Atividade de investigação em Direito Europeu e Internacional
Poderíamos começar pelo primeiro de muitos passos que trilharam o seu percurso académico e científico? Que marcos destacaria como os mais determinantes neste seu percurso científico tão rico e diverso?
Quando terminei a licenciatura, em 1991, vivia-se um momento de grande entusiasmo europeu. Parecia que a grande “Casa Europeia” de paz e progresso, do Atlântico aos Urais, podia ser uma realidade. Eram várias as ambições que avançavam: a conclusão do grande mercado interno; a nova União Europeia com uma nova moeda, novos domínios de cooperação política e jurídica – a Política Externa e de Segurança Comum, a Cooperação na Justiça e nos Assuntos Internos – e a cidadania da União. Essa realidade entusiasmou-me e quis estudá-la. Por isso me inscrevi na especialização em Integração Europeia do Mestrado em Direito, na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Aí percebi que a marca identitária desse projeto de integração entre Estados e de povos europeus era o seu Direito. Esse momento e essa escolha acabaram por determinar o meu futuro académico e profissional. Enveredei pela carreira académica, onde tenho tido a oportunidade e o gosto de dar a conhecer a gerações sucessivas de jovens esse que considero o mais significativo projeto político europeu contemporâneo e o respetivo Direito. Como é notório para quem assiste às minhas aulas na Licenciatura, no Mestrado e em outras atividades, continuo tão entusiasmada com a Europa e com o projeto europeu como há três décadas, sempre sem prescindir de uma perspetiva crítica. Esta carreira proporcionou-me outras tarefas importantes, seja a colaboração com instituições como a Comissão Europeia, seja, em especial, o desempenho de funções de gestão científica e académica, nomeadamente na Coordenação da mobilidade Erasmus, na Comissão do 2.º Ciclo de Estudos em Direito e na Direção da Faculdade de Direito da Universidade do Porto. Desde 2021, o trabalho na Direção do CIJ tem sido um desafio muito enriquecedor.
É uma autora científica prolífera e conta com um curriculum onde se destacam também contextos de investigação e cooperação internacional. Existe atualmente algum tema ou questão específica que a entusiasme particularmente? O que gostaria que a sociedade leiga compreendesse sobre o papel fundamental do Direito na resposta aos desafios contemporâneos?
Os dois domínios, com impacto global, que me parecem mais relevantes são a revolução digital, em especial a IA, e a crise climática. Ambos colocam múltiplos desafios e apresentam riscos que podem pôr em causa as sociedades, incluindo os valores humanos fundamentais, e até a sobrevivência da Humanidade. A revolução digital pode proporcionar um desenvolvimento inaudito, semelhante à revolução agrícola no Neolítico, mas também tem demonstrado um potencial disruptivo no mundo do trabalho, no funcionamento das democracias e até na coesão social e nas relações humanas. A articulação entre o mundo digital e o mundo real nem sempre se releva virtuosa. Estaremos a viver um momento “charneira”, em que o velho mundo se desvanece e o novo ainda não se vislumbra com clareza. Estou cada vez mais convencida que este é um momento que nos interpela a tomar grandes decisões que definirão as traves-mestras desse novo mundo. De modo semelhante, a crise climática de origem humana não terá tido a resposta necessária para evitar verdadeiras calamidades que ameaçam as sociedades e as relações humanas e o futuro obrigar-nos-á a uma adaptação célere das infraestruturas físicas e sociais. Qual o papel do Direito? O sistema jurídico tem uma tripla função social: é o repositório dos valores sociais estruturantes, que serão imprescindíveis na constituição e tessitura desse novo mundo; tem uma função reguladora dos interesses e dos conflitos, quer no plano preventivo, quer no plano resolutivo, através das respetivas regras, princípios e instituições; tem uma função limitadora do poder, em especial o poder público, para salvaguarda da liberdade e autonomia dos cidadãos, mas, no presente, também dos novos poderes do “global public square” digital. Cabe às instituições nacionais e internacionais legítimas e aos cidadãos, em geral, decidir quais os valores com que se tecerá a sociedade futura, as regras e os recursos institucionais para a resolução de conflitos e os limites que devem prevalecer sobre os poderes públicos e privados. E não se esqueça, a ausência do Direito não significa necessariamente mais liberdade e autonomia, mas eventualmente o seu contrário.
O Direito Europeu, o Direito Internacional e os novos desafios da governance política internacional são áreas que lhe são particularmente queridas. Qual a sua perspetiva sobre as disparidades entre a realidade europeia e a internacional, e que grandes tendências se poderão vir a concretizar, num futuro próximo, em ambos os contextos?
Essas são questões para “um milhão de euros”! A minha investigação sempre se focou em questões estruturais, em especial os modos como se podem configurar as soluções jurídicas, económicas e de governance para responder adequadamente aos desafios que se colocam no espaço europeu e internacional, em particular no que concerne à União Europeia. O panorama internacional vive um momento crítico e de potencial mudança de paradigma. E essa mudança também é um dos desafios mais relevantes que se coloca à UE. No plano internacional, temos uma ordem jurídica e institucional com múltiplos fora setoriais e um forum global, as Nações Unidas. Este quadro enfrenta uma ebulição crescente e tem dificuldades em responder aos conflitos crescentes e aos riscos, sejam as alterações climáticas, a distribuição da riqueza, a proliferação de armamentos, o tráfico de pessoas, o terrorismo, a saúde pública ou a desinformação. Novas e velhas sedes de poder, públicas e privadas, afastam-se, explícita ou implicitamente, dos valores democráticos, da liberdade, do pluralismo e do respeito pelos direitos individuais, desafiam a precária ordem internacional e, invocando um novo multilateralismo ou a identidade e “valores tradicionais”, são uma ameaça de retrocesso civilizacional para a Humanidade. Os alicerces jurídicos constituídos pela Carta das Nações Unidas e por instrumentos tão relevantes como a Convenção da Prevenção e Punição do Crime de Genocídio ou o Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares têm sido abalados. A Europa e os seus Estados estão no centro desta realidade e a União Europeia encontra-se m busca de um novo rumo numa encruzilhada que se está a revelar um autêntico labirinto. São múltiplos os desafios e todos, mesmo os que são internos, como o exacerbar dos nacionalismos e egoísmos nacionais, se relacionam com aqueles que referi no plano internacional, a que acresce, em especial, a fragilização da relação transatlântica, que agrava a insegurança do espaço europeu. O recente “Relatório Draghi” apontou a perda de competitividade europeia e o seu lugar secundário na inovação tecnológica. As respostas a estes desafios impõem uma discussão sobre os recursos materiais, financeiros e humanos necessários a uma resposta capaz e simultaneamente respeitadora dos compromissos com os valores liberais-democráticos e da transição verde e obrigam ainda a discutir o modelo futuro da integração económica, política e jurídica da UE, em ambas as dimensões interna e externa.
O advento digital, que interseta também os seus interesses de investigação, tem estado na ordem do dia, com frequência aflorando preocupações éticas, de segurança ou até de violação de direitos constitucionais. No contexto da União Europeia em particular, cuja realidade nos é mais próxima e impactante, quais são, na sua opinião, os principais obstáculos jurídicos a uma regulamentação digital mais compreensiva e rigorosas?
A UE tem estado atenta e tem sido pioneira nesse esforço regulatório, procurando definir um quadro regulatório que assegure o respeito pelos valores europeus e pelos direitos fundamentais. Na verdade, é na UE que encontramos a regulamentação mais compreensiva do setor digital, de que são exemplo, depois do histórico Regulamento Geral de Proteção de Dados, a Diretiva dos Dados Abertos, o Regulamento da Livre Circulação dos Dados, o Regulamento de Governação dos Dados, o Regulamento dos Dados, o Regulamento dos Mercados Digitais, o Regulamento dos Serviços Digitais e o famoso Regulamento da Inteligência Artificial. Já quanto a “rigorosa”, caso o sentido seja de “restritiva”, temos de avaliar mais de perto. O setor digital é o setor económico mais inovador, é mesmo o sinónimo de inovação. Uma das críticas recorrentes é que a regulamentação pode impedir a inovação. O “Relatório Draghi”, que já referi, recentemente salientou que a inovação digital tem ocorrido em outras latitudes. A Estratégia Digital Europeia consagrou o objetivo de colocar a União na dianteira da inovação ao longo desta década, denominada, aliás, de “Década Digital”. O sucesso está a ser relativo. Por outro lado, os meios digitais são intrinsecamente ambivalentes: podem promover a liberdade, a coesão e o desenvolvimento, mas podem igualmente servir como instrumentos de repressão, podem fomentar a divisão e as disparidades socioeconómicas. A nível global, há pelo menos três modelos regulatórios: o norte-americano, assente na liberdade do mercado, com uma intervenção pública limitada e sobretudo preocupada com a segurança nacional; o modelo chinês, que embora não recusando o capitalismo, está essencialmente norteado por objetivos político-estratégicos e securitários, em que as liberdades individuais não são uma prioridade; e o modelo europeu, no qual, com insuficiências e inconsistências, se procura alcançar um equilíbrio entre a preservação da concorrência liberal e da liberdade, e o respeito dos direitos e valores fundamentais, ao mesmo tempo que se procura, através de uma política ativa de promoção da I&D, assegurar que os europeus não ficam para trás nesta revolução tecnológica. Haverá um modelo que prevalecerá sobre os outros? Teremos um mundo digital fragmentado por modelos diferentes? Ainda não é claro. Aproveito a ocasião para convidar toda a comunidade da U.Porto para a III Conferência Internacional do Módulo Jean Monnet, no dia 23 de abril de 2025, intitulada “Midterm Assessment of the Digital Decade”, onde académicos e especialistas portugueses e estrangeiros farão uma análise intercalar da “década digital” e da governance europeia e global neste domínio.
Atualmente assume a direção do Centro de Investigação Interdisciplinar em Justiça (CIJ) que de resto, no ano de 2024, comemorou o seu 25º aniversário. Gostaríamos que partilhasse com a comunidade científica da U.Porto o trabalho que se tem vindo a desenvolver e a sua visão de futuro para o CIJ. Que conselhos partilharia para a longevidade das estruturas de investigação e que investimentos entende serem prioritários para garantir a transferência de conhecimento à sociedade?
Quando iniciei esta função, em 2021, assumi um programa de inclusão, inovação e internacionalização, reforçando o caminho já trilhado desde a criação do Centro, em 1998. O CIJ, à época CIJE (Centro de Investigação Jurídico-Económica), tem a marca do pioneirismo em Portugal. Foi o primeiro centro de investigação em Direito a integrar o sistema de I&D da FCT e a celebrar um contrato-programa que, reconhecendo a valia do projeto, lhe atribuiu financiamento. Desde que iniciou a sua atividade, em 1999, o Centro manteve essa ligação com a FCT. Esta longevidade é o resultado do empenhamento das equipas sucessivas que têm liderado o Centro e, sobretudo, do trabalho dos seus investigadores. O Centro alargou a sua atividade à investigação em todas as áreas do Direito e, desde 2021, integra como investigadores todos os docentes da Faculdade de Direito da Universidade do Porto (FDUP) que o desejem. Mais recentemente, integrámos as ciências criminológicas, o que torna o CIJ um centro único no panorama nacional. Desejo, em especial, salientar a integração dos doutorandos em Direito e em Criminologia da FDUP e a preocupação com a igualdade de género. De um centro que tinha cerca de quatro dezenas de investigadores, em 2021, passamos para 117 investigadores, em 2024. A inovação faz-se com a permanente atenção não apenas às problemáticas que são prioritárias para a sociedade local, nacional e internacional, mas também às boas práticas da investigação, nomeadamente aos compromissos “COARA”. O desenvolvimento da inovação e também da internacionalização tem-se concretizado através da multiplicação e da diversificação das parcerias, projetos e outras iniciativas científicas. Saliento ainda a proatividade no contacto com diversos stakeholders da sociedade e uma ativa participação no European Law Institute, traduzida na criação do Hub português, cuja sede se situa no CIJ. Os resultados deste caminho já são visíveis, em projetos, eventos internacionais e publicações, mas não posso deixar de recordar que esta via colaborativa de desenvolvimento da ciência deve ser uma via de sentido duplo e é igualmente determinante que as instituições da sociedade se interessem pelo sistema científico e tomem consciência que, também no Direito e na Criminologia, a ciência pode apoiar escolhas e decisões informadas e racionais. Na página web podem acompanhar as nossas atividades.
Assume a Cocoordenação do Núcleo Português do European Law Institute. Poderia partilhar em que domínios jurídicos específicos se posiciona atualmente a organização, e que desafios se afiguram na realidade europeia como os mais carentes de atenção?
O European Law Institute (ELI) é uma organização associativa transeuropeia inspirada no American Law Institute, que desenvolve e promove a investigação e a cultura jurídicas, incluindo através de projetos e de estudos em todos os domínios do Direito, numa perspetiva europeia e global e cruzando a teoria e a prática. Tem uma significativa influência no desenvolvimento da política legislativa europeia, internacional e nacional. Entre os temas que, no presente, se encontram entre as respetivas prioridades estão os princípios constitucionais, o Estado-de-Direito e a independência judicial, a regulação do espaço digital, os desafios da sustentabilidade, além de temas mais “clássicos” relacionados com o direito da família, o direito processual civil e penal, ou o direito das sociedades comerciais. Além dos membros individuais, integra membros institucionais, entre os quais se encontra o CIJ, e desenvolve a sua ação também através dos seus núcleos (Hubs) nacionais. Tive o privilégio de lançar a iniciativa de instituição do Hub português, cuja sede se situa no CIJ. Desde a sua criação, em 2023, e enquanto Co-Chair, tive a oportunidade de coorganizar várias iniciativas: uma Newsletter, uma Conferência sobre Sustentabilidade, realizada na FDUP em 22 de maio de 2024, e um painel na Conferência Anual do ELI, em Dublin, em 11 de outubro de 2024, sobre “Food Law”. Poderão ver mais informação sobre o ELI aqui, e sobre o Hub português aqui.
Atualmente, coordena também um dos Módulos Jean Monnet do ERASMUS+, um programa de promoção do ensino, investigação e debate, designado "A Digital Europe for Citizens. Constitutional and Policymaking Challenges". Poderia partilhar com a Comunidade Científica da U.Porto o enquadramento e principais objetivos deste módulo?
Este módulo, que se iniciou em setembro de 2022 e se prolonga até agosto de 2025, tem como objetivos principais promover a excelência no ensino e na investigação sobre o Direito da União Europeia, com atenção em especial à “Europa Digital” e aos desafios constitucionais e de policymaking que ela coloca. Ao mesmo tempo que promove o diálogo, o debate e a troca de ideais entre diferentes grupos-alvo e stakeholders a nível local, nacional e internacional, o projeto foca-se nos cidadãos. Este projeto tenciona participar no debate em curso na União Europeia sobre o setor digital, sob uma perspetiva constitucional e com uma abordagem compreensiva dos desafios aos direitos fundamentais, à proteção das nossas democracias e ao exercício da cidadania em sociedades abertas, pluralistas e democráticas, bem como à salvaguarda dos interesses gerais da União Europeia e dos seus Estados-Membros. Passa pela inclusão destes tópicos no programa das aulas de Direito da União Europeia nos três ciclos de estudos, bem como pela organização de cursos específicos, eventos científicos e publicações para públicos diversos, estudantes de Direito e outras áreas, jovens profissionais de diferentes setores e cidadãos em geral. A equipa docente é constituída por mim, pela Inês Neves e pelo Tiago Rocha, mas temos contado com a colaboração de eminentes especialistas nacionais e internacionais de diferentes áreas e de diferentes instituições públicas e privadas, das instituições europeias e do governo nacional, da academia, da administração pública, da advocacia e da indústria. O projeto envolve ainda a colaboração nas atividades de uma equipa de estudantes. Convido a comunidade da U.Porto a visitar a página web do projeto.
Ao longo da carreira académica e profissional, tem assumido várias posições de liderança e tem-se mantido envolvida em diversas iniciativas, não só científicas, o que demonstra uma vontade de contribuir, de uma forma muito ativa, para uma evolução dinâmica das áreas que investiga. Com base na sua experiência, que conselho partilharia com as gerações mais jovens de investigadores e juristas que agora iniciam as suas carreiras?
É sempre difícil dar conselhos, pois cada experiência é essencialmente única. Por isso quero relativizar a minha opinião, que é o resultado de uma experiência pessoal, obviamente intransmissível. Não obstante, aos futuros e jovens juristas recordo que devem sempre ter presente que o Direito e os seus agentes, nas suas diversas funções e manifestações, devem assumir como guia os valores fundamentais de que a Constituição, a Convenção Europeia dos Direitos Humanos ou a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia são o repositório. O seu norte e horizonte de ação devem ser a realização da Justiça e assegurar a cada um e a todos o que é devido. Na prática, tal significa recusar serem instrumentos, conscientes ou inconscientes, de outros interesses. Essa será mesmo a maior manifestação de liberdade e sucesso profissional. Consegui-lo será um desafio permanente e exigirá um esforço constante de exercício de cidadania, que passa por conhecer a realidade envolvente, por procurar de modo ativo, racional e crítico, a informação e o conhecimento, pois, parafraseando as palavras que terá proferido Abel Salazar, expostas no velho edifício do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar (ICBAS), “Jurista que só sabe Direito nem Direito sabe” (acredito que tal pode ser dito de qualquer área do saber). Para os investigadores, parece-me que também valem aqueles conselhos, que são, aliás, indispensáveis para assegurar uma ciência livre, inclusiva e diversa, capaz de colocar a evidência e o conhecimento ao serviço da sociedade e das pessoas. Acrescentaria, em especial, a vontade de surpreenderem e serem surpreendidos, não se deixando aprisionar por dogmas, autoridades e tradições.
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