Atividade de investigação em Microbiologia e Segurança Alimentar no contexto de Uma só Saúde
De que forma nasce o interesse na microbiologia, higiene e segurança alimentar, e como foi percorrido, até hoje, o caminho académico e científico nestas áreas?
O meu percurso no ensino e investigação em Microbiologia começou em 1995/1996, durante o estágio de Licenciatura no Laboratório de Microbiologia da Faculdade de Medicina da U.Porto com o Professor Freitas. Em 1998, tornei-me Assistente Estagiária na Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação da Universidade do Porto (FCNAUP) e iniciei o Mestrado em Controlo de Qualidade na Faculdade de Farmácia da U.Porto, com foco em Água e Alimentos. A minha tese abordou a 'Transmissão de bactérias patogénicas na produção avícola' e a 'Resistência aos Antimicrobianos – AMR', tendo sido muito importantes na minha formação os Professores Nazaré Pestana, João Carlos Sousa e Luísa Peixe. Após concluir o Mestrado em 2001, fui Assistente na FCNAUP e prossegui para Doutoramento na FFUP, focado na 'Caracterização epidemiológica e molecular da resistência a agentes antimicrobianos em Salmonella não tifóide'. Desde a sua fundação em 2004, integrei o grupo de 'Microbiologia' da FFUP, na Unidade de I&D REQUIMTE, liderado pela Professora Luísa Peixe. Depois de obter o Doutoramento em 2007, tornei-me Professora Auxiliar na FCNAUP, lecionando e coordenando as Unidades Curriculares de Microbiologia. Como investigadora sénior do grupo BacT_Drugs-UCIBIO/i4HB, a investigação foca-se na 'Epidemiologia e evolução molecular de bactérias zoonóticas na interface animal-alimento-ambiente-humanos - abordagem Uma só Saúde', e no impacto dos 'Biocidas' na disseminação de bactérias patogénicas e AMR. Desde 2021, sou Professora Associada na FCNAUP, continuando a coordenar projetos de investigação na área da microbiologia e segurança alimentar, orientar estudantes, incluindo na iniciação à investigação e no projeto de Ciência Cidadã MicroMundo@UPorto. Atualmente, sou membro ativo de várias Sociedades Científicas como a SPM e o ESCMID, e coordeno um curso de formação PRR de Microbiologia na cadeia alimentar para profissionais do setor. Com um percurso de mais de 25 anos, adotei uma abordagem multidisciplinar, utilizando técnicas de culturómica, genómica e metagenómica para estudar a resistência antimicrobiana, com foco na segurança alimentar.
O conceito de ‘Uma Só Saúde’ está particularmente na ordem do dia, e os seus interesses de investigação estendem-se à sua interface com a microbiologia. Qual é a sua perspetiva deste conceito, e de que forma o mesmo se correlaciona com o trabalho de investigação que desenvolve, em matéria de segurança e qualidade alimentar?
O conceito de 'Uma Só Saúde' reconhece que a saúde humana está intimamente ligada à saúde dos animais, plantas e ecossistemas. No âmbito da segurança alimentar, o conceito de 'Uma Só Saúde' é particularmente relevante. A segurança alimentar tem um impacto direto na saúde humana, pois os alimentos, provenientes de plantas e animais, são essenciais para a nossa sobrevivência. Por isso, a segurança alimentar é um princípio fundamental da abordagem 'Uma Só Saúde'. Desafios globais como doenças zoonóticas, resistência aos antimicrobianos, poluição química e mudanças climáticas estão diretamente relacionados a práticas de produção e consumo alimentar ao longo de toda a cadeia 'do prado ao prato' (from farm-to-fork). A nossa investigação, focada em bactérias zoonóticas como a Salmonella e outras associadas ao ambiente de produção alimentar, bem como na resistência aos antimicrobianos (ex. antibióticos, metais, desinfetantes e outros micropoluentes) utilizados na cadeia alimentar, está intrinsecamente ligada à saúde humana, animal e ambiental. Ao compreendermos a origem e disseminação dessas bactérias (patogénicas e outras) através da cadeia alimentar, podemos implementar medidas preventivas eficazes para proteger a saúde pública. Além disso, o nosso trabalho de mais de 25 anos reflete a abordagem 'Uma Só Saúde' ao promover a colaboração transdisciplinar e multissetorial entre áreas como microbiologia, medicina humana e veterinária, saúde pública, agricultura e ambiente. Esta abordagem abrangente dos desafios relacionados com a segurança alimentar está alinhada com os objetivos ambiciosos da União Europeia (UE), expressos no Pacto Ecológico Europeu e na Estratégia Global de Saúde da UE.
A investigação que mais recentemente tem vindo a desenvolver centra-se particularmente na epidemiologia e na evolução molecular de bactérias de origem alimentar, em particular na sua emergência e persistência em vários nichos ecológicos. De que forma tem a investigação contribuído para dar resposta aos desafios de saúde pública, nesta área em particular?
Nos últimos 25 anos temos enfrentado diversos desafios à segurança alimentar, com impacto direto na saúde pública e saúde global. Por exemplo, temos contribuído para a identificação de reservatórios e veículos de transmissão de patogénicos e bactérias AMR na cadeia alimentar, como no ambiente de aquacultura e produção suína/avícola, nas saladas prontas a comer, na carne de aves importada e em rações para animais domésticos. Estes dados têm sido reconhecidos pela EFSA, influenciando intervenções globais e da UE. Além disso, identificamos eventos de potencial interação entre metais, biocidas e resistência aos antimicrobianos, destacando o papel dos metais na co-seleção de bactérias resistentes a antibióticos de última linha ou de clones epidémicos, com implicações na saúde. A nossa investigação também identificou clones epidémicos e elementos genéticos móveis (contendo genes de resistência a antibióticos e/ou metais) que promovem a disseminação da AMR em vários hospedeiros e fontes, ajudando na identificação de riscos e orientando estratégias de prevenção e controlo. Recentemente, temos colaborado no desenvolvimento e aplicação de métodos inovadores para tipagem rápida de bactérias de origem alimentar, o que tem permitido a identificação de clones de alto risco de forma mais acessível, complementando a sequenciação genómica total-WGS. Além disso, tenho coordenado projetos de investigação que envolvem intervenções práticas, como avaliar o efeito de formulações de cobre na alimentação animal, na seleção de bactérias resistentes a antimicrobianos, e, mais recentemente, analisar a correlação entre as práticas de higienização e a persistência de bactérias resistentes a biocidas, e antibióticos em superfícies de estabelecimentos de preparação e distribuição alimentar.
Conta com várias participações em matéria de projetos – há algum em específico que destaque como particularmente relevante ou gratificante?
Todos os projetos em que participei têm sido gratificantes e desafiadores. Destaco a minha participação em mais de 20 projetos de I&D, tanto a nível nacional (FCT, Fundação Calouste Gulbenkian, FEDER) como internacional (ERDF, ERA-IB, ESCMID), que me proporcionaram oportunidades de colaboração com diversas equipas de investigação dinâmicas. Localmente, destaco os seis projetos IJUP que coordenei, três dos quais cofinanciados pela indústria alimentar, e o projeto em curso da FCT (CLEANWATER) em colaboração com empresa do setor da produção e gestão de água para consumo humano, no qual sou Co-PI. Estes projetos envolvem estudantes de Licenciatura, de Mestrado e de Doutoramento, e outros cientistas, nomeadamente a minha colega Professora Carla Novais da Faculdade de Farmácia da Universidade do Porto (FFUP). Recentemente, iniciei a participação em dois Consórcios Internacionais representando a U.Porto, um com parceiros da EU e apoiado pela EFSA, e outro com a UVigo-Espanha e Universidades de São Tomé e Príncipe, na área da Ciência e Tecnologia Alimentar para promover o conhecimento sobre segurança alimentar em países desenvolvidos e em desenvolvimento, respetivamente. Gostaria de destacar os últimos projetos IJUP-Empresas, uma iniciativa colaborativa financiada por empresas privadas que proporciona uma plataforma para envolver estudantes, de 1º ciclo de estudos e de Mestrado, da U.Porto, na iniciação à investigação. Estes projetos recorreram a sequenciação genómica total-WGS, para estudar a ocorrência e persistência de Enterobacteriaceae e de Enterococcus em explorações avícolas, durante 4 anos, sob diferentes formulações de rações. Os resultados ofereceram novas perspetivas para o setor avícola e para a saúde pública, tendo já sido publicados vários artigos.
Alguns dos projetos já abraçados contaram com o envolvimento de stakeholders da indústria alimentar. Poderia partilhar com a comunidade científica da U.Porto quais foram, na sua opinião, as mais-valias e de que forma poderão os/as investigadores/as potenciar e tirar o máximo partido deste tipo de colaboração com a indústria?
Os projetos que envolveram stakeholders da indústria alimentar têm sido incrivelmente enriquecedores. Esta colaboração proporcionou-nos uma compreensão mais profunda dos desafios enfrentados pela indústria e permitiu-nos aplicar os nossos conhecimentos científicos de uma forma mais prática e relevante. As principais mais-valias desta colaboração incluem o acesso a dados e recursos da indústria que, de outra forma, seriam difíceis de obter, bem como uma compreensão mais abrangente das necessidades e preocupações do setor. Além disso, esta colaboração proporciona uma oportunidade única para validar e implementar soluções científicas no contexto real da indústria alimentar. Para potenciar e tirar o máximo partido desta colaboração, os investigadores da U.Porto devem adotar uma abordagem proativa de envolvimento com a indústria desde o início do processo de investigação. Isso inclui identificar e envolver stakeholders relevantes desde a conceção do projeto, garantir uma comunicação eficaz ao longo do processo e alinhar os objetivos da investigação com as necessidades específicas da indústria. Além disso, os investigadores podem aproveitar esta colaboração para identificar novas áreas de investigação e oportunidades de financiamento, bem como para estabelecer parcerias de longo prazo que beneficiem ambas as partes. Em resumo, a colaboração com a indústria alimentar oferece uma oportunidade única para os investigadores da U.Porto aplicarem os seus conhecimentos científicos de forma prática e relevante, ao mesmo tempo que contribuem para a inovação e o desenvolvimento sustentável do setor.
A colaboração e a inter e multidisciplinariedade são essenciais na abordagem científica à complexidade das ciências alimentares. De que forma acontece a colaboração com outras áreas de investigação, e quais destacaria como as mais fundamentais em matéria de interseção de conhecimento científico?
A colaboração e a inter e multidisciplinaridade desempenham um papel crucial na abordagem científica às ciências alimentares. A complexidade dos desafios enfrentados no campo da segurança alimentar e da saúde pública requer uma abordagem holística que incorpore conhecimentos de diversas áreas de investigação. Na minha experiência, tenho promovido ativamente a colaboração com várias áreas de investigação diretamente ligadas à microbiologia, tais como medicina humana e veterinária, saúde pública, agricultura e ambiente. Essa colaboração transdisciplinar e multissetorial é fundamental para compreender e mitigar os riscos associados à segurança alimentar e para desenvolver estratégias eficazes de prevenção, e controlo de doenças relacionadas com os alimentos e a água. Nos últimos anos, tem também sido muito importante a colaboração com investigadores das áreas da bioinformática, da genómica e da metagenómica, ferramentas essenciais para se compreender como os perigos microbianos se disseminam ao longo da cadeia alimentar e quais os fatores determinantes para a evolução e adaptação dos microrganismos em diversos ecossistemas. A integração de tecnologias avançadas, como a genómica, permitirá uma monitorização mais eficaz das ameaças microbianas em tempo real, facilitando uma resposta mais rápida e proativa por parte das autoridades e operadores económicos, em vez de uma abordagem reativa após a ocorrência de incidentes.
Qual a sua visão de horizonte para o futuro da Ciência Alimentar, particularmente à luz das novas tecnologias e desafios de segurança alimentar emergentes?
Vejo um futuro promissor para a Ciência Alimentar, impulsionado pelo avanço contínuo das novas tecnologias e pela necessidade de enfrentar os desafios emergentes de segurança alimentar. A integração de ferramentas como a genómica, a metagenómica e outras ómicas e a bioinformática, oferece oportunidades sem precedentes para compreendermos melhor os microrganismos na cadeia alimentar e desenvolvermos estratégias mais eficazes de prevenção, e controlo de doenças microbianas transmitidas por alimentos e/ou água. Por exemplo, a utilização de técnicas de sequenciação de última geração permite a identificação e caracterização ao nível da infra espécie mais precisa de patogénicos alimentares, enquanto a análise metagenómica pode revelar a diversidade microbiana em diferentes ambientes de produção de alimentos ou água para consumo humano. Além disso, a aplicação de técnicas de inteligência artificial e aprendizagem automática pode revolucionar a segurança alimentar, permitindo a deteção precoce de contaminações, a identificação de bioindicadores mais eficazes, a otimização de processos de produção e a previsão de potenciais pontos de falha na cadeia alimentar. No entanto, também enfrentamos novos desafios, como as mudanças climáticas, que têm impacto sobre a segurança e a disponibilidade dos alimentos. Portanto, é crucial uma abordagem proativa e colaborativa, envolvendo diferentes setores e disciplinas, para garantir que possamos enfrentar esses desafios de forma eficaz, e assegurar um futuro sustentável e seguro para o abastecimento alimentar e de água global.
Copyright 2024 © Serviço de Investigação e Projetos da Universidade do Porto.
Todos os direitos reservados.