Investigadores U.Porto

U.Porto Reitoria SIP
Rui Carvalho Homem
Faculdade de Letras da Universidade do Porto (FLUP) / Centro de Estudos Ingleses, de Tradução e Anglo-Portugueses (CETAPS)

Investigação em Estudos Literários e Tradução

Regressando ao ponto de partida, como surgiu o interesse pelos estudos anglo-americanos e pela tradução, e como trilhou este já longo percurso académico e científico?
O interesse pelas culturas e literaturas de expressão inglesa emerge da minha formação inicial. Licenciei-me (em 1981) em estudos ingleses e alemães, mas foi o lado inglês dessa formação que prevaleceu – e que se consolidou com o Mestrado em Estudos Anglo-Americanos, que fiz em Lisboa (o mestrado era, por esses anos, um grau novo, e – por razões históricas – o programa que me interessava não estava ainda em oferta cá no Porto). Mas foi também por esses inícios da década de oitenta que fui contratado pela FLUP justamente para ensinar cadeiras na área hoje representada pelo Departamento de Estudos Anglo-Americanos. O meu doutoramento viria a ser sobre um grande poeta contemporâneo da língua inglesa – o irlandês Seamus Heaney. E seria em ligação com esse doutoramento que a tradução literária entraria na minha prática, uma vez que, pelos meados dos anos noventa, comecei a traduzir a poesia de Heaney. Pelos finais da década, o meu interesse ativo pela tradução saía reforçado com o lançamento (no quadro da unidade de investigação que hoje se chama CETAPS) do projeto para uma nova tradução integral da obra dramática de Shakespeare – um projeto para o qual traduzi, até hoje, quatro peças.

Poderia partilhar com a comunidade académica da U.Porto uma experiência particularmente memorável do seu percurso científico?
Menos de um ano após o meu doutoramento na FLUP com um estudo da obra de Seamus Heaney, este poeta ganhou o prémio Nobel da Literatura (em 1995), e essa circunstância (que poderá parecer mundana…) teve um conjunto de implicações para o que faço e para o reconhecimento público que o meu trabalho obteve. Ou seja: a “experiência memorável” que me pede para salientar é aqui uma sequência de acontecimentos: inclui a minha decisão de escrever uma tese sobre um autor que (por uma coincidência feliz) logo a seguir se tornou uma celebridade literária à escala global; mas também uma colaboração muito gratificante que tive com Heaney ao longo de muitos anos – desde contactos iniciais ainda na década de 1980 ao momento em que traduzi boa parte da sua obra, e pude encorajar e acompanhar as visitas que ele fez a Portugal.

Integra o conselho académico do Centro De Estudos Ingleses, de Tradução e Anglo-Portugueses (CETAPS) e coordena a Linha de Investigação “Relational Forms: Medial and Textual Transits in Ireland and Britain”. Que principais pistas de investigação tem vindo a perseguir?
No quadro do “Relational Forms” tenho estudado a continuada atração da poesia contemporânea de língua inglesa pelas artes visuais – pintura em especial, mas também fotografia. Muitos poetas do nosso tempo interpelam outras práticas artísticas (fora do meio verbal) como mediações na relação que a sua escrita estabelece com a subjetividade, o real e a experiência. É fascinante notar como estas relações inter-artísticas, longe de serem uma componente menor (ou “de nicho”) dentro da criação contemporânea, têm ocupado lugares centrais na produção imaginativa do nosso tempo. Ou seja: crescentemente, as artes da pós-modernidade são inter-artes; e eu estudo estes processos de criação relacional a partir da produção poética do nosso tempo.
Mas tenho outra grande área de interesse intelectual e investigativo: a obra de Shakespeare, e o lugar sempre evolutivo que ocupa no quadro de relações que a cultura do nosso tempo estabelece com a grande literatura e arte do passado.

Integra também, em parceria, o MOVES (Migração e Modernidade: Desafios Históricos e Culturais), um Doutoramento Conjunto Europeu (EJD) financiado pela União Europeia. Neste âmbito, cosupervisiona o projeto de investigação "Clash of Cultures’? A Case Study and a Critique". De um ponto de vista macro, em que consiste o MOVES e ainda, especificamente no que a este projeto diz respeito, que conclusões foram já alcançadas?
O MOVES teve uma dupla caraterística – um programa doutoral que foi também um macro-projeto de investigação, construído sobre 15 projetos de tese individuais. Teve a sua conclusão muito recentemente e foi um projeto entusiasmante, pelo modo como congregou doutorandos com uma diversidade de proveniências tão grande – dos Estados Unidos ao Bangladesh, do Equador à Bielorrússia. O tema geral do MOVES, “Migração e Modernidade”, teve o seu ponto de apoio conceptual na seguinte perceção (devidamente teorizada): a mobilidade humana favorece a sustentabilidade das culturas – em vez de as ameaçar (como tantas vezes propalam os que temem e se opõem aos processos migratórios). Esta perceção encontrou ampla confirmação nas teses produzidas. Quanto ao projeto que especificamente co-orientei, envolvia o teatro – a valia experiencial e cultural da experiência cénica para comunidades de emigrantes. Em diferentes contextos, a participação em projetos teatrais tem permitido que emigrantes, em especial quando passam por experiências difíceis, representem em cena interações humanas que os ajudam a compreender alguns dos conflitos (quer íntimos, quer externamente vividos) que marcaram a sua experiência. Trata-se de uma temática (teatro e mobilidade humana) que tem motivado investigadores de diferentes âmbitos das humanidades e ciências sociais – não apenas das artes cénicas e da sociologia, mas também da história cultural, da literatura, da antropologia....

Da sua perspetiva, quais são algumas das tendências ou desafios atuais nas áreas dos estudos literários e tradução?
Uma noção que teve um efeito capacitador quer dos estudos literários quer da tradução em anos recentes é a de que toda a escrita é reescrita. Para a literatura, isso implica aceitar o seguinte: com tanta história literária a anteceder-nos, sempre que alguém escreve está inevitavelmente a revisitar textos que lhe são prévios – independentemente da perceção de originalidade que o novo texto possa obter junto dos leitores. Mas essa é uma inevitabilidade que, para a tradução, tem um efeito potente de legitimação: sendo a tradução uma atividade de escrita tradicionalmente vista (e por vezes desdenhada) como secundária e derivativa, é de algum modo “vingada” pelo argumento de que toda a escrita (mesmo a que é percebida como em primeira mão) é afinal reescrita.
Este argumento maximalista quanto ao que a tradução pode reclamar para si, no campo do literário, tem encontrado uma correspondência igualmente interessante no quadro das relações culturais. É hoje quase um lugar-comum dizer-se que qualquer trânsito entre línguas é determinado por diferenças culturais. Essas diferenças estão presentes na consciência dos tradutores e na gama de recursos de que se servem para verter um texto, que tem origem numa dada cultura (com todas as suas particularidades), de modo a que esse texto produza um dado efeito nos seus leitores (que serão participantes na cultura de chegada, também com as suas particularidades). As marcas da cultura de partida, na medida em que persistam para lá desse trânsito entre línguas, também contribuirão para colocar em evidência diferenças que hoje tendemos a considerar enriquecedoras da consciência que temos de nós e do mundo – com a diversidade que este contém. O facto de a tradução ser uma atividade que fortemente propicia essa atenção à diversidade levou a que, em anos recentes, tenha sido celebrada como modelo e matriz de todos os nexos interculturais. E este é outro desenvolvimento que vale a pena salientar no modo como a tradução (em particular na sua relação com a literatura) obteve no nosso tempo uma atenção que há cinquenta anos pareceria improvável.

Com os avanços da inteligência artificial, incluindo o processamento da linguagem natural e a tradução automática, como entende que a IA virá ainda a moldar o campo da tradução nos próximos anos?
É cedo para dizer, mas afigura-se-me que a tradução não será diferente de outros âmbitos em que a escrita e os processos criativos, em especial em práticas que em regra vemos designadas como “produção de conteúdos”, estão a sentir o impacto crescente de programas que só muito recentemente (há cerca de um ano e meio?) se tornaram acessíveis a todos. É fundamental que se consiga regulamentar o emprego da IA em diferentes áreas de atividade (não apenas literária, artística, intelectual), para evitar o que seria um paradoxo: que tecnologias possibilitadas pela inteligência humana, e que têm o potencial de melhorar exponencialmente as condições materiais das sociedades do nosso tempo, se tornem afinal dispositivos de restrição e empobrecimento do humano – começando pela produção imaginativa.
No que se prende especificamente com a atividade da tradução, foi há dias publicada uma “Carta Aberta” de tradutores, escritores e académicos visando alertar os poderes públicos para o impacto da IA – e para a necessidade de tomar algumas medidas.

Que conselhos daria aos jovens investigadores que iniciam agora o seu percurso na investigação em estudos literários e tradução?
Que abracem projetos de que gostem mesmo, projetos que respondam a inclinações pessoais e sejam genuinamente motivadores. Estas áreas das humanidades gozam, na nossa história social e académica mais recente, de uma latitude considerável quanto a encaminhamentos profissionais. Explicando-me melhor: para além daquelas vias mais tradicionais - o ensino (em diferentes níveis), a tradução (literária ou técnica) – muitos dos nossos diplomados, também em patamares de pós-graduação, vêm encontrando formas de realização pessoal e profissional de crescente diversidade. E isso deverá ser entendido como libertador, num quadro de maior disponibilidade para dar consequência gratificante – e porventura inovadora – às competências linguísticas, às faculdades críticas, ao alento intelectual que é nossa ambição inscrever na sua experiência formativa.


Poderá consultar mais informações sobre o investigador aqui.


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