidades em associações científicas internacionais em 2006 (no caso como membro do Steering Group Biomechanics and Medicine in Swimming, do International Council for Science in Sports, da UNESCO), como sequela do congresso do Porto, a ideia de que o impossível pudesse ser só um mito foi ganhando forma. Daí terem sido lançadas as bases do Laboratório de Biomecânica do Porto (LABIOMEP-UP), em 2009, integrando massa crítica e sinergias de seis faculdades da U.Porto. A ideia, rapidamente apadrinhada pelo então Vice-Reitor para a investigação e desenvolvimento, Prof. Doutor Jorge Gonçalves, era criar “o” laboratório de biomecânica da U.Porto, evitando redundâncias, racionalizando recursos e construído sinergias que valorizassem a massa crítica na área, que começava também a despontar em engenharia, em medicina, em medicina dentária, etc. O LABIOMEP-UP foi finalmente inaugurado em dezembro de 2012, instalado na Faculdade de Desporto, e desde aí venho assumindo a sua direção. Todo este percurso pautou-se por dois eixos fundamentais: um envolvimento muito comprometido na investigação científica, por um lado, e uma permanente, profunda e razoavelmente bem-sucedida intervenção prática no desporto, primeiro como treinador de natação e, depois, como dirigente federativo, também de natação, e do Comité Olímpico de Portugal. Enquanto treinador fui uma espécie de “peixe raro”; alguém que, exclusivamente pela via universitária (sem nunca ter sido nadador, treinador adjunto, ou ter realizado um curso de formação técnico de treinador que não a licenciatura em Educação Física), chegava a assumir a responsabilidade técnica do Futebol Clube do Porto, depois de ter passado pelo Centro Desportivo Universitário do Porto (CDUP) e pelo Grupo Desportivo SOPETE (GDS), na Póvoa de Varzim. E esse foi um momento mágico! Depois de vários anos tolhido por constrangimentos primários, chegava a um espaço de realização real de grandes objetivos; e os múltiplos recordes, os títulos, as internacionalizações, os reconhecimentos entre pares e o sonho Olímpico não se fizeram esperar. Sublinhe-se que, neste processo, o alter-ego científico não se apagou e estou certo de que o permanente envolvimento dos meus nadadores nos sucessivos projetos de investigação, me levaram, indubitavelmente, a conhecê-los melhor e a perceber de forma mais consequente como haveria de intervir junto de cada um. Ora, o Geoffrey Dyson Award da ISBS valoriza não apenas a carreira científica, mas, igualmente, os esforços de translação do conhecimento e de competências para o espaço de realização desportiva, pelo que acredito que ambos os eixos que nortearam a minha carreira acabaram por ser fundamentais para que tenham decidido atribuir-me o prémio.
Após a atribuição deste prémio, quais são as suas principais ambições ou objetivos para a sua carreira na investigação?
As mesmas de antes, sem dúvida! O que pretendo conseguir, com os meus colegas e os meus estudantes, é responder a tantas e tão novas e relevantes questões quanto sejamos capazes de suscitar, através de formas tão rigorosas e criativas quanto possível, alargando os horizontes do conhecimento e da respetiva transferência para a comunidade, bem como as possibilidades de desenvolvimento tecnológico que valorizem a preparação e a prática desportiva. E, obviamente, fazê-lo dignificando a Universidade do Porto e a Faculdade de Desporto, se o engenho no-lo permitir.
Sendo diretor do LABIOMEP-UP – Laboratório de Biomecânica do Porto, pode falar-nos um pouco do trabalho que se tem desenvolvido neste laboratório?
Claro, com muito gosto! Mesmo porque o LABIOMEP-UP terá sido, se não o principal, por certo um dos principais catalisadores da atribuição deste prémio. O LABIOMEP-UP foi criado, como referi anteriormente, em 2012, tendo nascido da necessidade partilhada por um grupo de docentes da Universidade consagrados à Biomecânica (Mário Vaz, da FEUP/INEGI, Reis Campos, da FMDUP/INEGI, e eu próprio) e confessada reciprocamente num almoço, de boa memória, que foi sequela de uma aula que me convidaram a ministrar no Programa Doutoral em Bioengenharia da FEUP/ICBAS: todos precisávamos de um laboratório devidamente equipado para prosseguir com os nossos objetivos em ciência e em prestação de serviços de base científica e tecnológica em biomecânica. E aí foi decidido que procuraríamos juntar outros empenhos ao projeto, num tempo em que tanto se falava de racionalização de recursos e estabelecimento de sinergias entre Unidades Orgânicas da U.Porto. Foram vários os colegas, de outras e das nossas Faculdades, que se juntaram à ideia e que acabaram por dar corpo a um dos primeiros Centros de Competências verdadeiramente transversais e interdisciplinares da U.Porto, se não o primeiro. A riqueza do LABIOMEP-UP reside, naturalmente, no vasto parque de equipamento de topo de que dispõe e que vem conseguindo atualizar, mas, sobretudo, nessa massa crítica diversificada, polimórfica e polissémica, que entusiasticamente entende o valor da partilha na diversidade de olhares sobre fenómenos de uma mesma natureza: forças e o efeito de forças em espaço biológico. São perspetivas do desporto, da medicina, das engenharias, das ciências básicas…, até da psicologia, das ciências da educação e das artes. E, com naturalidade, os projetos que acolhemos traduzem igualmente essa diversidade, mas não se encerram nesses territórios. Espalhámo-nos também por outras instituições, exteriores à U.Porto, com a inequívoca intenção de envolver o tecido produtivo (empresarial, tecnológico, clínico, desportivo, artístico, etc.). As sinergias já estabelecidas são múltiplas: com hospitais, clínicas, companhias de seguros, sociedades de advogados, sociedades profissionais diversas, clubes, associações e federações desportivas, o Comité Olímpico de Portugal, empresas têxteis e da fileira do calçado, Centro Tecnológico do Calçado de Portugal (CTCP), Centro Tecnológico da Indústria Têxtil e do Vestuário (CITEVE), centros tecnológicos de outros países (Tecnália, Espanha), startups e spin-offs da U.Porto, instaladas ou não na UPTEC, empresas tecnológicas (Fraunhofer Portugal, Kinetikos, Ridel Portugal), empresas de implantes cirúrgicos, como a Spine – Brasil, ou de desenvolvimento e comercialização de dispositivos de apoio à mobilidade comprometida, como Jumper, Brasil, ou a OrthosXXI, empresas âncora de tecnologia Biomecânica ou Biofísica, como a Plux, a Delsys, a Qualisys, a C-Motion, etc.
Na sua opinião, dos projetos desenvolvidos pelo LABIOMEP-UP, consegue identificar e falar-nos um pouco sobre aquele, ou aqueles, que considera terem tido um grande impacto, nomeadamente ao nível de prémios ou criação de start-ups?
Posso tentar, apesar de a generalidade dos projetos ter sido decisiva para o percurso realizado, mas posso destacar alguns, claro! Começaria talvez pelos projetos na área do calçado, na sua maioria em articulação com o CTCP, que foram já três projetos em co-promoção: o Stressless Shoe, o NewWalk e o Famest, tudo projetos centrados na valorização de calçado, ou componentes do calçado português, através da otimização biomecânica (e, portanto, também do conforto e desempenho). Foram projetos que envolveram palmilhas, sapatos de moda, sapatos de trabalho, calçado militar, calçado para pacientes com necessidades particulares, como diabéticos, por exemplo, e, naturalmente, calçado de desporto. Foram também marcantes para a vida do LABIOMEP-UP os projetos desenvolvidos com a indústria têxtil, desta feita catalisados pelo CITEVE, alguns ainda em curso, mas de que destacaria a criação de um fato sensorizado que permite extrair métricas fisiológicas (frequência cardíaca e respiratória, ECG, temperatura, sudação), movimentos intersegmentares, atividade elétrica muscular (EMG), tensão aplicada sobre o têxtil, etc. Trata-se de uma solução ousada, potencialmente modulável e costumizável, com aplicações ao desporto, à ergonomia e à saúde, à imersão em realidade aumentada e na indústria dos jogos de computador interativos. Territórios onde se podem encontrar concorrentes como, por exemplo, a Tesla. Do projeto anterior saiu uma das patentes do LABIOMEP-UP, mas, antes, dois outros projetos, estes mais explicitamente no domínio do desporto, tinham já resultado em pedidos de patente. Estou a lembrar-me do desenvolvimento de um bloco de partida instrumentado para provas de natação, que permite medir as forças e momentos de força aplicados por ambos os membros superiores e inferiores em todos os tipos de partidas (ventrais e dorsais) de natação. Também conseguimos o desenvolvimento de um sensor bidimensional de fluxo (velocidade de escoamento) para desportos aquáticos (surf, remo, canoagem, vela, natação, etc.), mas com inequívocas aplicações aeroespaciais e de monitorização do estado do mar ou de outras massas de água. Daqui resultou a AllinSurf, de que resultou a mOceanSense e, posteriormente, a Ridel Portugal, atualmente instalada na UPTEC Polo do Mar. A parceria com a Tecnália (centro tecnológico espanhol) no projeto BABEN (validação de um dispositivo portátil para avaliação da estabilidade da equilibração ortostática bípede e controlo postural) é também merecedora de referência, bem como outros projetos, nomeadamente de prestação de serviços nas áreas da saúde e do desporto. No primeiro caso destacaria a certificação do LABIOMEP-UP enquanto laboratório de avaliação clínica da marcha e a sua subsequente integração como fornecedor de serviços clínicos ao SNS, com especial relevância para os espaços das afeções neurodegenerativas e outros distúrbios neuro-motores, da medicina física e reabilitação, da ortopedia e da medicina desportiva. No segundo, realço o acompanhamento das seleções nacionais de natação de Portugal (que já se alonga por dois ciclos olímpicos), do Qatar e da Tailândia, bem como colaborações com o Brasil e Espanha. Enfim; é impossível falar de todos…
Sendo o LABIOMEP-UP um laboratório multidisciplinar, que engloba investigadores oriundos de várias faculdades da U.Porto (FADEUP, FCUP, FEUP, FMUP, FMDUP e ICBAS), pode falar-nos um pouco sobre os benefícios de trabalhar com profissionais de várias áreas?
Acho que já falámos sobre isso… Mas nunca será demais sublinhar a premência de se entender a Universidade como um espaço aberto que estuda o real sem muros e complexos de território. É curioso pensarmos no tortuoso caminho da história das ciências e entendermos que depois da fragmentação exsudada da Filosofia e da Filosofia Natural, se assiste hoje como que a uma contração na interdisciplinaridade e, sobretudo, na transdisciplinaridade, ao mesmo tempo que prolifera a informação, a acessibilidade à informação e as possibilidades fantásticas de processamento e seleção da mesma em tempo recorde. Estamos em plena revolução das ciências… da Ciência. De facto, não é mais apenas a Física que persegue a explicação do “Tudo”, conciliando o aparentemente inconciliável, mas todos os territórios do saber. E isto tem inequívocas repercussões na vida e na estrutura e organização das universidades. Se não as está a ter já – e creio que sim! -, virá certamente a tê-las no futuro próximo. E, humildemente, penso que, à sua escala, o LABIOMEP-UP reflete exatamente isso: procuramos olhar a biomecânica com os olhos, as inquietações, as certezas, as dúvidas e a curiosidade de muitos; diria mais, de TODOS! Assim queiram dar uma espreitadela… e jogar o jogo da fertilização cruzada de competências e saberes. É essa a grande vantagem, que às vezes, acredito eu, nos põe quase à frente do nosso tempo e nos proporciona alguma singularidade…
O LABIOMEP-UP é considerado uma referência e um dos melhores laboratórios de Biomecânica da Europa. Quais são as principais dificuldades em mantê-lo na linha da frente na investigação em biomecânica?
Fico muito feliz ao ouvir esses qualificativos, que só nos responsabilizam, mesmo sabendo que isso só será verdade em função de quão lato puder ser o conceito de “um dos”. Mas falando de dificuldades, não tenha dúvidas de que somos, por certo, campeões! Sempre fiel à sua filosofia e missão iniciais, o LABIOMEP-UP está hoje inserido numa Faculdade e numa Universidade portuguesas. Por isso está também necessariamente entretecido no emaranhado dos constrangimentos impostos à academia e ao país, os quais estamos já todos cansados de ouvir e discutir até à exaustão. Fundamentalmente temos de crescer para sermos competitivos e sobrevivermos e temos concomitantemente de nos autofinanciarmos para crescermos; em suma, temos de nos conformar com a necessidade de “pagar para trabalhar”. Mas isso, no LABIOMEP-UP, é visto, sempre que possível, como um desafio e uma oportunidade, não necessariamente como uma ameaça. Todavia, há, de facto, muitas coisas que gostávamos de fazer e não podemos; mas isso não é necessariamente mau: faz-nos não parar de sonhar! Pode ser que um dia mereçamos que um mecenas nos bata à porta e nos permita sonhar ainda mais alto.
Para além de uma carreira universitária que já vai em quase 40 anos, foi treinador de natação e assumiu funções como dirigente federativo e do Comité Olímpico de Portugal. Como é que o desporto de alto rendimento pode beneficiar da biomecânica?
Parece-me quase evidente, mas certamente será viés de paixão... A Biomecânica estuda o movimento (a forma do…) ou a ausência de movimento nos sistemas biológicos, bem assim como os fatores que o determinam (forças e momentos de força, internos e externos). Serve-se ainda de disciplinas convergentes, como a bioenergética, para permitir perspetivar a otimização desses movimentos e equilíbrios em termos de minimização da energia requerida, permitindo assim a sua realização com níveis mais elevados de potência (normalmente associada a maiores velocidades, ou vencendo cargas superiores em intervalos de tempo similares) ou a sua sustentação no tempo. Mas este processo de otimização estende-se ainda aos domínios da precisão, da plasticidade e da estética e enquadra também a profilaxia de situações de fragilização e rotura. E uma vez que, no desporto como nas mais diversas dimensões da vida, o movimento humano (e animal) se faz normalmente de forma mediada por interfaces várias (pisos, sapatos, engenhos e dispositivos desportivos), também a adequação dessas nesse esforço de otimização constitui prioridade da biomecânica do desporto. Lidamos, portanto, com a otimização do movimento em ordem à maximização da performance num dado contexto bioenergético e de matérias e equipamentos de interface e fazemo-lo procurando minimizar episódios de lesão. Pelo lado da Medicina Desportiva, a Biomecânica perspetiva ainda o entendimento dos mecanismos da lesão desportiva e o desenvolvimento e otimização de meios, materiais e métodos terapêuticos, cirúrgicos e conservadores. Como se percebe, mesmo que discretamente, a biomecânica está (tem de estar, mesmo que às vezes quase que só implicitamente) no desporto todo. As exceções apenas se encontrarão onde, no desporto, o movimento ou o equilíbrio forem irrelevantes. Talvez no xadrez. Não será, portanto, só o desporto de alto rendimento que beneficiará da biomecânica; mas seguramente que a breve trecho esse não existirá sem a biomecânica, quanto mais não seja na estrutura conceptual com que o treinador e o praticante (mas não só) perspetivam e avaliam as suas atividades. Entretanto, o desporto de alto rendimento, enquanto espetáculo de massas, poderá ainda vir a beneficiar da biomecânica numa outra vertente: na da potenciação da interação entre o decurso da ação e o espectador, seja in situ, seja nas transmissões televisivas e no streaming. Cada vez mais será possível disponibilizar, mesmo em tempo real, dados até aqui escondidos e que em muito valorizarão o espetáculo e ajudarão nas sábias discussões a que nos habituamos acerca de quem fez e porquê e o que fez no desporto.
Tendo em conta a atual crise decorrente da pandemia COVID-19, quais considera serem as oportunidades que a área do desporto, e, em particular, a biomecânica, pode aproveitar? Onde estão estas oportunidades, na sua opinião?
Estou convencido que a crise sanitária imposta pela COVID-19 (e as demais crises associadas) foi sobretudo uma ameaça. Todavia, como todos fomos aprendendo, resilientemente, que onde há ameaças há oportunidades, não restam dúvidas de que importa procurar onde elas se escondem. Certamente que os domínios associados à recolha de dados e à sua transmissão à distância em tempo útil, ou mesmo em tempo real, terão podido encontrar, neste quadro constrangido de relação e comunicação interpessoal direta, uma janela de oportunidade. Recolher, transmitir e processar dados à distância, com reduzida intervenção humana e, inclusivamente, em tempo real, constituirão eles próprios domínios facilitadores de oportunidades à sociedade, seja a sociedade em geral, ou mais especificamente as comunidades científica e desportiva, que cada vez mais dependem da informação. Em contrapartida, porém, a vertigem da informação suscita questões éticas seriíssimas, que não podem ser esquecidas, de todo! Temos obrigação de construir um futuro que não faça corar George Orwell…
De que forma perspetiva a carreira científica em Portugal, e de que modo está esta associada à captação de financiamento?
Penso que, em Portugal, a realização de carreiras em ciência, no futuro, vai continuar, como hoje, a depender em larga medida da capacidade de cada um, ou de cada grupo, para captar financiamento. Essencialmente cada investigador terá de “ganhar para trabalhar”; o que não é o mesmo de “ganhar por trabalhar” (apesar de se poder “retorcer” este quadro argumentativo e tudo acabar em bem…). A ideia não é totalmente perversa, na medida em que impõe, ab initio, uma dimensão competitiva ao processo de produção científica, que se traduz (ou deveria traduzir) em alocar recursos àqueles que melhor mostram fazer bom uso deles. Mas não há bela sem senão! Acontece que os investigadores acabam por passar grande parte do seu tempo a redigir e submeter projetos a agências de financiamento, tempo que não é totalmente identificável como tempo de investigação propriamente dito, traduzindo-se, na minha perspetiva, numa imposição de baixa eficiência na gestão do tempo alocado à Ciência. Hoje, inclusivamente, despontam atividades empresariais dedicadas à elaboração e submissão de projetos com grande acolhimento por parte das instituições de investigação científica, bem como o recrutamento de profissionais exclusivamente dedicados a essa tarefa, exatamente porque parecem permitir alijar o extraordinário trabalho burocrático associado à captação de financiamento. Por outro lado, o acesso a financiamento está longe de ser equilibrado entre áreas do saber. Veja-se, a título de exemplo, que o financiamento à investigação em Ciências do Desporto pela FCT corre na área das Ciências da Saúde, não dispondo, como no passado, de área própria. Naturalmente que, neste contexto, não se pode estranhar a multiplicação de vieses e de casos gritantes de injustiça. Isto para já não falar de quão difícil é comparar o mérito científico entre áreas do conhecimento com níveis de produção distintos, com volumes de publicação e de citação também distintos e, por isso, com índices “h” também fatalmente diferentes. Estou convencido que os jovens terão de estar muito atentos às possibilidades que se lhes ofereçam de integrarem desde cedo grupos de investigação muito produtivos, de tal forma que possam ir construindo um CV relevante que, depois, lhes permita serem minimamente competitivos ao concorrerem a financiamento que lhes garanta alguma autonomia. Sem esse caminho, será muito difícil vir a construir uma carreira em ciência e, particularmente, em Ciências do Desporto.
Poderá consultar mais informações e contactos na página pessoal do investigador, acessível aqui.