Atividade de investigação em Biomedicina
Começamos sempre pelo início da jornada académica. Os interesses científicos surgiram organicamente? Houve um momento, ou alguém, responsável por despertar e inspirar a sua paixão por estas áreas de conhecimento?
Venho de uma família não académica. Fui o primeiro membro da família alargada a tirar uma licenciatura, por isso não foi certamente através da influência familiar que as coisas aconteceram. A influência familiar foi importante no sentido de despertar a minha curiosidade – isso devo muito às interações e vivência que tive muito de perto com o meu avô paterno, uma pessoa que tinha a quarta classe – como era normal antigamente – mas uma pessoa altamente inventiva e que tinha uma espécie de laboratório em casa onde estava sempre a criar coisas. Esta terá sido, porventura, a maior influência num ambiente ainda não académico. As coisas depois acontecem naturalmente, ao longo do percurso escolar. Sempre fui muito curioso. Não dedicava muito tempo ao estudo, mas absorvia tudo com muita avidez. Tudo para mim era novo, era como abrir uma enciclopédia para onde eu podia entrar. No meu tempo, o nono ano era um ano experimental em que podíamos escolher uma área vocacional e depois podíamos segui-la ou optar por outra. Os meus testes psicotécnicos apontavam para ciências e artes, taco a taco, e fui primeiro experimentar as artes. E foi interessante, porque tinha algum jeito para o desenho – que também herdei do meu avô paterno – só que a área de formação era arte e design, e tinha muito pouco de arte e muito de design! A minha professora de design era estilista de moda, então passei um ano a desenhar roupas; detestei. Mas devo muito a essa professora, por me ter mostrado essa via, para não a seguir. Confesso, na altura, tinha um grupo de amigos muito próximos, partilhámos muitos anos de convivências muito intensas. Os meus amigos iam todos para ciências e tecnologia e pareceu-me interessante e, portanto, já que havia experimentado as artes e não tinha gostado, decidi enveredar pelas ciências. Em boa verdade, eu gostava muito de química e de biologia, e tive a sorte de ter uma professora de biologia do outro mundo, uma daquelas pessoas que não deixa ninguém indiferente. A Professora Elisa Bacelo, por quem tenho muita estima e que, de facto, era uma pessoa incrível. A Professora tornava aquelas experiências de aula numa aventura, num mundo que, para mim, era fascinante. Portanto, as coisas começam-se a definir aí. Gostava de biologia e de química mas não conseguia escolher uma. Bioquímica pareceu-me, por isso, a escolha mais óbvia. A partir daí foi entrar num mundo fascinante: sempre gostei dos mundos que não eram visíveis, o mundo microscópico, a microbiologia, portanto, num sentido lato. À medida que o tempo foi avançando, comecei a definir cada vez mais os meus interesses. Logo de início, a biologia celular foi um grande apelo, esse mundo microscópico. É todo um universo que não está à vista, e o que não está à vista fascina-me, porque há ali muita coisa que não sabemos, que não vemos, mas que depois explica, ou nos ajuda a compreender o macro. Os meus interesses foram sendo dirigidos para a área da divisão celular, que é um processo que exige uma transformação enorme ao nível da célula, é um momento único da vida da célula que a transforma completamente. Visualmente, é um processo incrivelmente apelativo, interessante e atraente porque usa a microscopia. As imagens de microscopia de células a dividir são imagens deslumbrantes. Fui buscar ali o gosto pela beleza estética do processo, que me fascinou – acho que sou muito assim, de pequenos detalhes que me despertam a atenção e que depois me instigam a curiosidade de querer saber mais. Portanto, percebi que aquele era um problema interessante e que eu o gostaria de estudar, porque era muito visual. O microscópio sempre foi a minha via de ação para chegar a esse mundo, e aqui estou a fazer Biologia Celular e a estudar a divisão celular há mais de 20 anos.
Conquistou as três principais bolsas individuais do European Research Council (ERC), naquele que é um feito absolutamente notável. Poderia partilhar com a comunidade científica da U.Porto, para lá do fundamental mérito e disrupção científica, que filosofia de trabalho adota para preparar uma candidatura a um financiamento tão prestigiante e que desafios encontrou? Ao longo do tempo, o processo tornou-se mais fácil?
Ao contrário do que possa parecer, as coisas foram-se tornando cada vez mais difíceis. Os três patamares das bolsas do ERC são diferentes e o nível de exigência também. Quando se está a começar perdoa-se tudo, e com potencial as coisas acontecem. É uma pirâmide clara: a base é alargada, mas conforme se vai subindo na pirâmide é cada vez mais difícil. Mas eu adoro desafios! A melhor coisa que me podem dizer é “não é possível, não vais conseguir”. Depois de vir dos Estados Unidos e começar o meu grupo em Portugal, muitos dos meus colegas me diziam “é muito difícil e não há dinheiro…”. Pois foi o maior estímulo que me podiam ter dado. E, efetivamente, começámos o grupo. A Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) foi chave para depois podermos capitalizar o investimento inicial. Vivemos 5 anos com o que todos normalmente vivem e depois achámos que tínhamos ali uma oportunidade. Sobretudo, eu tenho de ‘ver’ a pergunta, que tem de ser interessante. E tem de ser interessante não para mim, mas para si também. Se não for interessante haverá a perceção de que é um preciosismo, um detalhe, que é algo só para especialistas. Não: as perguntas fundamentais, toda a gente as compreende. Por exemplo, porque que é que o céu é azul? É uma pergunta que todos nós algum dia teremos feito e não teremos tido imediatamente a resposta. Mas são as coisas fundamentais do imaginário e das Ciências da Vida que têm, de alguma forma, de despertar interesse para além do nosso ecossistema próximo, digamos assim. E não há um segredo. O nosso grupo de investigação celebra 20 anos e o último projeto que submetemos, e que ganhámos, foi o mais difícil que eu tive de escrever até hoje, porque me forçou a sair muito da minha área de conforto. Quando olhamos para trás, e temos 20 anos de bagagem, perguntamo-nos a nós próprios “e agora? O que é que eu quero fazer?”. E eu sempre coloquei esta questão no meu grupo. Sempre coloquei a fasquia muito alta, acho que devemos ser ambiciosos. E sempre foi muito claro, a partir do momento em que ganhámos a primeira ERC Starting Grant, que iríamos lutar e trabalhar para que a próxima pudesse acontecer. E, efetivamente, aconteceu. Quando se concretizou, eu também disse para o meu grupo que eu não queria sentir nos ombros a pressão de ter que ganhar uma terceira porque acabaria por enviesar a lógica do processo. Pode tornar-se quase viciante, um ciclo vicioso, e não pode ser essa a motivação, embora perceba que numa fase em que estamos na nossa adolescência científica queremos tudo e mais alguma coisa. A ambição é palavra de ordem. Mas os anos dão-nos alguma maturidade que nos leva a perceber que não tem que ser por aí, não deve ser por aí. Acabámos a Consolidator Grant há seis ou sete anos e durante dois anos não fiz nenhuma candidatura ao ERC. Porque não tinha a pergunta. Acho que é uma das minhas poucas qualidades enquanto alguém com alguma responsabilidade por um grupo científico, ter uma intuição forte sobre o que vai, ou não, funcionar, ver as questões e o caminho com clareza. Aconteceu o ano passado, a Advanced Grant, muito porque um dos privilégios que tenho é trabalhar com pessoas mais inteligentes do que eu, o que é maravilhoso, é muito recompensador e enriquecedor, aprende-se imenso! Tive essa sorte de me rodear deste tipo de pessoas que, no conjunto, me ajudaram a compreender qual seria o próximo passo. E parte muito de coisas que as pessoas trazem para o grupo quando entram. Às vezes são só ideias e eu tento ajudar a que elas se concretizem e cristalizem de alguma forma, que cresçam e ganhem corpo. E foi este o ponto-chave para esta última fase, o que nos permitiu ver a pergunta, juntamente com 10 anos de trabalho num modelo de estudo que é pouco convencional e que foi precisamente o nosso grande triunfo: um modelo poderosíssimo, que não haverá no mundo ninguém que saberá mais sobre ele do que nós. Tudo isto abre todo o potencial para responder a perguntas fundamentais. Realço que o ERC está interessado na importância da pergunta, no mero avanço no conhecimento, essa coisa volátil que, cada vez mais, tem menos importância nos dias que correm. Quando digo perguntas fundamentais, quero dizer se fazem parte dos pilares do conhecimento ou não? Era importante ter este pilar ou não? O que é que podemos aprender se este pilar estiver estabelecido e consolidado? É muito este o trabalho que se vai fazendo. De um ponto de visto mais prático, quando estou a escrever os projetos desapareço do mundo durante dois ou três meses em dedicação absolutamente total, num trabalho de imersão profunda em ideias, em conceitos e em literatura, até que entenda atingir o ponto certo, a sensação de que o projeto pode ganhar. É tudo o que podemos garantir: um projeto que pode ganhar e, depois, ir à luta. Mas dói, sai do corpo, ainda estou a pagar o preço do desgaste intelectual do que é erguer uma proposta desta natureza que tem que estar perfeita, de alguma forma. Não que a perfeição se atinja, mas tem que roçar essa perfeição porque é, de facto, muito competitivo.
A exploração dos mistérios e mecanismos da divisão celular: eis o motor do seu trabalho científico. As aplicações clínicas de novas descobertas são potencialmente determinantes para o tratamento do cancro. Gostaríamos de explorar em maior detalhe o atual projeto Advanced Grant, o que é a sua génese, a que grande questão ambiciona responder e que caminhos levarão a equipa a uma conclusão?
O ponto fundamental é que o tema, o problema biológico, continua a ser a divisão celular. E foi isto nas três grandes bolsas ERC. Aliás, é isto desde que me conheço como cientista. Penso que o nosso mérito terá sempre sido a nossa capacidade de olhar para ângulos desconhecidos do problema. Já o fizemos na Grant anterior, começámos a explorar o impacto da diversidade dos microtúbulos no processo, um conceito com 40 anos, mas que não sabíamos o que é que significava. Vinte anos a trabalhar num problema – não só nós, mas dezenas de laboratórios por este mundo fora – leva-nos a um acumular de conhecimento que nos coloca, neste momento, numa posição privilegiada para podermos começar a fazer perguntas sobre a grande questão da biologia: a evolução. Essa é a grande questão. Há teorias, mas não há mecanismos, não há demonstrações experimentais de como é que as coisas se vão procedendo. O estudo incide sobre duas espécies de veados muito semelhantes geneticamente, tão semelhantes que se podem cruzar entre si, originando indivíduos viáveis, mas estéreis. Acontece que uma espécie tem 46 cromossomas e a outra tem 6 cromossomas (no caso das fêmeas). O que coloca a questão: parece que o número de cromossomas não interessa para absolutamente nada, porque há uma com 46 que funciona bem e uma outra, com 6, que é igual e funciona igualmente bem. Então, porque é que uma tem 46 e a outra 6? E por que é que isto importa? Uma das características que leva à emergência de novas espécies é precisamente a alteração no número de cromossomas e cada espécie tem um número de cromossomas característico. O que nos suscitou a questão: há alguma vantagem em ter 6? Há algum preço a pagar por ter 6, alguma consequência, ou isto é totalmente irrelevante? Por exemplo, os 46 cromossomas do Homo Sapiens surgiram pela fusão de 2 cromossomas noutros hominídeos, nomeadamente nos chimpanzés, orangotangos e gorilas, que tinham 48. E durante décadas se achou que os seres humanos tinham 48 cromossomas, era este o número de referência. Só depois, através do desenvolvimento das técnicas de citogenética, é que se concluiu e definiu que os humanos têm 46 cromossomas. Há alguma vantagem associada com a redução, neste caso, do número de cromossomas, que esteja relacionada com a nossa evolução e com a forma como nos destacamos enquanto espécie dominante sobre as outras que habitam o planeta? As perguntas podem continuar por aqui fora, mas decidimo-nos concentrar e focar no problema que conhecemos bem, que é a divisão celular. Fomos, por isso, à procura das perguntas que relacionam o número de cromossomas com a divisão celular. Falamos muitas vezes em evolução a partir dos genes porque há diferenças nos genes, na própria sequência do ADN que nos distingue entre espécies, e depois há características morfológicas que nos distinguem entre espécies que estão inscritas no ADN. O que não sabemos é o que acontece entre o ADN e o organismo. Há todo um universo, a nível celular, que também precisa de acomodar as alterações que acontecem no ADN, que depois traduzem alterações de forma, de aspeto, de função, naquela espécie em particular. Portanto, o nosso problema continua a ser centrado na célula e na divisão celular, mas queremos perceber, por exemplo, se há genes que têm de ser modificados, que têm de evoluir para lidar, por exemplo, com uma célula que tem só 6 cromossomas. Este é o grande desafio e esta é a grande pergunta que queremos fazer: como é que as células, durante a sua divisão, lidam com a variedade no número de cromossomas? Podemos depois transpor isto para a alteração no número de cromossomas que é só, e sublinho só, a característica mais transversal em todos os tipos de cancro que se conhecem. Nalguma altura, um determinado tipo de cancro vai sofrer alterações no número de cromossomas. Pode não ser a causa, mas, nalguma altura do seu desenvolvimento, isto vai acontecer. Pensa-se que estas alterações estarão relacionadas com a própria evolução do cancro num indivíduo; a diferença é que, no processo de especiação isto demora milhões de anos, no cancro, acontece durante a vida de uma pessoa. Mas acreditamos que os processos que estão na origem de um e de outro são partilhados e comuns, ainda que um demore tempo e não haja consequências negativas para a espécie, porque há milhões de anos de adaptação para acomodar aquela condição. No cancro, esse tempo não existe. Acreditamos que, se descobrirmos genes ou mecanismos que lidam com as diferenças no número de cromossomas a nível celular, iremos conseguir aplicar o conhecimento em condições em que a alteração no número de cromossomas existe e é transversal a vários tipos de cancro. Uma das motivações é o facto de existirem já vários estudos e ensaios clínicos com novos fármacos que exploram aquilo a que nós chamamos de instabilidade cromossómica numa grande parte dos cancros humanos. Contudo, não sabemos qual é o mecanismo nem a variável que torna aquelas células efetivamente mais suscetíveis do que uma célula normal ao tratamento com estes novos fármacos. O que se pretende agora é um tratamento diferenciador, que seja mais específico para as células más e que poupe as células boas. O problema da divisão celular é este: é que para o bem ou para o mal, as nossas células têm que dividir.
Estamos um degrau mais próximos de compreender a génese da nossa origem enquanto espécie, ou permanecemos anos-luz distantes no conhecimento sobre a nossa própria evolução?
É uma pergunta interessante. Acho que estamos mais próximos. Acho que nós, como humanos, tendemos a achar-nos superiores a todos, superiores a todas as espécies. A nossa dominância no planeta é o espelho disso mesmo. Curiosamente, uma área que tem evoluído muito nos últimos anos é a sequenciação dos genomas de hominídeos, de outras espécies humanas, não Sapiens mas suficientemente próximas, que estiveram na base do que foi a emergência do Homo Sapiens atual, e que nos dão pistas de como é que essa evolução foi acontecendo. Agora temos o código e pela primeira vez – era impensável há uns anos atrás, mas devido ao melhoramento, sobretudo, da extração do material biológico que se encontra em restos mortais pelo mundo fora – conseguimos reconstruir um mapa de como tudo começou: cruzamentos entre duas espécies que levaram ao aparecimento de outras, composição e parte do nosso genoma que terá evoluído a partir de uma espécie dominante ou de outras menos dominantes. Estamos mais próximos hoje do que estávamos há uns anos atrás de perceber a nossa origem. Recomendo um livro muito interessante de um Professor de Harvard chamado David Reich, que trabalha nesta área; intitula-se “Who We Are and How We Got Here” e aborda o tópico para leigos. Esta é uma área emergente que consegue transformar todo este conhecimento científico dos últimos anos. Deu, aliás, um prémio Nobel a Svante Pääbo, um cientista sueco pioneiro na capacidade de preservar e extrair o ADN destas espécies relacionadas com o homem e que nos permitiram perceber um pouquinho mais sobre a nossa origem e sobre como chegámos aqui hoje. Cada vez mais é menos teoria e hipótese, cada vez mais é evidência. Antes baseávamo-nos em dados antropológicos, de registos fósseis e até na capacidade de fazer e usar utensílios. Hoje em dia temos informação genética que nos permite criar um imaginário de como é que as coisas eram há milhares de anos atrás. Temos a informação genética, temos o ADN daquelas pessoas e conseguimos perceber como é que, daquele momento, evoluímos até aos dias de hoje e que contribuição é que uma determinada subespécie teve para o Homo Sapiens de hoje. Estamos hoje mais próximos porque temos este material sem preço, preciosíssimo, que são os registos e as amostras biológicas que conseguimos preservar e a partir das quais conseguimos extrair informação. Tudo isto nos fala sobre o nosso passado e como é que chegámos aqui hoje. Curiosamente, os genes que evoluíram muito rapidamente entre o Neandertal e o Sapiens foram genes relacionados com a divisão celular. Pensa-se que terá a ver, precisamente, com a capacidade das células precursoras dos neurónios terem outro tipo de eficiência, ou seja, de conseguirmos eventualmente formar mais neurónios porque temos aquelas mutações em genes que são importantes para a divisão das células precursoras dos neurónios. É fascinante.
Estamos mais perto de responder a estas questões graças a cientistas e investigadores que as estudam. Em 2016, foi eleito por pares para integrar a Organização Europeia de Biologia Molecular (European Molecular Biology Organization [EMBO]). Considerando esta experiência, e na sua opinião, a Europa investe o suficiente na ciência? Parece que há uma certa superficialidade naquilo que interessa comunicar ao público. Há uma consciência, não só política mas societal também, da importância da ciência? O que poderemos fazer para chamar a atenção da sociedade?
A resposta a essa pergunta é muito simples: é educar, educar melhor, educar diferente. Só que isso demora tempo e não tem repercussões imediatas. A lógica da ciência e a lógica da comunicação são muito diferentes. A ciência é algo de extremamente profundo, tem que ir ao fundo das questões, tem que ir perceber a base, os mecanismos. A comunicação quer aquilo que é visível, aquilo que chega às pessoas, e o que chega às pessoas é uma vacina que resolve uma pandemia, é um medicamento revolucionário que cura o cancro. Mas depois esquecemo-nos de perceber de que forma chegámos aqui. O engenho humano permite criar soluções, soluções essas que não sabemos bem para que é que servirão, mas que num contexto muito específico se tornam transformadoras. Tudo o que está na base daquilo que resolveu a última pandemia é a ciência fundamental, desde os diagnósticos, os testes rápidos e depois, mais tarde, as vacinas. Penso que o que tem destacado os países mais desenvolvidos é a perceção de que o ciclo da inovação depende de uma base muito alargada de ciência fundamental, porque se não houver essa base não vamos alimentar esta fogueira para depois ter os resultados que chegam às pessoas, no momento certo, quando o desafio chega a nós e percebemos o que temos à nossa disposição para dar resposta. Então começa-se a experimentar, a transformar este conhecimento em algo que é útil. Na Europa, a iniciativa do ERC é única a nível mundial. Curiosamente, há muitos projetos que são financiados pelo ERC que não tinham a mínima hipótese de ser financiados atualmente pelo sistema americano. O que a América representava há 20 anos, e eu também por lá passei, era a liberdade para experimentar, para explorar sem preocupações e isso desapareceu. Também por isso é que a América tem vindo a perder preponderância em certas áreas de conhecimento, porque abandonou essa lógica. Não totalmente, mas reduziu significativamente essa lógica. A Europa tem feito esse esforço, mas sempre curto. O que se faz de uma forma confederativa a nível europeu não se materializa depois numa grande parte dos países europeus. Portugal deixou de investir em ciência fundamental, isso já é muito claro, e se olharmos para os países mais ricos vemos uma Suíça a continuar a financiar investigação fundamental do mais alto nível, uma Alemanha que, apesar dos custos do fraco crescimento económico – muito relacionados com o contexto atual em que vivemos – continua a ser dos países que percebe que tem de continuar a investir na ciência fundamental, porque quando esse ciclo se esgotar vamos deixar de alimentar aquilo que se vê, aquilo que depois chega às pessoas como inovação. E não sabemos hoje o que irá ser! A nível europeu a esperança é de que, de alguma forma, as comunidades científicas consigam ter voz, e é cada vez mais difícil ter voz no seio político da União Europeia. Vivemos muito da espuma dos dias, da ação e reação, cada vez menos estratégicos e mais reacionários. Não tenho nenhuma receita milagrosa. O que faria, sempre, é dar o máximo de liberdade a pessoas que já demonstraram ter muita capacidade para fazer as perguntas certas e ir chegando às respostas porque depois, fazer a ligação de que algo é útil, ou pode ser útil, é um instante. O bottleneck está na ideia, no conceito, em toda a génese e na procura da pergunta original.
Do ponto de vista nacional, Portugal tem recursos bastante mais limitados. De 2012 e 2015 foi Conselheiro Nacional para a Ciência e Tecnologia do Primeiro-Ministro. Desta perspetiva mais estruturada, e dentro da realidade que conhece, entende que haverá oportunidade para os cientistas e os investigadores terem uma voz mais ativa na forma como se faz política e se gere a sociedade?
Se andarmos 20 anos para trás, ou mais, percebemos de que forma é que a ciência foi transformadora em Portugal. Há um momento em que passámos de não haver ciência a termos a geração mais qualificada de sempre, usando um chavão habitual. E se formos fazer contas, a ciência provavelmente é um caso de estudo, porque foi seguramente a área mais transformadora da nossa sociedade desde que ela entrou em cena. Porquê? Porque investimos na educação. Quando refere que Portugal não tem recursos, eu concordo e discordo. Não temos grandes recursos financeiros, mas temos um recurso que é de valor incalculável, que são as pessoas. Temos pessoas com fome de saber, temos pessoas que foram privadas do conhecimento durante décadas. Temos pessoas motivadíssimas para avançar se lhes for dada uma mão. Nós começámos o nosso grupo de investigação com 10 mil euros e hoje em dia conseguimos atrair 11 milhões, sem falar em salários individuais que fomos conseguindo ter para mais de 40 pessoas que passaram pelo meu grupo durante os últimos 20 anos. A ciência é um bom investimento se for feito de uma forma correta, assente no mérito, de uma forma transparente e assente na avaliação por pares. Os dados estão aí, não são meus: cada euro que foi investido em ciência foi valorizado centenas ou milhares de vezes para a nossa sociedade diretamente, através da produção de conhecimento e pela formação de gerações altamente qualificadas, bem como por toda a parte indireta que gravita à volta da ciência. Nesta matéria sou objetivo e factual, os dados existem, há estudos feitos e os números estão aí. Efetivamente, a ciência foi um caso sério de sucesso, muito devido à visão de uma pessoa chamada Mariano Gago, que sonhou um país diferente, que não foi na onda dos ‘coitadinhos’, de que nós não conseguimos fazer, e que achou que tínhamos igual ou maior potencial para crescer em termos científicos e transformar o país através da ciência. E isso gerou a minha geração, que bebeu dessas políticas, que não podem e não se podem esgotar em legislaturas de um ano. Deveu-se também a um período de estabilidade política muito grande, em que terá sido ministro da ciência em quatro legislaturas e, portanto, começou uma política e teve possibilidade de a implementar de uma forma consolidada ao longo dos anos. A ciência precisa de tempo. Cada vez que um político tenta mexer no sistema… às vezes peço para não o fazer, porque é mais provável que o estrague ao querer fazer alguma coisa transformadora e imediata ao invés de deixar as coisas como estão, entregues à própria ciência. Sou um acérrimo defensor da independência dos órgãos científicos que, de alguma forma, estão ligados aos governos. Acho que deviam ser cada vez mais despolitizados, dotados de um orçamento que seria, obviamente, negociado, mas que sejam efetivamente liderados pela própria comunidade científica e pelos líderes que esta comunidade científica aponta. Para mim, esta é uma via muito clara do que deveria ser feito. Sou um otimista e acredito que vamos lá chegar. Vivemos tempos conturbados, difíceis de compreender, de aceitar a muitos níveis e, provavelmente, a ciência é menos importante quando morrem pessoas com guerras que estão tão presentes, hoje em dia, no nosso quotidiano. Por isso, a ciência deixou de ser notícia e o importante é que não nos esqueçamos dela, porque é parte da solução, a vários níveis. Vamos entrar agora numa nova revolução da inteligência artificial em que temos que estar preparados. Quanto mais literacia tivermos nessa área, quanto mais preparados estivermos para viver com ela, melhor ou mais sucesso teremos num futuro competitivo a nível global, a meu ver. As ciências sociais podem ajudar a responder a estes desafios e são, muitas vezes, o parente pobre da ciência. Provavelmente são aquelas que até terão um poder transformador maior, pelo menos no curto-médio prazo. Mas são altamente negligenciadas; mal, a meu ver. E eu que não sou um cientista social sou o primeiro a dizê-lo: as ciências sociais são um outro pilar que tem sido muito, muito esquecido e completamente ignorado pelos agentes políticos. Porque, às vezes, as direções são claras e são apontadas pelos estudos que se vão fazendo e vamos, muitas vezes, em direções opostas. Mas eu quero acreditar que, nalguma altura, se vai ver a luz. O bom senso vai emergir e vai imperar sobre tudo. Vai haver uma altura em que vamos ter mesmo de agir. É curioso, quando um país entra em crise financeira, vai-se buscar um tecnocrata para resolver o problema. Ou seja, vai-se buscar alguém da ciência para fazer as coisas como têm que ser feitas, porque há dados objetivos e há soluções objetivas para aquele problema em particular. É preciso deixarmo-nos de experimentalismo e de tentar resolver as coisas de uma forma mais poética, ou até ideológica. É preciso voltar a implementar uma cultura científica na nossa sociedade.
É fundador do Yscience, uma iniciativa sem fins lucrativos que pretende incutir nas crianças a paixão pela descoberta, incentivando-as a explorar o maravilhoso mundo da ciência. O que o motivou a criar este projeto?
A escola de hoje continua a ensinar sobre os mesmos princípios pós-Revolução Industrial, quando a curiosidade, a criatividade e o espírito crítico são cada vez mais apontados como as características mais diferenciadoras para um futuro que se avizinha muito próximo. Estes aspetos não são trabalhados na escola atual, que não ensina a fazer perguntas, nem sequer incentiva a fazer perguntas. Aliás, os professores, de uma forma geral, sentem-se muito desconfortáveis quando os alunos fazem perguntas sobre coisas que eles não sabem. Porque não é suposto um professor não saber. Isto tem de se desconstruir. O professor não tem de saber e tem de tentar, juntamente com os alunos, procurar a resposta. Dizer ‘não sei’ é um ótimo ponto de partida para se trabalhar com os alunos. A Yscience surge como um ato de revolta. Perguntei-me o que é que eu posso fazer, o que é que está ao meu alcance fazer para mudar o rumo do curso da educação. Costumo dizer que todas as crianças nascem a saber fazer perguntas, mas a escola continua a ensinar a dar as respostas, não ensina a questionar. E o nome Yscience (y homófona de why) vem mesmo disto: Porquê? Os porquês das crianças que estão sempre a querer saber, a fazer perguntas que são as mais interessantes, porque são ingénuas. Algo as confrontou e elas sentiram curiosidade em saber. Sendo eu das ciências e a minha mulher psicóloga, que trabalha com crianças, olhámos para as escolas, olhámos para os nossos filhos e sentimos que havia uma lacuna, e decidimos então iniciar este projeto. Sublinho, não tem fins lucrativos. É uma iniciativa privada e quero que continue a ser privada, quero continuar a ser eu a controlar e a decidir o que fazer. Não quero que ninguém me diga como fazer isto. Não quero depender de fundos nem de apoios públicos. Trabalhamos com as Câmaras, com as escolas (públicas e privadas) e com quem quiser trabalhar connosco. Esta é a nossa filosofia. A ideia é explorar, num ambiente escolar, o método científico; é tão simples quanto isto. É um método provado com dois mil anos de teste de tempo e que se revela importante no processo de aprendizagem. Formular uma questão, uma hipótese, definir como é que vamos testar a hipótese, a abordagem experimental e ser capaz de analisar os resultados. E muitas vezes os resultados não são a resposta ao problema inicial. Levantam-se outras perguntas. A perceção que tenho hoje em dia, é que a escola foi matando todo este ciclo e nós tentamos mantê-lo vivo. Felizmente há muitas escolas que concordam connosco, pessoas com uma certa visão, com quem temos vindo a trabalhar, até em articulação com os próprios currículos académicos. Não estamos a falar em atividades pós-letivas, estamos a falar de ensinar ciências, fazendo ciência, reservando um tempo semanal e regular para que esta forma de estar e trabalhar comece a fazer parte dos hábitos e criando uma forma diferente de abordar os problemas. Felizmente temos, se calhar, milhares de crianças com quem já trabalhámos que foram bebendo deste espírito. Temos recursos muito limitados e estou consciente que não posso dar muito tempo ao projeto. No início dediquei algum tempo, mas hoje em dia estou só nos bastidores, o projeto corre por si. Temos pessoas contratadas que são pagas pelo trabalho que fazem, não são voluntárias. Não gosto de voluntários a trabalhar e sim de pessoas que sejam remuneradas pelo trabalho que fazem. Tudo isto tem um custo, em nome de um projeto, da sua sustentabilidade e da sua independência. Este é um aspeto também importante porque se dependermos exclusivamente de financiamentos públicos estamos à sua mercê. Quando deixar de poder ser assim, o projeto acaba, pelo menos comigo.
A ciência nasce da curiosidade insaciável. Que perguntas é que ainda espera fazer?
Eu não as sei. Mas tenho a certeza que vão surgir. Neste momento, as perguntas que me tiram o sono são aquelas de que fomos falando ao longo desta entrevista, que têm a ver com este horizonte de 5, 6 anos que temos pela frente de um financiamento já garantido e que me vai permitir dedicar a maior parte dos meus recursos e dos meus esforços para estas perguntas que já estão definidas. Também sou bastante pragmático, não gosto de começar já a desviar-me. Sou muito determinado a tentar responder, quase obsessivamente, quando existe a pergunta e ela está identificada. O que todo este histórico de 20 anos, ou mais, me tem dito é que daqui por 5 ou 6 anos vou ter novas perguntas. A grande questão que se coloca é se terei a energia necessária para continuar a obter essas respostas ou, enfim… o que me reserva o futuro, não sei. Mas, pelo menos até o dia de hoje, sempre fui motivado por resolver estas perguntas. E acho que uma das coisas que tenho conseguido fazer, às vezes com custos a outros níveis, é perceber o que é essencial, distinguir o que é mesmo importante daquilo que é acessório para dedicar o meu tempo. Neste aspeto sou um pouco egoísta - diria até bastante egoísta - porque coloco sempre o foco na pergunta que me está a assolar naquele momento. Muitas vezes é em detrimento de ajudar a resolver problemas mais reais e mundanos que estão à minha volta. Não que eu não o tente fazer, mas enquanto conseguir viver com este pouco egoísmo, no bom sentido, em que ainda temos a hipótese de responder a perguntas nossas, será esse o meu foco.
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