Investigadores U.Porto

U.Porto Reitoria SIP
Lara Sousa
Centro de Astrofísica da Universidade do Porto (CAUP) / Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço (IA)

Investigação em defeitos cósmicos, ondas gravitacionais e física de partículas


Fale-nos um pouco sobre o seu percurso científico na U.Porto e no Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço.
Tirei a licenciatura em Física/Matemática Aplicada (Astronomia) na U.Porto em 2006 e, depois de um mestrado em Campos Quânticos e Forças Fundamentais no Imperial College – London (Reino Unido), voltei à U.Porto para fazer o meu doutoramento no Centro de Física do Porto em 2008. Em 2012, juntei-me ao CAUP como investigadora, primeiro com uma bolsa de pós-doutoramento e, desde 2018, com um contrato de investigação. Em 2015, o CAUP e o Centro de Astrofísica e Astronomia da Universidade de Lisboa juntaram-se para formar o Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço (IA), uma infraestrutura de investigação de dimensão nacional que inclui a maioria dos investigadores desta área (e a que se juntaram, em 2021, investigadores do Observatório Geofísico e Astronómico da Universidade de Coimbra). Faço parte desta equipa de investigação desde a sua fundação.

Como é seguir uma carreira em astrofísica e estudar defeitos cósmicos, ondas gravitacionais e física de partículas?
Não há uma carreira única em astrofísica. A investigação nesta área pode envolver trabalho teórico, computacional, observacional, análise de dados e até de engenharia e instrumentação. Muitas vezes envolve um pouco de tudo. No meu caso, que faço investigação em cosmologia – o ramo da astrofísica que estuda o universo como um todo –, o trabalho é bastante teórico. Mete muita física, muita matemática e alguma programação. Mas tenho-me mantido sempre ligada ao lado mais observacional da cosmologia, já que é através da observação que as diferentes possibilidades se podem testar. O meu trabalho está particularmente focado nos instantes iniciais da vida do universo. O universo primordial era extremamente quente e denso, e governado, por isso, pela física de partículas. Era, na realidade, tão quente e denso que as leis da física seriam diferentes e as interações fundamentais – a gravidade, a força eletromagnética e as forças nucleares fraca e forte – estariam, provavelmente, unificadas. Durante a evolução do universo, estas interações foram-se separando e as leis da física foram-se alterando. Nestes processos dramáticos de mudança podem formar-se defeitos cósmicos – isto é, regiões do espaço em que as leis da física não mudam da mesma maneira – que sobreviveriam até aos dias de hoje. Estes defeitos são, de certa forma, fósseis do universo primordial e detetá-los ajudar-nos-ia a desvendá-lo e, através dele, revelar a física fundamental. Para isso, no entanto, é preciso perceber que marcas podem deixar nos diferentes instrumentos que usamos para observar o universo e isso implica, necessariamente, compreender a física dos defeitos cósmicos e a sua evolução. É nisto que tenho vindo a trabalhar já desde o doutoramento.

Qual foi a descoberta que fez durante o seu percurso profissional que mais a marcou?
Em ciência moderna e, em particular, na ciência fundamental, que lida com “grandes questões”, o conceito de descoberta é relativo. Passam muitas vezes décadas desde que uma ideia é proposta até que seja validada observacional ou experimentalmente. Entretanto, a ideia inicial vai evoluindo, com a contribuição de muitos, e vai-se desenvolvendo. Muitas vezes tem-se também de desenvolver nova tecnologia para a poder validar. A descoberta é, então, um processo coletivo, em que muita gente contribui com uma peça para resolver o puzzle. A nível pessoal, diria que a minha contribuição mais importante para comunidade científica, por ser a mais consequente, foi ter desenvolvido um modelo para calcular a radiação gravitacional de fundo gerada por cordas cósmicas (um tipo de defeito) que abandona simplificações que foram usadas durante décadas. Este modelo permitiu não só melhorar as previsões para os modelos mais simples de cordas, mas também olhar para as cordas previstas em modelos mais realistas de física de partículas e de cosmologia – uma consequência que inicialmente não antevi. Isto abre a possibilidade de usar defeitos cósmicos e ondas gravitacionais para desvendar detalhes da física de partículas que não podemos ainda estudar com aceleradores de partículas (é, aliás, este o objetivo do projeto UNCOVER, que lidero). Mas é isto uma descoberta minha e dos meus colaboradores? Diria que não. A existência de cordas cósmicas foi proposta há mais 50 anos e, neste período, muitos contribuíram (e continuam a contribuir) para que o nosso conhecimento sobre elas chegasse ao ponto em que esta proposta é possível. Além disso, a maioria das pessoas falaria de descoberta se/quando a existência de cordas cósmicas se confirmar.

Dos projetos onde esteve envolvida, consegue identificar e falar-nos um pouco sobre aquele, ou aqueles, que considera terem tido um grande impacto na sociedade?
Nesta área não são só as descobertas que podem levar décadas: o impacto na sociedade – para além da pura e simples evolução do conhecimento, que não é de desprezar – também demora, muitas vezes, a fazer-se sentir. Quando Albert Einstein propôs a Teoria da Relatividade Geral estava longe de saber que, décadas mais tarde, esta seria essencial para que o sistema GPS funcionasse com precisão. Muitos são os avanços da física fundamental que levaram, anos mais tarde, a avanços significativos na tecnologia, na medicina, na computação e até na economia. Por outras palavras, a ciência fundamental é que cria as bases para que a ciência mais aplicada possa mudar a sociedade. Mas isto não quer dizer que não sinta nunca um impacto imediato na sociedade. Sinto-o, por exemplo, no contacto com os alunos e nas atividades de divulgação e de promoção da cultura científica. O IA tem um grupo de Comunicação de Ciência muito ativo e eu (tal como muitos outros investigadores) participo regularmente nas suas atividades – dando palestras para diferentes públicos, escrevendo artigos de divulgação, participando em sessões de esclarecimento, mesas redondas... Em 2021, no âmbito do projeto científico "À procura de cordas cósmicas e outros defeitos topológicos com ondas gravitacionais", financiado pela FCT, desenvolvi, em colaboração com a Noitarder – Associação Cultural o projeto Ruído, uma peça de teatro de divulgação científica sobre cosmologia e ondas gravitacionais. O Ruído foi apresentado no Planetário do Porto e 6 das suas 7 récitas tiveram lotação esgotada. Estas atividades foram, muitas vezes, o primeiro contacto que as pessoas tiveram com estes temas.

No âmbito do trabalho que desenvolve, gostaria de partilhar com a comunidade científica da U.Porto algumas curiosidades sobre o Espaço?
A coisa mais curiosa para mim é que, na realidade, não sabemos de que é feito o universo. Tudo o que vemos e poderemos ver – os planetas, as estrelas, as galáxias, os enxames de galáxias, a radiação por eles emitida, todas a formas de vida na Terra e onde a houver – não chega sequer a 5% do que existe no universo. Tudo o resto é de natureza desconhecida. Sabemos que existe – tem de existir para que o universo seja como é – mas não sabemos bem o que é. Sabemos que há uma forma desconhecida de matéria que não vemos, mas sentimos a sua atração gravitacional. Esta matéria escura é aproximadamente 5 vezes mais abundante do que a matéria bariónica (de que somos feitos) e a sua existência explica o aspeto que as estruturas do universo têm hoje, mas não sabemos ainda o que a compõe. Há ainda uma forma exótica de energia, a energia escura, que tem um efeito repulsivo e funciona como uma espécie de antigravidade. Sabemos que existe porque se verificou por observação que a expansão do universo, ao contrário do que seria de esperar, começou, na história mais recente, a acelerar. A energia escura é cerca 70% da energia do universo, mas também não sabemos ainda explicar a sua origem. A chave para estes mistérios pode também estar no universo primordial.

Como membro do consórcio LISA (Laser Interferometer Space Antenna) pode falar-nos um pouco sobre o projeto e resultados já alcançados?
O observatório LISA vai ser o primeiro detetor de ondas gravitacionais no espaço e o objetivo do consórcio, de que faço parte desde 2014, é desenvolver o trabalho científico e tecnológico necessário ao seu lançamento em 2037. Até 2015, construímos os nossos modelos para o universo através da observação da luz emitida pelos corpos celestes. Mas o universo primordial era opaco e, por isso, não podemos vê-lo. Tudo o que sabemos sobre ele foi inferido a partir da primeira luz que podemos observar. Os instantes iniciais, essenciais para compreender a evolução do universo e a física fundamental, têm estado então fora do nosso alcance. Espera-se, no entanto, que no universo primordial se gerem ondas gravitacionais e que estas possam chegar até nós. As ondas gravitacionais são perturbações da curvatura do espaço-tempo e passam através de tudo à medida que se propagam pelo universo, causando deformações nos corpos e alterações na distância entre eles. As ondas gravitacionais podem, por isso, permitir-nos ouvir coisas que não podemos ver através da luz – porque não a emitem ou porque a nossa visão está obstruída – , incluindo o que aconteceu no universo primordial. Só foi possível detetar ondas gravitacionais em 2015 (100 anos depois da sua existência ser prevista), quando se desenvolveram finalmente interferómetros capazes de medir as deformações ínfimas por elas geradas. Mas o tipo de sinais que podemos ouvir a partir da Terra é bastante limitado: detetaram-se, essencialmente, binários de buracos negros e de estrelas de neutrões. No espaço há menos ruído e podemos construir interferómetros muito maiores e mais sensíveis, que podem ouvir muito mais. É de esperar que o LISA nos permita, finalmente, detetar o rumor do universo primordial.

A humanidade tem falhado na preservação e na proteção do planeta Terra. Tendo em conta o elevado lixo espacial, considera que corremos o risco de fazer o mesmo com o Espaço?
Diria que não. Não porque tenha muita fé na humanidade – especialmente numa altura em que empresas sugerem usar microssatélites para fazer publicidade no céu noturno e em que se decide pôr um carro em órbita sem qualquer razão ...– mas porque daqui não vamos longe. O universo observável tem 93 mil milhões de anos-luz de diâmetro e há certamente muito mais para lá do horizonte. Isto significa que, se viajássemos à velocidade da luz – a velocidade máxima permitida pela física que conhecemos, de aproximadamente 1 080 000 000 km/h –, demoraríamos 93 mil milhões de anos a atravessá-lo. Não conseguimos sequer, neste momento, aproximar-nos da velocidade da luz e, aliás, precisaríamos de energia infinita para atingi-la. Estamos, por isso, muito longe de conseguir afastar-nos significativamente do nosso sistema solar e poder arranjar outro planeta que destruir. Este tipo de viagem duraria gerações. Ou seja, o que estamos a fazer à Terra é completamente suicida: com o nosso nível de conhecimento e tecnologia, não há mesmo planeta B.

A reconhecida produtividade dos investigadores na área da astronomia e ciências do espaço em Portugal, fazem destas áreas um nicho, onde Portugal, e em particular a Universidade do Porto, pode assumir um papel de liderança a nível internacional. Quais os principais passos/estratégias ou políticas que o país pode adotar?
Acima de tudo, o sistema científico português precisa de mais financiamento e estabilidade. Não há, na prática, uma carreira de investigação em Portugal e os investigadores passam décadas em posições precárias a lutar entre si – em concursos excessivamente competitivos por serem subfinanciados – por contratos e projetos que paguem temporariamente os seus salários e as suas atividades de investigação. É comum os cientistas passarem um ou dois meses por ano a preparar candidaturas em vez de a fazer ciência e a este tempo junta-se muito outro tempo perdido em burocracia desnecessária. Também não há grande previsibilidade nos concursos: por vezes não se sabe se/quando vão abrir (ainda que tenha havido melhorias neste aspeto), as regras vão mudando de ano para ano sem pré-aviso e a pressão é tão alta que, muitas vezes, ter financiamento é também uma questão de sorte. Por tudo isto, muito do que é conseguido é à custa de sacrifício da vida pessoal de quem faz investigação e isto faz com que muitas pessoas deixem a ciência ou o país. Numa área como esta, em que as linhas de investigação podem demorar anos a desenvolver-se e as missões observacionais demoram décadas a concretizar, é preciso ter capacidade para criar equipas e os contratos/bolsas de curta duração não o permitem. A precariedade dos investigadores torna tudo mais difícil e a “fuga de cérebros” faz, muitas vezes, com que se percam para sempre algumas linhas de investigação.

A guerra Russo-Ucraniana levou a Agência Espacial Europeia (ESA) a romper a parceria com a agência espacial Roscosmos e a deixar cair por terra a missão que, no passado mês de setembro, partiria à procura de sinais de vida em Marte. Que desafios se perfilam para astronomia e as ciências do espaço em anos vindouros?
Em ciência alcança-se (quase) sempre mais quando se colabora. Este romper da parceria terá certamente consequências e a ESA terá de arranjar uma alternativa, mas não estou propriamente a par desta situação. Sei, no entanto, que a quebra institucional não é absoluta e que a ESA, Roscosmos e restantes parceiros continuam a colaborar na Estação Espacial Internacional. No meu trabalho diário e nos projetos em que participo, trabalho com pessoas de várias partes do mundo, sem que esta guerra tenha mudado grande coisa. Sei que, em ciência, independentemente de quebras a nível institucional, a colaboração entre cientistas, a nível pessoal, independentemente da nacionalidade e do tipo de regime em que vivem, vai provavelmente continuar.








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