Atividade de investigação em Belas Artes
Gostaríamos de começar por percorrer consigo este já longo caminho trilhado na academia. Partindo da escolha pelas artes, pintura, artes plásticas e multimédia, de que forma foi sendo talhado o seu percurso?
O desenho do percorrido não corresponde a algum esboço prévio orientador, mas resulta do modo avulso como foram dribladas as encruzilhadas surgidas. Após o ‘Ensino Primário e Preparatório’, a Escola de Artes Decorativas de Soares dos Reis acolheu-me, possibilitando o smeu diploma e um rumo profissional ligado às ‘artes decorativas’ e ao ensino. Terminado o curso de Pintura Decorativa, e a Secção Preparatória para Belas Artes, candidatei-me à Escola Superior de Belas Artes do Porto (ESBAP), estando criadas, em paralelo, as condições de sustentação financeira através do meu ingresso na carreira docente, como professor da disciplina de ‘Trabalhos Manuais’ e, mais tarde, de ‘Artes Visuais’ no Ensino Secundário. A frequência na ESBAP do curso de Artes Plásticas – Pintura, foi violentamente interrompida, no 3º ano, devido à imposição do Serviço Militar obrigatório pelo regime colonial português. Passados quatro anos de ‘sequestro’ da vida académica e pessoal, regresso da Guiné-Bissau para o Portugal de Abril, militar dos cravos, implicado na cultura política de esquerda, enraizada na luta contra-colonial. De novo na ESBAP, termino o curso ao mesmo tempo em que retomava a vida de professor e me envolvia intensamente na atividade cultural, fundando e dirigindo a GESTO Cooperativa Cultural. Respondendo à abertura de um concurso e fui contratado como assistente para a Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto (FBAUP). O ingresso, em idade já madura, como docente na Universidade mobilizou a imediata entrada no percurso académico, tendo realizado, logo de seguida, o primeiro Mestrado em Arte Multimédia promovido pela FBAUP e a Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto (FEUP), e depois o Doutoramento em Pintura na FBAUP, com a tese intitulada “Arte/desENVOLVIMENTO”. Na FBAUP, a partir de então, concentrei-me perseguindo desejos renovadores e insistindo no inalcançável, até à minha jubilação, integrando a equipa fundadora do Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedade (i2ADS) onde continuo a atuar na sua direção e no seu Conselho Científico.
Coordena o IDENTIDADES_Colectivo de Acção/Investigação (ID_CAI), coletivo de ação-investigação em cooperação intercultural entre países de expressão oficial portuguesa e América Latina. Que projetos do coletivo, e que consequências daqui decorridas para o entendimento da interculturalidade, destacaria?
Desde cedo, ainda professor na ‘Soares dos Reis’, entendi os limites da atividade letiva pela insuficiente oferta de condições propiciadoras às pessoas estudantes de inscrição consciente na sociedade, perante os globalizados dilemas catastróficos da contemporaneidade. Decide-se, então, experienciar sair da Escola e percorrer, com a comunidade escolar participante e interessada, caminhos ainda mal conhecidos (Mértola, Barrancos, Paris, Madrid, Mindelo de Cabo Verde, Maputo em Moçambique, Estado de Pernambuco no Brasil, …). A Europa, que nos propicia relativo bem-estar e valores democráticos, muito ilude e invisibiliza o que se passa fora das suas fronteiras, nas encruzilhadas civilizacionais e ecológicas condicionadas pela colonização sofrida na atual globalização. Nesses contextos, de que em parte a Europa é responsável, é ignorada a potencialidade gerada pelo movimento social emergente, em particular no Sul político, que possibilita outras perspetivas sociais geradoras de um devir-outro. O IDENTIDADES, como movimento intercultural e, no presente, também como Coletivo de Ação/Investigação (ID_CAI/i2ADS/FBAUP) propicia, enquanto movimento orgânico, oportunidades de escuta e de reflexão partilhada sobre os esforços que, fora da Europa, procuram renovados caminhos para a inscrição social e irreverência da Arte e da Educação Artística nos dilemas políticos, entendidos na urgência contra-colonial de práticas anti-discriminatórias e ecologicamente eficientes na inversão do rumo para o abismo climático e social para que caminha a humanidade. No decorrer da lentidão dos tempos, está sendo tecida uma rede de cumplicidades, de ação/investigação diversificada e duradoura, com comunidades, coletividades e instituições de ensino, numa geografia que pensa e fala, além das suas próprias línguas, em português (Brasil, Cabo Verde, Moçambique, Portugal e São Tomé e Príncipe), sendo recentemente alargada na América Latina e para Espanha. No historial deste movimento, mais do que os eventos e acontecimentos realizados, destaca-se a incorporação, em cada pessoa praticante, do sentido epistemológico e cultural que as experiências significativas por que passou lhe pertencem, enquanto conflito identitário enfrentado, na perceção de que o sucesso está na consciência da sua própria incompletude.
Poderia partilhar exemplos concretos de como estes projetos influenciaram políticas ou perceções públicas no que diz respeito às relações interculturais?
A matriz europeia que se instala na minha identidade, e deste coletivo — independentemente das posturas críticas adquiridas e partilhadas —, transporta perante o mundo não Ocidental sentimentos e posturas assistencialistas e interpretações das suas histórias como atrasadas, a partir da comparação com o ‘nosso’ modelo de desenvolvimento, evolucionista e considerado certeiro para a humanidade. Independentemente da perceção, que se vai tornando visível, do congelamento do futuro e da ampliação da desesperança que o modelo neoliberal vai consolidando, há uma tendência de nos iludirmos e ocultarmos a construção da esperança que alternativas políticas experienciais, espalhadas numa ampla geografia, movimentos sociais, resistências contra-coloniais, modos de sobrevivência e luta de comunidades, vão emergindo e oferecem novas possibilidades de um ‘há-de vir’. As relações interculturais movimentadas influenciam nos seus interferentes, seus corpos e suas vidas, tendendo a fortalecer as suas perceções políticas e a sua implicação social. Os exemplos da conflitualidade gerada nas pessoas participantes que o IDENTIDADES tem envolvido, a partir da U.Porto, na ação/investigação intercultural, evidenciam na dimensão do político o desconforto enfrentado no confronto, entre o que cada um transporta nos seus corpos europeus portadores de resíduos de sobranceria cultural subliminares ou visíveis, e as realidades-outras portadoras da esperança e do envolvimento radical com a abertura de destino nas suas comunidades. É-nos oferecido o prazer do convívio com práticas de democracia real, do cimento da pertença às comunidades parceiras, a abertura para o novo enquanto alimento para suas demandas e lutas, a respiração do político como modo de ser e agir, o entendimento do sentido da pluralidade da identidade como um de nós, repleto da sua história, do seu orgulho identitário e da esperança no devir.
A investigação debruçada sobre a discriminação, o racismo e o colonialismo destaca-se amplamente de entre os temas que investiga. Poderia partilhar com a comunidade científica da U.Porto o porquê deste interesse tão particularmente demarcado?
A angústia que sustenta a minha ação/investigação, e todo o movimento deste meu corpo cansado, incansável no esperançar, corresponde à minha perceção de que a humanidade corre para o seu fim - e que o que mais nos falta no Ocidente é confiar no mundo. Não se pode iludir a herança da prepotência colonial que concetualizou, no Ocidente, a existência de ‘raças inferiores’, ‘civilização’ que instituiu e legalizou práticas racistas e naturalizou relações discriminatórias mesmo no seu seio. Esta herança inscreveu na história da humanidade invasões cruéis, a prática da escravatura, êxodos de povos e guerras em benefício dos seus interesses geoestratégicos. No pleno século do Iluminismo houve o Holocausto e Hiroshima e, hoje, o Ocidente tende a agir com indiferença ao genocídio do povo da Palestina e às demasiadas crueldades que estão a ocorrer. Não se trata de passado, já que hoje o conforto de uns e os interesses político financeiros dominantes continuam a considerar parte da humanidade como uma espécie de não humanos, ‘sem rosto’, ‘sem nome’, ‘sem terra’, ‘sem pão’ e ‘sem paz’. Esta perceção política não pode dissimular a presença dessa dimensão desmesurada de contingentes de pessoas, sem sonhos e sem sombra, nem esbate a encruzilhada em que vivemos, sem esperança e sem sonho coletivo face à anunciada catástrofe ecológica e climática. No entanto, é-nos oferecido o simulacro de que na nossa ação artística, docente e na investigação, podemos perseguir e construir momentos artificiais de felicidade, fomentar os mecanismos sedutores de ilusão e partilhar estratégias sociais de adormecimento coletivo perante o existente, embora apenas percetível a partir de uma postura crítica e radical face à ‘informação construída’ que nos é fornecida. Também somos convidados para o percurso de procura por uma contribuição esclarecida para fortalecer o ‘pensamento crítico’, integrando a elite académica e intelectual, que embora entenda tão bem os dilemas da humanidade, tão pouco age sobre ele. O interesse e o sentido de minha investigação residem na partilha dos corpos e dos afetos movidos em campos de cumplicidade contra-colonial, enquanto consciente do fracasso do que faço, do que coletivamente fazemos, da incompletude do esforço contra-corrente de fomentar a partilha, contrariando o neo-individualismo, tentativa de alerta na dinamização do que, em verdade, são os coletivos impossíveis. A aragem dos tempos vence-nos, a teimosia resiste.
Que principais desafios destacaria no estudo de diferentes perspetivas culturais, e que soluções partilharia como métodos para ultrapassar esses desafios?
A busca incessante pela perfeição, uma ilusão suprema promovida pela religiosidade neoliberal, anula e culpabiliza a incompletude do humano, instalando a supremacia do consumo que torna lixo, descartável, o que a técnica aperfeiçoa, remetendo as nossas capacidades de interferência social para uma nova divindade, apelidada de Inteligência Artificial, que tudo vai finalizar. Condicionados pelo sacrifício do desempenho eficaz, aceitamos o stress e cumprimos os timings, perseguindo os rankings de sucesso, tranquilos perante as divindades da informação, e já não identificamos os avisos das catástrofes, ecológica, climática e social, nem reconhecemos os sinais do que pode ser o destinooutro. Descrente da existência de milagres, sem aceitar o primado da perfeição e do pleno sucesso, resta-me o conforto de reconhecer o desconseguir da teimosia, o de persistir teimosamente na insubmissão ao instalado e tão bem suportado por estratégias vencedoras de adormecimento social e dos mecanismos legitimados de um poder usurpado da democracia participativa por práticas de representação. Fora de nós, ensaiam-se modos de ‘buen vivir’, vivem-se processos-outros de construção política, imperfeições assumidas de resistências e insistências. Poderemos retirar essas procuras da invisibilidade em que são submersas e escutar suas vozes. “O que faz falta é avisar a malta”, mesmo que consideremos esses métodos como frágeis ou de insucesso perante a força do instalado e dominante.
De que forma se destaca a arte, no seu sentido mais primário e abstrato, como uma poderosíssima ferramenta na construção de pontes, diálogo e compreensão da interculturalidade?
Situando a Arte no exercício da liberdade como práticas de produção singular de autoria sem fronteiras, identifica-se a sua inscrição na sociedade ao longo da história que povoou, com enquadramentos diferenciados, de natureza positiva, indiferente ou crítica, com o seu tempo. Nesse mesmo terreno da diversidade, a Arte pensou e agiu sobre si, quer retida num percurso de manutenção do modo de ser e apresentar, quer a partir do espaço de insubmissão onde habita, ensaiou e ousou renovadas práticas artísticas, estabelecendo sobre si novos enquadramentos conceptuais. A modernidade no Ocidente transformou radicalmente o espaço de liberdade dos autores, soltando-os das amarras da ‘encomenda’ para novos enquadramentos sociais, que a liberdade autoral promovia, para novas filiações institucionais e ao ‘campo da arte’ num controverso posicionamento a um crescente e ávido ‘mercado da arte’. Coexistindo com as profundas transformações decorrentes das alterações sociais que a edificação do capitalismo foi estabelecendo no ‘Norte’, noutras paragens geográficas e também no seu interior, alimentaram-se processos artísticos divergentes e prolongaram-se exercícios conservadores. Persistiram modos de prender a Arte à vida das comunidades, modos autorais e ativistas dissonantes que, no tempo de capitalismo avançado e de ‘globalização do mercado da arte’, foram sendo acantonados ou persistindo em terrenos de resistência. O movimento intercultural IDENTIDADES não pretende inscrever a atividade que promove no ‘campo da arte’, apenas desenvolve em paragens outras, práticas artísticas, encaradas como cumplicidade ativista com anseios nas comunidades parceiras. Transporta para a ação/investigação a irreverência da arte e a sua insubmissão, o aberto dos processos de criação (fazer-pensar/pensar-fazer) que a arte oferece, para promover a experiência de práticas inventivas de procura de caminhos para o enfrentamento conjunto dos problemas com que se apresentam nas geografias vivenciadas, no decurso das cumplicidades forjadas.
De olhos postos no futuro, quais são principais desafios e oportunidades para fazer avançar a cooperação intercultural através da arte e da investigação?
Na incerteza do futuro, reconhece-se a urgência da criação de redes de partilha epistemológica e de insubmissão. Este é um passo essencial face à paisagem de insatisfação, de inquietação, e na resistência aos ventos e tsunamis que persistem nos rumos de desenvolvimento desenfreado, acomodando a ganância dos que mais têm, varrendo todo o dissonante pelos interesses geoestratégicos dominantes. Este quadro é marcado por uma necropolítica de absoluto desprezo pelos ‘sem sombra’, tentando dominar uma Natureza que cada vez mais se zanga e reage contra as ações humanas desrespeitosas. São necessárias redes de entrecruzamento de ideias e ações, que associem as suas práticas artísticas, de investigação e de ensino, às possibilidades de inversão dos roteiros pré-configurados para a humanidade, rumo ao desajuste climático, à exaustão dos recursos naturais, ao explodir da crise climática, enfim, ao ‘fim da humanidade’ agindo, pelo menos, para ‘adiar o fim do mundo’.
Que conselhos partilharia com artistas e investigadores interessados em explorar temas de identidade e interculturalidade?
O ID_CAI (IDENTIDADES_Coletivo de ação/investigação) sempre se situou na consciência de que não há identidade, mas sim identidades, como um conceito que habita a inevitável diversidade, bem como com o imprescindível elo com a interculturalidade e com o reconhecimento da alteridade. Partilhamos experiências, desaconselhamos os conselhos pela fragilidade do que vamos entendendo. Contrariemos as nossas certezas e acomodações e disponibilizemo-nos para escutar o dissonante, não para lhe contrapor as nossas teimosias, não para as fechar nos limites da nossa sabedoria, mas apenas para saborear a dissonância, os seus sabores e sabedorias. O respeito e a defesa radical da alteridade, pode ser do que precisamos. A radicalidade convive bem com o seu fracasso e com a incompletude da sua presença, semeando o esperançar de que precisamos.