Investigadores U.Porto

U.Porto Reitoria SIP
Eliana B. Souto
Faculdade de Farmácia da Universidade do Porto (FFUP) 

Atividade de investigação em Nanociência e Nanotecnologia Farmacêutica

Regressando ao ponto de partida, como surgiu o interesse académico na área das Ciências Farmacêuticas e, especificamente, no seu cruzamento com a nanotecnologia, e como trilhou o seu percurso académico e de investigação?
O meu percurso académico não diferiu do padrão seguido pela maioria dos estudantes portugueses da década de noventa. Aos dezasseis anos, não tinha certamente a ideia ficcionada de optar por um percurso académico e científico com o qual pudesse dar um contributo positivo para a sociedade, e que promovesse o desenvolvimento científico e tecnológico. Ainda que com alguma autonomia, foi fruto do acaso. Tomei contacto com a área da nanotecnologia enquanto estudante de um Mestrado Científico que fazia parte da oferta formativa da FFUP (onde ingressei depois dos estudos na FFUC [Faculdade de Farmácia da Universidade de Coimbra]), pela mão do Doutor Carlos Maurício Barbosa, ex-bastonário da Ordem dos Farmacêuticos quem, nessa altura, lecionava uma disciplina intitulada “Vectorização de Fármacos”. A temática fascinou-me desde o primeiro instante. E por ser tão inovadora à época, suscitou-me interesse acrescido para realizar trabalho experimental nessa área. Depois de terminar esse mestrado, mudei-me para a Freie Universität Berlin, na Alemanha, onde fiquei durante o meu doutoramento e pós-doutoramento, a trabalhar com o inventor das nanopartículas de lípidos sólidos, o Prof. Rainer H. Müller. Desde então, a investigação que faço dedica-se, ainda que não exclusivamente, a aprimorar esse tipo de “vetores de fármacos” para ultrapassar barreiras biológicas e, mais recentemente, para desenvolver estratégias de medicina personalizada. É um desafio constante, não só pelo número crescente de novos compostos resultantes da biotecnologia, mas também pela introdução emergente da Inteligência Artificial na descoberta de novos fármacos, na conceção de novas formas farmacêuticas, e até na previsão do destino desses novos produtos farmacêuticos no ambiente.

O casamento entre a nanotecnologia e as ciências farmacêuticas são exemplo pleno de como diferentes disciplinas de estudo se podem intersetar, promovendo em paralelo desenvolvimento científico em diferentes domínios. Sobre esta interseção disciplinar, de que forma tem contribuído esta sinergia para o progresso científico farmacêutico e, por extensão e em última análise, de que forma impacta o âmbito da saúde?
Ainda que, tradicionalmente, sejam consideradas disciplinas distintas, nos últimos 20 anos a evidência científica mostra-nos que é possível criar valor combinando as duas áreas do saber. Posso dar-lhe alguns exemplos, desde logo o primeiro medicamento no mercado empregando nanotecnologia - o Doxil® - que recebeu aprovação da FDA (Food and Drug Administration) em 1995 para o tratamento do Sarcoma de Kaposi. O Doxil® é composto por lipossomas Stealth® que carregam cerca de 10.000 moléculas de doxorrubicina. A encapsulação promovida pela bicamada fosfolipídica dos lipossomas minimiza efeitos colaterais, como cardiotoxicidade, neutropenia, mielossupressão, vómitos e alopecia, que estão associados a altas doses desta antraciclina no estado livre (i.e., não encapsulada). Um exemplo mais recente é o caso das vacinas desenvolvidas para prevenir a COVID-19 causada pelo SARS-CoV-2 –, designadamente a da Pfizer-BioNTech (BNT162b2) e a da Moderna (mRNA-1273) –, que têm na base nanopartículas lipídicas para a administração de mRNA. De facto, a biotecnologia e a nanotecnologia, que outrora eram conceitos vagos para a generalidade da população, após a pandemia de 2020, são hoje uma preocupação individual e coletiva, e uma prioridade para as economias sustentáveis com vista a enfrentar os objetivos globais em termos de saúde e ambiente. A própria Comissão Europeia reconhece o contributo da nanotecnologia farmacêutica na modernização da indústria dos Estados Membros, através das suas aplicações numa variedade de sectores industriais e primários, como os cuidados de saúde, com particular relevo para o tratamento de doenças metabólicas, como a diabetes, e de doenças neurodegenerativas, como as doenças de Alzheimer e a de Parkinson.

Muita da investigação que produz tem um pendor particular para a conceção, desenvolvimento e caracterização de novos sistemas de administração de fármacos. Poderia aprofundar as metodologias e técnicas específicas que utiliza neste processo, e talvez destacar progressos ou descobertas recentes no domínio que tenham influenciado significativamente o seu trabalho?
Tratando-se de novos sistemas de administração de fármacos à escala nano, o conceito daquilo que é “nano”, e a caracterização acurada dessa dimensão, é o desafio mais importante que o investigador enfrenta. Acontece que, quando se trata de definir o que são nanomateriais em geral, a resposta depende muito da comunidade à qual se faz a pergunta. Historicamente, os nanomateriais foram definidos pela primeira vez por físicos e cientistas de materiais. Hoje, a maioria das definições do que é considerado nanomaterial tem por base as peculiaridades físicas específicas da dimensão “nano”, como sejam as propriedades óticas e eletrónicas, as quais normalmente são observadas abaixo de 100 nm. Numa tentativa de harmonizar a regulamentação, em 2011, a Comissão emitiu a Recomendação 2011/696/UE sobre a definição de nanomaterial, atualizada em 2022 pela Recomendação 2022/C 229/01, para considerá-lo constituído por partículas sólidas com, pelo menos, uma dimensão externa inferior a 1 nm no conjunto de partículas à escala nanométrica a comparar com o limiar de 50 % se, pelo menos, uma das outras dimensões for superior a 100 nm. Ao serem excluídas dessa definição partículas não sólidas, cria-se um problema na categorização de micelas, lipossomas, nanoemulsões, etc. Acrescem ainda os desafios associados à produção de nanopartículas sob condições de Boas Práticas de Fabrico, à transposição de escala, e aos riscos de segurança ocupacional e ambiental. As questões éticas inerentes à investigação à escala “nano" são mais um desafio no contexto da Inovação e Investigação Responsável, e cujos trabalhos conduziram ao aparecimento de uma nova disciplina, designada por Nanoética, que tem ganhado relevância nos colégios de especialidade em que participo.

São já numerosos os projetos de investigação por si integrados. Poderia destacar um ou dois projetos particularmente interessantes ou gratificantes, destacando também a sua relevância científica e impacto na saúde pública e individual?
No seguimento do que mencionei sobre a prioridade que a Comissão Europeia dá a projetos que se dedicam às doenças neurodegenerativas, posso destacar um trabalho em conjunto com a Universidade de Barcelona, que nos valeu o prestigiado prémio Jorge Heller, da Controlled Release Society. Desenvolvemos um novo tipo de partículas duplamente carregadas (com um flavonóide e um antioxidante) as quais, quando recorrendo à tecnologia Stealth®, reduziram significativamente a neuroinflamação e os níveis corticais de péptido beta amilóide, em modelos animais da doença de Alzheimer. Este estudo reforça a importância das nossas nanopartículas para tratar doenças crónicas do foro neurológico. No contexto do tratamento agudo, posso referenciar um outro projeto, em colaboração com o Instituto Arbuzov em Kazan, desta feita usando nanopartículas de lípidos sólidos para o tratamento da intoxicação cerebral por organofosforados. Os organofosforados inibem a acetilcolinesterase, resultando na acumulação da acetilcolina na sinapse. O excesso deste neurotransmissor leva a uma série de efeitos colaterais potencialmente fatais. Os tratamentos disponíveis são ineficazes, os derivados da pralidoxima em uso desencadeiam respostas erráticas aos organofosforados e, devido à sua carga positiva, não atravessam a barreira hematoencefálica sendo, por isso, incapazes de reativar a acetilcolinesterase fosforilada no sistema nervoso central. Com o recurso à mesma tecnologia Stealth®, desenvolvemos um novo tipo de nanopartículas carregadas com dois destes derivados (um hidrófilo e outro hidrófobo). Não só demonstrámos a capacidade para reativar a enzima no cérebro, como confirmámos a eficácia desta nova formulação para a profilaxia da intoxicação.

Acumula, com a investigação e a docência, responsabilidades de consultoria em tecnologia farmacêutica e nanotecnologia, nomeadamente no domínio da propriedade intelectual e das patentes. Na sua opinião, que considerações e ponderações devem os/as investigadores/as privilegiar no registo de patentes e propriedade intelectual?
Eu partilho a opinião de que, quem se dedica ao processo inventivo de desenvolver novos sistemas terapêuticos, ou novas formas farmacêuticas, deve ter o domínio do estado dessa arte, deve ser capaz de gerar propriedade intelectual e ainda de promover a transferência dessa tecnologia. É, pois, não só natural como expectável que, como peritos na técnica, sejamos confrontados com pedidos de consultoria para a apreciação de patentes e de outros documentos técnicos e para avaliar o grau inventivo. Esta vertente da investigação científica é particularmente relevante quando prolifera informação técnica e não técnica na literatura científica e nos media, em diferentes idiomas. Daí não ser raro receber, também, pedidos de tradução para a Língua Portuguesa de documentação especializada do Alemão, do Inglês e do Castelhano. Se procurar o termo “Nanotechnology”, na base de dados Scopus por exemplo, verifica que estão indexados quase dois milhões de artigos publicados em todo o mundo. Só na área da Farmácia e da Medicina, o número de publicações em nanotecnologia, na última década, aumentou de pouco mais de 30 000 artigos em 2014 para mais de 180 000 em 2024 (primeiro trimestre). Estes números traduzem a relevância da nanotecnologia farmacêutica para os académicos, os clínicos e a indústria farmacêutica. E a mesma tendência se verifica quanto à submissão de pedidos de patentes de produtos resultantes da nanotecnologia farmacêutica, i.e., há um crescimento exponencial de pedidos, dentre eles a maioria por parte da indústria farmacêutica.

Concluiu o Doutoramento em Nanotecnologia Farmacêutica e Biofarmacêutica pela Freie Universitaet Berlin, Alemanha. De que forma terá a experiência académica internacional moldado a sua abordagem à investigação e perspetiva sobre o panorama global da tecnologia farmacêutica e da nanotecnologia?
Eu tive a felicidade de ter sido acolhida no “Arbeitskreis” do Prof. Rainer H. Müller –, uma referência mítica da nanotecnologia –, neste grupo de trabalho altamente diferenciado, tanto científica como culturalmente. Relacionei-me com professores e investigadores de várias gerações e nacionalidades, de quem trouxe lições para uma vida, assim como a experiência de trabalhar em projetos ligados à indústria farmacêutica (e.g., Schering AG) e ao sector clínico (e.g., Charité Universitätsmedicin Berlin). Fui ainda privilegiada com a tarefa de co supervisionar os alunos do meu então “Doktorvater” na minha área de especialidade, o que naturalmente contribuiu para desenvolver e aprimorar as competências necessárias para conduzir investigação independente, para captar financiamento competitivo e, acima de tudo, para liderar e gerir recursos humanos qualificados e diversificados.

Integra a edição 2023 do índice “Highly Cited Researchers”, pela 2ª vez consecutiva, da iniciativa da Clarivate que reconhece, anualmente, os cientistas mais influentes a nível mundial. Poderia partilhar com a comunidade científica da U.Porto a sua perspetiva sobre o garante de produção de investigação de elevada qualidade, rigorosa e pertinente?
Eu reconheço que a área disciplinar da nanotecnologia, além de ser emergente, em particular para desenvolver estratégias de medicina personalizada, suscita interesse junto da comunidade científica e do público em geral, e o desenvolvimento de produto requer algum talento criativo. Creio que só se pensa o futuro com o profundo conhecimento do passado.

Considerando a sua prolífica carreira científica, que conselhos, orientações ou ideias partilharia com os/as jovens investigadores/as, que dão agora os primeiros passos na investigação?
Pela minha experiência de trabalho com equipas multidisciplinares e em contextos geopolíticos distintos, não só na Europa, mas também com instituições do Próximo Oriente, Ásia, América do Norte e América do Sul, reconheço o valor inestimável da mobilidade para um investigador. O desenvolvimento científico, nos dias de hoje, não se compadece com tarefas elementares conformadas a um só grupo ou uma só instituição. Eu tenho testemunhado, não poucas vezes, a circunstância de vários estudantes de Mestrado e de Doutoramento serem impedidos pelos próprios orientadores de trocarem experiências, e dificuldades do dia-a-dia do trabalho laboratorial, com os demais colegas. Os meus alunos e investigadores são sensibilizados, desde o primeiro momento, para o valor do mérito e da iniciativa individual, tantas vezes pauperrimamente acolhidos na nossa sociedade, ao invés dos efeitos perniciosos da endogamia. Eu secundo o parecer de que a mobilização para instituições estrangeiras deveria ser não só promovida como obrigatória, tanto para orientandos como para orientadores.


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