IR do projeto DRAWinU
Fale-nos um pouco sobre a sua trajetória pessoal, e de quando e como surgiu o seu interesse pelo desenho.
Como é um vulgaríssimo lugar-comum dizer-se nestas situações, o meu interesse pelo desenho vem desde pequenino! Refiro aqui o meu interesse pelo desenhar, pelo fascínio de ir vendo surgir no vazio do papel formas, marcas, imagens que replicavam quer o mundo “exterior”, quer o meu universo imaginário. O meu interesse por tentar entender o que é o “Desenho”, é uma consequência direta de dois fatores: por um lado, pelo facto de eu ser fundamentalmente um “desenhador” (mesmo como artista plástico, sou prioritariamente, um cultivador do desenho), mas também de eu ser um professor de Desenho. E se sou professor disso… convém que tente saber mais alguma coisa sobre o assunto, sobre o que “isso” é.
Consegue identificar 2 ou 3 marcos, na sua carreira profissional, mais relevantes para si?
Consigo identificar alguns marcos no meu percurso académico, mas o que me parece mais relevante terá sido o meu papel em construir/insistir, dentro da FBAUP, num entendimento mais alargado, mais expandido do que é o desenho, não só como meio singular da expressão artística, mas como um dispositivo que é transversal ao campo artístico, dispositivo que, atravessando os campos das artes, das ciências, da comunicação, da expressão, do projeto, da especulação e do pensamento visual, consegue criar uma teia de relações, de plataformas unificadoras e uma rede de cumplicidades. O desenho não se esgota, centra e fecha na atividade artística, antes, pelo contrário, apresenta-se muito mais diversificado e amplo, abrindo-se como instrumento privilegiado para o entendimento do que é visualizável, da organização, da especulação visual e da (base da) comunicação/expressão. O Desenho não está subjugado aos ditames, estratégias e interesses do campo artístico, é transversal e, se quisermos entender a sua potência como entidade, não o podemos encerrar nesse território (a Arte)… Esse uso diversificado foi mostrado na exposição “Ver, querer ver, dar a ver. Desenhar entre fronteiras na Universidade do Porto”, organizada por nós (grupo de investigação) na Reitoria da U.Porto, entre julho e setembro de 2021, e inteiramente organizada com desenhos provenientes de outras faculdades e centros de investigação da U.Porto, mas exteriores ao âmbito estritamente artístico.
Fale-nos um pouco do projeto DRAWinU: Drawing Across University Borders - Learning, Researching and Communicating Through Drawing in the University. Qual é a sua missão e quais os seus objetivos?
O projecto DRAWinU pretende, num primeiro momento, recolher, catalogar e analisar a presença dos usos e funções, nas suas mais variadas formas, do território gráfico a que chamamos desenho: esquemas, anotações, esboços, ilustrações nas suas mais variadas formas, desenhos de comunicação, desenhos como instrumento projetual, desenhos de visualização dos universos micro e do macro, desenhos de especulação, etc. O desenho existe na U.Porto, mesmo que, muitas das vezes, quem o utiliza, não tenha disso consciência. Numa segunda fase, trata-se de propor workshops interdisciplinares e transdisciplinares, onde se trabalhará, fundamentalmente com estudantes das denominadas áreas STEM (ciências, tecnologia, engenharia e matemática), competências do desenho fundamentalmente ligadas a processos de visualização e de comunicação visual, destruindo a ideia pré-concebida de que o desenho é uma questão inata de habilidade. Toda a gente desenha ou, pelo menos, desenhou, quando era criança ou quando necessita de registar ou comunicar algo que é do domínio do visual: o rascunho de um mapa, de um percurso, por exemplo. A competência do desenho em produzir uma imagem clarificada (veja-se a expressão “queres que te faça um desenho?” como um exemplo vox populi da qualidade do desenho em tornar claro o que é complexo), é uma competência de grande rentabilidade em processos de ensino/aprendizagem (as ilustrações dos manuais e compêndios). Pretendemos avançar com a hipótese de colocar os estudantes (que estudam com base nas imagens), a serem eles próprios os “produtores” dessas imagens, i.e., a aprenderem desenhando. Tal como se escreve para entender e memorizar, desenhar-se-á pelas mesmas razões. Uma terceira e última fase avançará com o cruzamento das linguagens artísticas e científicas, onde os investigadores, que também são artistas, trabalharão em projetos e equipas transdisciplinares, havendo já, mesmo dentro da U.Porto, algumas experiências pioneiras neste campo.
Qual a pertinência social e científica do projeto DRAWinU, nomeadamente, no alavancar de estratégias de ensino e aprendizagem nas universidades?
Da experiência e dos testemunhos recolhidos na exposição "Ver, querer ver, dar a ver. Desenhar entre fronteiras na Universidade do Porto" constatamos que, por razões e funções diferenciadas, alunos e professores desenham. Uma das características fundamentais e estruturantes do desenho é a sua capacidade de síntese, i.e., de enfatizar o que é relevante e de excluir o que o não é (ao contrário da imagem fotográfica que, a priori, estabelece para qualquer zona da imagem o mesmo grau de informação), e, em consequência, de tornar mais simples o que é visualmente confuso e/ou complexo. Esta qualidade tem sido exemplarmente utilizada na comunicação em ciência e em todas as variantes da “ilustração científica”. Esse exercício do “ver claro” que o desenho propicia, é um potente instrumento de aprendizagem para os alunos, mas também de ensino para os professores. O Desenho não é uma ciência, não é uma “linguagem”, não é uma “arte”, não é um método, mas é o único meio que (ainda) temos de, rapidamente, visualizarmos, de colocarmos em imagem o que imaginamos nas nossas mentes.
Pode falar-nos do trabalho que se tem desenvolvido no Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedade (i2ADS), e sobre os desafios atuais que o instituto enfrenta?
Segundo o meu colega Paulo Luís Almeida, diretor do centro de investigação, o foco da investigação do i2ADS é o impacto prático e educativo da arte e do design na sociedade. É a única unidade financiada em Portugal conjunta entre o campo das Belas Artes (Artes Plásticas, Desenho, Design e Estudos Artísticos), da Música e das Artes do Espetáculo. O i2ADS tem como principais objetivos a criação de uma cultura de investigação partilhada entre as diversas áreas artísticas que o compõem, e a promoção do debate sobre os enquadramentos social, cultural e tecnológico da arte e do design. Um dos principais desafios é a internacionalização dos projetos de investigação artística em curso. O outro desafio é a afirmação da investigação artística como tendo um potencial único no desenvolvimento do "triângulo do conhecimento" - educação, investigação e inovação, e nas dinâmicas de inclusão e coesão social. A Declaração de Viena em Investigação Artística, publicada no final de 2019, e que o i2ADS subscreve, veio contribuir decisivamente para o entendimento deste espaço particular, de forma a sensibilizar futuras decisões políticas, agências de financiamento e instituições de investigação para as transformações que ocorreram nas duas últimas décadas.
Que parcerias/acordos tem o i2ADS atualmente com outras entidades, em termos de investigação, e qual o grau de importância desses acordos?
Ainda usando as informações prestadas pelo diretor do centro, o i2ADS é membro institucional da Society of Artistic Research (SAR), uma plataforma de investigação artística que abrange uma comunidade de 16000 investigadores a nível global, de várias áreas. Foi também o criador e dinamizador da Network 29 de Educação Artística, da European Educational Research Association. Colabora ainda com diversos centros de investigação nas denominadas áreas STEM, em projetos conjuntos. Cada uma destas parcerias tem a sua importância. Por um lado, as redes no campo artístico e educação artística potenciam a criação de projetos de investigação e educativos conjuntos. As parcerias com áreas STEM revelam a consciência progressiva que a arte e o design contribuem para a criação de conhecimento e potenciam a sua disseminação, indo ao encontro de iniciativas europeias como a STARTS (Ciência, Tecnologia e Artes) ou o movimento global STEAM (Ciência, Tecnologia, Engenharia, Artes e Matemática). Estas parcerias são inovadoras ao apoiarem residências de médio e longo prazo para artistas em ambientes científicos para promover a colaboração sustentável entre artistas e cientistas.
Nos últimos anos, o i2ADS tem vindo a afirmar-se, a nível nacional, como uma das unidades de investigação na área artística com mais produtividade de investigação. Quais as temáticas e linhas de investigação atualmente mais abordadas na área criativa?
O centro de investigação, ainda segundo o seu diretor, concluiu recentemente uma revisão das suas orientações estratégicas, no sentido de identificar as 6 prioridades para os próximos 5 anos:
Computação, Práticas Híbridas e Cultura
Desenhar entre Disciplinas
Educação Artística, Crítica e Sociedade
Interculturalidade e Sociedade
Prática Artística, Política e Envolvimento Social
Produção Artística, Processos e Estudos Tecnológicos
Numa era digital em que cada vez mais os profissionais utilizam a tecnologia para agregar elementos criativos e construírem artes únicas a partir de fotografias, o que se observa no desenho tradicional (desenho à mão livre), i.e., no desenvolvimento de pensamento criativo, imaginação, organização espacial e pensamento visual?
O “desenho à mão livre” também se faz em ambientes digitais. Basta ver muito do software de tratamento de imagem que existe para se perceber que este tipo de software pretende replicar os modelos analógicos. Se, como refere Wittgenstein, “os limites do meu pensamento são os limites da minha linguagem”, quanto mais ampla for a disponibilidade da “linguagem”, mais aberto e amplo será a possibilidade do pensar. Não me preocupa o “digital”, preocupa-me é o desconhecimento e a ignorância. Mas a questão está bem colocada, pois assistimos cada vez mais ao exercício da manipulação de imagens pré-existentes, e cada vez menos ao exercício (muito mais exigente) da criação da imagem e duma relação direta (não mediada) com o mundo. E é também aqui que a experiência da aprendizagem do desenho cria e desenvolve uma literacia visual e uma “visão” do mundo.
Tendo apresentado várias exposições individuais. Qual considera ser a obra de arte mais especial? Pode partilhar uma fotografia e falar-nos um pouco sobre a obra?
Para esta pergunta permitam-me que responda com uma citação do pintor Júlio Pomar: “Se a pintura fosse redutível à palavra, bastava-nos ser ceguinhos e ouvir os relatos”. Evidentemente é uma frase irónica, mas que pretende resistir e quebrar a hegemonia do verbal, da palavra, quando se trata de “assuntos” visuais. Mas não há hipótese da palavra substituir a imagem: se “uma imagem vale mil palavras”, esgotava aqui com essas mil palavras os limites da paciência dos leitores (uma pequena experiência que faço com os meus alunos do 1º ano: pedir a um aluno que descreva, exclusivamente pela palavra, uma escada em caracol; pedir a um outro aluno que descreva a mesma escada, mas com um gesto. O primeiro aluno não consegue, o segundo consegue-o facilmente).
Qual/quais o(s) principal(ais) passos ou políticas que o país deve adotar com a finalidade de promover investigação na área artística e oferta de programação e divulgação de arte?
Não se fazem omeletas sem ovos! O problema é de difícil solução, pois Portugal é, tradicionalmente, um país pobre, e é-o também em indicadores culturais! O reconhecimento de que a cultura é um fator de consciência civilizacional, crítica e implicativa com a vivência e a cidadania, não está, historicamente, inscrito no nosso ADN. Como exemplo, façamos a comparação com os nossos vizinhos espanhóis: enquanto eles “têm” Altamira, nós “temos” Foz Côa; enquanto eles têm nomes nas artes plásticas como Velásquez, Goya, Picasso, Tapiés, nós temos… Veja-se a quantidade e a qualidade de estruturas culturais (por exemplo, museus) que existem em toda a Espanha, e compare-se com Portugal (Portugal deve ser o único país ocidental que teve um museu de arte contemporânea antes de ter um museu de arte moderna, e perceba-se como este facto é uma perversão e um sintoma). Veja-se a pujança do investimento espanhol na cultura e a consciência do seu benefício.
O país sofre de uma iliteracia visual crónica. O que é preciso fazer? Imensa coisa!
Poderá consultar mais informações e contactos na página pessoal do investigador, acessível aqui.