Investigadores U.Porto

U.Porto Reitoria SIP
Maria João Ramos
Faculdade de Ciências da Universidade do Porto (FCUP) / Laboratório Associado para a Química Verde (LAQV/REQUIMTE)

Atividade de investigação em Bioquímica Computacional

As áreas da Bioquímica Computacional e da Química Teórica estão no cerne do seu trabalho científico. Como percorreu o percurso que levou a esta interseção de áreas? Houve algum momento decisivo ou figura(s) inspiradora(s) que porventura influenciaram esta escolha?
O meu percurso na interseção entre a Bioquímica Computacional e a Química Teórica foi moldado tanto pela curiosidade em explorar como as reações químicas ocorrem a nível atómico, como por momentos decisivos ao longo da minha formação. Durante parte da minha formação académica, i.e. licenciatura e doutoramento, tive a oportunidade de contactar com a matéria relacionada com estrutura atómica e molecular e, posteriormente, num post-doc, com a modelação molecular e a simulação computacional, o que me abriu um novo mundo de possibilidades para estudar sistemas biomoleculares de forma detalhada. Um momento decisivo foi a minha primeira experiência com métodos de química quântica aplicados a enzimas, durante o meu post-doc em Oxford, onde percebi o impacto que estas ferramentas podem ter na compreensão da catálise enzimática e do funcionamento molecular das proteínas. Foi ainda na Universidade de Oxford que me ofereceram o lugar de Diretora Associada do Computational Centre for Drug Discovery at Oxford, que integrei durante cerca de quinze anos, e que contribuiu decisivamente para a minha carreira científica e para o financiamento da minha investigação. Abandonei este cargo apenas quando me tornei Vice-Reitora da U.Porto para a Investigação, por impossibilidade de conseguir realizar ambos devidamente. Para além disso, vários familiares, colegas e amigos tiveram um papel fundamental no meu percurso científico. A forma como abordavam problemas, nomeadamente científicos, motivaram-me a aprofundar o meu conhecimento e a seguir um caminho que integra a química teórica e a bioquímica. Hoje, vejo essa interseção como essencial para abordar desafios científicos complexos, desde o design de novos fármacos até à compreensão dos mecanismos de biodegradação de plásticos.

Sobre a realidade contemporânea, nomeadamente as tendências de integração de inteligência artificial e a exploração de big data em diversos âmbitos de conhecimento, considera que vivemos um período único para desvendar possibilidades e avenidas inexploradas? Que potencial disruptivo identifica nestas ferramentas para a investigação científica na sua área de atuação?
Vivemos um período único e extremamente promissor para a investigação científica, impulsionado pela integração da inteligência artificial (IA) e pela exploração de big data. A capacidade de processar enormes volumes de dados e identificar padrões complexos está a transformar a forma como abordamos problemas científicos, incluindo os existentes na Bioquímica Computacional e na Química Teórica. Nomeadamente, na minha área de investigação, vejo um enorme potencial nestas ferramentas. A IA tem permitido acelerar significativamente a descoberta e otimização de moléculas com aplicações biomédicas e industriais. Por exemplo, modelos de machine learning podem gerar modelos estruturais de proteínas, como evidenciado pelo impacto do AlphaFold2, ou sugerir novos candidatos a inibidores enzimáticos. Além disso, a integração de big data com métodos computacionais avançados está a permitir usar abordagens híbridas que combinam simulação, análise de grandes bases de dados e modelos preditivos para obter um conhecimento mais rápido e, por vezes, mais robusto. É isto mesmo que o nosso grupo começou há pouco tempo a fazer, nomeadamente no que diz respeito à previsão do mecanismo catalítico da enzima α-amilase. Acredito que esta revolução digital não só está a expandir as fronteiras do conhecimento, mas também a democratizar o acesso à ciência, na medida em que, com ferramentas mais acessíveis, um maior número de investigadores poderá contribuir para descobertas inovadoras, acelerando o ritmo da investigação e abrindo caminho para resolver cada vez mais desafios científicos.

Entre as suas inúmeras contribuições científicas, muitas têm implicações significativas para áreas como a biomedicina e a criação de novos fármacos. Poderia destacar uma descoberta particularmente marcante? Gostaríamos também que pudesse partilhar com a comunidade científica da U.Porto as pistas de investigação que atualmente lhe suscitam mais interesse.
Uma das contribuições mais excitantes no meu percurso científico foi a utilização da computação distribuída na conceção de produtos farmacêuticos. Iniciado em 2000, o nosso projeto Screensaver Lifesaver explorou o tempo de inatividade de mais de 3,5 milhões de computadores pessoais em mais de 200 países, cujos proprietários concordaram em participar e descarregaram o screensaver do projeto. Utilizando o tempo de inatividade destes computadores, o software do projeto criou um supercomputador virtual que analisou milhares de milhões de compostos em relação a alvos proteicos, procurando tratamentos para o cancro, carbúnculo (anthrax) e varíola. O projeto envolveu a colaboração entre a Intel, a United Devices e o Centre for Computational Drug Discovery at the University of Oxford, dirigido pelo Prof. Graham Richards, financiado pela National Foundation for Cancer Research e do qual eu era, nessa altura, Diretora Associada. O projeto foi agraciado com o Italgas Prize for Research and Technological Innovation em 2001.Atualmente, o meu interesse de investigação foca-se na enzimologia computacional, com o objetivo de entender e otimizar biomoléculas com aplicações não só em medicina como em biocatálise. Um dos tópicos mais fascinantes que estamos a começar a explorar envolve o uso de IA para acelerar a descoberta de inibidores enzimáticos, essenciais no desenvolvimento de novos fármacos. Um outro tópico que me desperta grande interesse é a modelação de estados de transição em reações enzimáticas complexas. Muitas reações bioquímicas essenciais ainda não são completamente compreendidas a nível atómico, e os avanços em enzimologia computacional estão a permitir mapear estas reações com uma precisão sem precedentes. Isso pode ter impacto direto no desenho de catalisadores biomiméticos e na engenharia de enzimas para aplicações farmacêuticas e industriais.No geral, o que mais me entusiasma é a possibilidade de explorar novas abordagens para resolver problemas bio/químicos que, até há relativamente pouco tempo, eram considerados inacessíveis.

Compôs o seu percurso científico entre a ciência fundamental e a ciência aplicada. Qual é a sua perspetiva sobre o futuro da Bioquímica Computacional no desenvolvimento de soluções para os grandes desafios globais, como a sustentabilidade ou as alterações climáticas?
Acredito que estamos agora a começar a explorar o verdadeiro potencial da Bioquímica Computacional e que, juntamente com o avanço das tecnologias da informática e da IA, poderemos enfrentar estes desafios globais de forma cada vez mais eficiente e sustentável. A capacidade de modelar e prever processos bioquímicos com elevada precisão permite acelerar a descoberta de novas enzimas e biomoléculas que podem ter aplicações diretas na biodegradação de poluentes, na captura de carbono e no desenvolvimento de biocombustíveis mais eficientes. No contexto da sustentabilidade, um dos avanços mais promissores é a utilização de simulações computacionais para estudar enzimas que degradam plásticos de forma mais eficiente. A compreensão mecanística das reações catalisadas por estas enzimas, obtida através de métodos quânticos e clássicos, pode ser determinante em bioengenharia de variantes enzimáticas mais ativas e robustas, tornando o processo da reciclagem bioquímica uma alternativa viável à acumulação de resíduos plásticos. Outra área de grande impacto é a bioenergia. A otimização de enzimas envolvidas na degradação da biomassa pode aumentar a eficiência na produção de biocombustíveis, reduzindo a dependência de combustíveis fósseis. Além disso, o estudo computacional de sistemas enzimáticos naturais e sintéticos para a fixação de CO₂ tem o potencial de contribuir para estratégias de mitigação das alterações climáticas, facilitando a conversão do dióxido de carbono atmosférico em compostos úteis para a indústria.

A sua carreira científica é também muita pautada por experiências internacionais. Com a crescente importância da colaboração além-fronteiras na investigação científica quais são, na sua opinião, os principais desafios e oportunidades que estas parcerias (tais como pontes entre a academia e a indústria) oferecem para o avanço da ciência?
A colaboração internacional permite a possibilidade de trabalhar com equipas multidisciplinares, incentiva a partilha de recursos e o acesso a infraestruturas tecnológicas de ponta e, como tal, tem sido um pilar essencial no avanço da ciência. Na maioria das áreas científicas, as parcerias internacionais são fundamentais para enfrentar desafios complexos de forma interdisciplinar e integrada. Adicionalmente, colaborações internacionais muitas vezes facilitam o acesso a financiamento competitivo e a grandes projetos colaborativos, como consórcios europeus e iniciativas globais. No contexto da Bioquímica Computacional possibilita, adicionalmente, a validação experimental dos modelos computacionais, tornando as previsões mais robustas e aplicáveis. Como exemplos, presentemente temos dois grandes interesses científicos no meu grupo de investigação: a biodegradação de plásticos e o desenvolvimento de antídotos e de fármacos a partir de venenos de cobras. Em ambos, a colaboração científica é absolutamente imprescindível – no caso da biodegradação de plásticos fazemos parte do consórcio EnZync que integra vários experimentalistas, financiado em 6 milhões de euros pela instituição dinamarquesa Novo Nordisk Foundation. No caso do desenvolvimento de antídotos e de fármacos a partir do veneno de cobras, contamos com variadíssimas colaborações de instituições estrangeiras como sejam grupos experimentais da Universidade de Liverpool, Reino Unido, do IAAST, Índia, da National University, Singapura, e da Universidade da Costa Rica, entre outras. Interessante e simultaneamente triste, é o facto de ser fácil encontrar financiamento para problemas globais e do primeiro mundo, como seja a biodegradação de plásticos, mas para outros tipicamente relativos ao terceiro mundo, como seja o desenvolvimento de antídotos contra o envenenamento por mordidas de cobras, é extremamente difícil conseguir financiamento. No entanto, dentro das colaborações científicas, há desafios consideráveis a ponderar, como seja a adaptação a diferentes culturas científicas e administrativas, principalmente as últimas. Muitas delas ocuparam, infelizmente, muito do meu tempo enquanto Vice-Reitora para a Investigação da U.Porto. O envolvimento da indústria é muito importante para conseguir pôr em prática determinadas descobertas científicas. No entanto, diferenças nos regulamentos de propriedade intelectual e nas políticas de partilha de dados também podem representar barreiras à colaboração. Além disso, o envolvimento da indústria exige um equilíbrio entre os objetivos académicos e as necessidades do setor privado que, nem sempre, são fáceis de conjugar. No entanto, o avanço de áreas estratégicas como a descoberta de novos fármacos, a biotecnologia sustentável e a bioenergia, depende cada vez mais de redes de colaboração globais. Acredito que o futuro da investigação científica será, sem dúvida, acompanhado por uma integração ainda maior entre academia e indústria, promovendo soluções inovadoras para os desafios globais presentes e futuros.

A colaboração interdisciplinar é também fundamental para resolver problemas científicos complexos. Que abordagens considera mais eficazes para criar sinergias entre diferentes áreas do conhecimento?
A colaboração interdisciplinar é essencial para abordar problemas científicos complexos, dado permitir integrar perspetivas, metodologias e ferramentas diferentes. Para que essa colaboração seja o mais eficaz possível, é essencial adotar determinadas medidas que facilitem os problemas mais prementes, como seja a necessidade de uma equipa multidisciplinar com uma linguagem, tanto literária como científica, comum. Projetos com objetivos claros e bem definidos ajudam à formação de futuros investigadores em áreas científicas diferentes, e promover eventos como conferências e workshops, entre disciplinas, são formas eficazes de estimular a interdisciplinaridade. Idealmente deveria haver um apoio institucional e um financiamento bem direcionado… infelizmente, nem sempre é o caso… Acredito que o futuro da Ciência passa cada vez mais por colaborações interdisciplinares. Na Bioquímica Computacional, por exemplo, a integração com áreas como a Física Quântica, a Biologia Experimental e, presentemente, a Inteligência Artificial, tem gerado avanços significativos na compreensão de sistemas biológicos complexos e no desenvolvimento de novos fármacos.

Detém o título de Doutora Honoris Causa pela Universidade de Estocolmo e foi distinguida, em 2019, com o Prémio Madinaveitia-Lourenço, atribuído pela Real Sociedad Española de Química - são estes exemplos de entre outros reconhecimentos internacionais. Na sua opinião, qual é o papel das redes científicas globais na aceleração da inovação e na partilha de conhecimento?
Tive muita sorte em todo o reconhecimento, tanto nacional como internacional, que me foi atribuído durante o meu percurso científico. Recentemente, em 2024, fui nomeada membro da Academia das Ciências de Lisboa e, simultaneamente, Chemistry Europe Fellow, pela Chemistry Europe. No ano anterior, fui contemplada com o Prémio de Excelência na Investigação Científica da U.Porto e, também recentemente, em 2019, com o Prémio Madinaveitia-Lourenço, atribuído pela Real Sociedad Española de Química e, ainda, com o Prémio Centenário da FCUP. O título de Doutora Honoris Causa pela Universidade de Estocolmo deu-me especial prazer dado ser o único prémio que aquela universidade atribui, para além dos Prémios Nobel, obviamente. A ciência é, de um modo geral, um esforço coletivo, e as redes científicas globais desempenham um papel fundamental na aceleração da inovação e na partilha de conhecimento, permitindo a colaboração entre investigadores de diferentes países e disciplinas. Estas redes facilitam o intercâmbio de ideias, metodologias e tecnologias, tornando a investigação mais eficiente e impactante. Alguns dos principais benefícios destas redes incluem o acesso a conhecimentos e recursos, facilitando a resolução de desafios globais (e.g. a última pandemia), o fomento da interdisciplinaridade e a aceleração do desenvolvimento tecnológico. Tudo isto permite a formação de novos investigadores e, eventualmente, influencia a definição de novas disciplinas.No contexto da Bioquímica Computacional e da Química Teórica, por exemplo, a colaboração internacional tem sido determinante para avanços em áreas como a modelação de sistemas biológicos complexos e a enzimologia computacional.

Entre os múltiplos papéis que desempenha – cientista, professora, consultora e, até, detentora de cargos de gestão – como encontra o equilíbrio entre a intensidade do trabalho académico e científico e a sua vida pessoal? Há uma filosofia ou hábito particular que considera essencial para manter a motivação e o bem-estar?
Encontrar um equilíbrio entre a intensidade do trabalho académico e científico e a vida pessoal foi sempre um desafio constante mas, para mim, essencial para manter a motivação e o bem-estar. A minha família, inclusivamente as minhas duas filhas, nunca se queixaram da minha vida super ocupada. Na realidade, elas próprias são agora jovens profissionais muitíssimo bem-sucedidas. A ciência é uma área altamente exigente, com prazos apertados, revisões constantes e necessidade de inovar continuamente. No entanto, ao longo do tempo, desenvolvi estratégias e hábitos que me ajudaram a gerir estas responsabilidades de forma mais sustentável. Penso que não há uma fórmula única para conciliar todas as responsabilidades, mas desenvolver hábitos saudáveis e respeitar os próprios limites são elementos essenciais para garantir um percurso sustentável e gratificante na ciência. Para tal, é crucial não só ter entusiasmo pela investigação como ter uma excelente equipa, conseguir uma gestão eficiente do tempo, definir prioridades, delegar tarefas; reservar momentos para atividades fora da ciência; cultivar uma rede de apoio dentro e fora da Ciência. Mas, o essencial para manter o equilíbrio e a motivação ao longo da carreira é ter familiares e amigos que oferecem perspetivas diferentes e apoio emocional, e colegas com quem é possível discutir desafios profissionais. E todos os que me rodeiam contribuíram decisivamente para a minha carreira e o reconhecimento científico que tive durante o meu percurso profissional. A eles, familiares e amigos a nível pessoal, e colegas a nível profissional e científico, eu devo o que consegui e a todos eles deixo aqui um muito obrigada.


Poderá consultar mais informações sobre a docente e investigadora aqui.


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