Investigadores U.Porto

U.Porto Reitoria SIP
Estrela Neto
Instituto de Investigação e Inovação em Saúde da Universidade do Porto (i3S)

Atividade de investigação em Engenharia Biomédica e Neurociências

A sua jornada académica e de investigação tem sido marcada por um percurso multidisciplinar que alia a biologia, a bioengenharia e os modelos in vitro. Poderíamos revisitar os momentos chave que moldaram a sua trajetória científica?
É verdade. O meu percurso passou por três faculdades da Universidade do Porto: Ciências, Engenharia e Medicina. Cada uma representou um momento de tomada de consciência de que o meu conhecimento era insuficiente para avançar na investigação que pretendia desenvolver. As minhas escolhas foram muitas vezes motivadas não por uma paixão prévia, mas pela necessidade de compreender melhor determinados processos. Durante a licenciatura em Bioquímica, nunca imaginei enveredar pelas Neurociências; no entanto, durante o mestrado em Engenharia Biomédica, ao estudar interações entre células ósseas e neurónios, senti essa necessidade de entender melhor e aprofundar conceitos. Isso levou-me a candidatar-me ao doutoramento em Neurociências na Faculdade de Medicina. Mais tarde, pela necessidade de aprender e aprimorar técnicas de microfabricação e uso de plataformas de microfluídica, procurei uma experiência internacional na Universidade de Southampton com uma bolsa da Organização Europeia de Biologia Molecular (EMBO) que me permitiu integrar a engenharia e a neurociência em modelos organ-on-a-chip. Estes momentos foram fundamentais para construir um percurso e uma visão interdisciplinares que considero relevantes para o trabalho que desenvolvo.

Atualmente, dedica-se a desvendar os mecanismos por detrás da dor óssea. Que desafios persistem nesta área de investigação e que avanços recentes nos colocam mais perto de encontrar soluções mais eficazes para este tipo de dor?
A dor óssea, bastante comum em metástases no osso ou osteoartrite, continua a ser uma das formas de dor mais difíceis de tratar. Persistem grandes desafios, como a escassez de fármacos eficazes e específicos. A dificuldade reside em compreender, de forma integrada, como diferentes tipos celulares – células ósseas, imunes, tumorais e, claro, fibras nervosas – interagem no microambiente ósseo. Nos últimos anos, o avanço de tecnologias como a transcriptómica e a proteómica, aliadas a uma análise suportada por sistemas de inteligência artificial, têm permitido mapear com maior resolução os processos moleculares envolvidos nestas interações. Aliado a isto, o desenvolvimento de modelos organ-on-a-chip e 3D com células humanas possibilita testar hipóteses em ambientes controlados e fisiológica e patologicamente relevantes. Esta combinação de ferramentas está a revolucionar a forma como estudamos os mecanismos da dor óssea e a abrir caminho para terapias mais dirigidas e personalizadas.

Destaca-se no seu trabalho de investigação o desenvolvimento de modelos organ-on-a-chip. Poderia partilhar com a comunidade científica da U.Porto qual o potencial destes modelos e de que forma são particularmente úteis no estudo da dor associada às metástases?
Os modelos organ-on-a-chip representam uma evolução significativa na investigação biomédica, permitindo replicar a complexidade dos tecidos vivos de forma dinâmica e tridimensional. Estes pequenos dispositivos contêm canais minúsculos por onde circulam células e fluidos, simulando as condições reais de um tecido humano. Nestes chips, conseguimos recriar as funções essenciais de tecidos vivos, como o osso, incluindo vascularização e inervação, o que nos permite estudar doenças de forma muito mais realista do que em modelos 2D tradicionais. No caso da dor associada às metástases ósseas, estes modelos são particularmente valiosos, pois permitem observar como as células tumorais afetam a função das células ósseas e das fibras nervosas. Além disso, oferecem uma plataforma precisa para testar terapias novas e personalizadas, com maior relevância fisiológica e sem recorrer ao uso excessivo de modelos animais. Estes sistemas estão a transformar a forma como abordamos doenças complexas e a acelerar o desenvolvimento de soluções terapêuticas mais eficazes para a dor crónica.

Neste campo da modelação de tecidos ósseos e do estudo da dor, a investigação tem avançado para modelos cada vez mais complexos e realistas. Qual é, na sua opinião, o futuro desta abordagem e até onde podemos chegar na simulação da biologia humana in vitro?
Os modelos in vitro estão a tornar-se cada vez mais complexos e realistas. Já não se limitam a usar um único tipo celular, mas integram várias células diferentes que interagem entre si, tal como acontece no nosso corpo. No caso do osso, é possível incluir estímulos mecânicos (tais como pressão e tensão), e estes estímulos são fundamentais para simular a função óssea de forma credível. Além disso, conseguimos criar compartimentos dentro do chip que reproduzem a estrutura e organização dos tecidos no organismo, como, por exemplo, a separação entre os compartimentos vascular, ósseo e neuronal. O maior avanço, na minha opinião, é a possibilidade de usar células colhidas de pacientes, o que permite testar a resposta a diferentes fármacos de forma personalizada. Estes modelos miniaturizados têm o potencial de prever como as células de um determinado paciente reagem a um tratamento antes mesmo de este ser administrado, representando um enorme avanço na simulação da biologia humana e no desenvolvimento de terapias personalizadas.

O seu trabalho explora processos celulares fundamentais, como a migração celular e a mecânica tecidular. De que forma estes fenómenos se interligam e o que nos podem revelar sobre processos biológicos mais amplos, incluindo doenças como o cancro?
A migração celular e a mecânica tecidular são processos fundamentais para a homeostasia e para a resposta a danos nos tecidos, mas também estão profundamente ligados à progressão de doenças como o cancro e as metástases ósseas associadas. As alterações na rigidez da matriz extracelular influenciam diretamente a capacidade das células tumorais de invadir novos tecidos. No contexto ósseo, estas alterações impactam tanto a remodelação do osso como a interação com fibras nervosas, que são sensíveis a alterações mecânicas. Ao investigar como células ósseas, tumorais e fibras neuronais respondem às forças mecânicas e às alterações estruturais do tecido, conseguimos compreender melhor como microambientes patológicos se estabelecem e evoluem. Estes conhecimentos são cruciais não apenas para entender o processo metastático, mas também para desenvolver estratégias terapêuticas que interfiram com a progressão da doença ao nível mecânico e molecular.

A sua investigação tem um forte potencial translacional, podendo vir a ter impacto na medicina regenerativa e na engenharia de tecidos. Na sua opinião, como podem as novas descobertas na sua área científica influenciar o desenho de novos fármacos para tratamento da dor óssea?
Os modelos in vitro avançados que desenvolvemos, como metástase on-chip, cartilagem inflamada on-chip, osso neuro-vascularizado on-chip, permitem estudar com grande detalhe a resposta de neurónios a estímulos patológicos do osso, como a inflamação e a presença de células tumorais. Na nossa investigação procuramos decifrar como as células comunicam entre si. É este conhecimento – de novas interações, sinais moleculares e vias de comunicação – que pode abrir caminho ao desenvolvimento de fármacos diferentes dos atuais. Gosto de manter este objetivo translacional sempre presente, mesmo sabendo que entre a descoberta de um novo mecanismo e a criação, validação ou até reposicionamento de um fármaco eficaz, há um longo percurso a percorrer. Os modelos organ-on-a-chip que desenvolvemos permitem testar essas interações e hipóteses de forma precisa, com recurso a células humanas, oferecendo dados mais próximos da realidade clínica. Esta abordagem pode acelerar a identificação de estratégias terapêuticas mais eficazes e menos invasivas para o tratamento da dor óssea, contribuindo para uma medicina cada vez mais personalizada e fundamentada na biologia do doente.

O seu trabalho tem uma forte componente interdisciplinar e envolve colaborações nacionais e internacionais. Que papel desempenham estas parcerias no avanço da sua investigação? Há alguma colaboração que tenha sido particularmente transformadora para o seu percurso científico?
As colaborações interdisciplinares são fundamentais para transformar ideias inovadoras em realidade científica. Trabalhar com engenheiros, biólogos, neurocientistas e clínicos permitiu-me desenvolver sistemas in vitro sofisticados que incorporam múltiplas dimensões do microambiente ósseo. No projeto Flamin-GO, estamos a desenvolver um modelo personalizado de artrite reumatoide com células de doentes, incorporando num contexto inflamatório unidades vasculares, ósseas, cartilagíneas com a finalidade de efetuar ensaios clínicos on-chip. Nos projetos PREMUROSA, BonePainII e BonePainIII, tive a oportunidade de interagir com especialistas em doenças ósseas e dor crónica, provenientes de diversos contextos científicos e culturais. Estes consórcios integram equipas multidisciplinares de vários países, criando um ecossistema de investigação inovador e colaborativo. O BonePain, agora na sua terceira edição, tem evoluído de um foco inicial em modelos animais para o desenvolvimento de modelos in vitro avançados e, mais recentemente, para a integração de amostras clínicas e abordagens centradas no doente. Este percurso reflete a maturidade e adaptação do consórcio às exigências da ciência translacional atual. Estas colaborações têm sido fundamentais para consolidar a minha trajetória científica e contribuir para soluções biomédicas com impacto real.

Estamos numa era de avanços extraordinários nas ciências da saúde e da vida, impulsionados por novas tecnologias e abordagens interdisciplinares. O que mais a entusiasma no futuro da investigação biomédica? Que questões científicas, na sua área de estudo, acredita que poderão ser respondidas na próxima década?
O que mais me entusiasma é a convergência de tecnologias como organ-on-a-chip, bioprinting, edição genética e inteligência artificial para modelar e estudar a biologia humana de forma precisa. Acredito que, na próxima década, conseguiremos decifrar os mecanismos celulares e moleculares que regulam a sensibilização nervosa no microambiente ósseo patológico, e até mesmo entender o papel do sistema nervoso na progressão de diferentes tumores. Acredito no crescente reconhecimento dos modelos on-chip, não apenas pelo seu potencial inovador, mas pela sua credibilidade e eficiência em gerar dados com relevância fisiológica. Embora estes modelos não substituam completamente o uso de animais na investigação, permitirão uma redução significativa da sua utilização. Vejo um futuro, daqui a 10 anos, em que chips específicos para diferentes órgãos possam ser usados como ferramenta de apoio à decisão clínica, testando respostas a tratamentos antes da sua administração nos pacientes. E, daqui a 20 anos, imagino esses sistemas integrados a serem utilizados rotineiramente em hospitais – permitindo personalizar terapias, reduzir efeitos adversos e beneficiar todos os envolvidos no processo clínico. Particularmente na minha área de investigação, na próxima década, acredito que conseguiremos decifrar como as alterações no microambiente ósseo modulam a dor de forma específica, abrindo caminho para terapias direcionadas e mais eficazes, com impacto real na qualidade de vida dos doentes.


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