Investigação em Direito Civil
Poderíamos, de forma breve, percorrer o seu percurso científico na U.Porto?
Fui dando os primeiros passos do meu percurso científico, na FDUP, como assistente-estagiária. Desde cedo percebi a dedicação e esforço de que se necessitava para o trilhar e compreendendo-o como um elemento essencial da vida académica como docente universitária, não só pelo contributo que assim poderia dar para a ciência do direito, mas também como seiva que devia alimentar o ensino em sala de aula. Fui desenvolvendo as minhas primeiras atividades de investigação, que culminaram numa primeira publicação na obra que celebrou os cinco anos da FDUP, e depois nos trabalhos da parte escolar do curso do mestrado. A elaboração da tese de mestrado sobre uma temática relacionada com a responsabilidade civil do profissional médico foi, no entanto, o primeiro trabalho de fôlego e que, não obstante o desafio que representou, acentuou em mim profundamente o gosto pela investigação. Continuei, depois, a minha atividade de investigação em temas relacionados com o Direito das Obrigações e o Direito da Família, unidades curriculares que fui lecionando. O tema que escolhi para a minha tese de douramento situou-se na interceção dessas duas áreas. Debrucei-me, pois, sobre o exercício da autonomia privada na conformação dos efeitos patrimoniais do casamento. O estudo frutificou em publicações e convites para participação em conferências em Portugal e no estrangeiro. De então para cá, nestes últimos oito anos, prossegui, como docente da FDUP e como investigadora do CIJ, a minha investigação nas áreas da responsabilidade civil, nomeadamente considerando os desafios que ao seu funcionamento representa o uso de inteligência artificial, e também as dificuldades que a sua aplicação apresenta no âmbito familiar. Hoje integro vários projetos nacionais e internacionais, tendo o privilégio de trabalhar com colegas de várias Instituições, como sejam, entre outras, a Universidade de Cambridge, a de Munique e a Complutense de Madrid.
Poderia partilhar connosco como surge o interesse e a vontade em prosseguir Direito, nos idos da juventude?
A escolha do curso do direito não foi imediata. Na verdade, como estudante do secundário, gostava em geral de todas as matérias (penso que sempre gostei de aprender, de ser surpreendida por algo que anteriormente não conhecia, o que explicará o gosto pela minha atividade presente), e muito especialmente de matérias aparentemente distantes como a matemática, a química, o português e as línguas estrangeiras. Não sabia que curso prosseguir, pelo que fiz testes psicotécnicos com um conjunto de profissionais, para que o seu parecer me pudesse ajudar na escolha. O resultado apontava para economia ou gestão, embora também aparecesse, nos lugares cimeiros, a área do direito. Acabei por escolher essa área por inspiração familiar. Sendo o meu pai advogado, percebi cedo a importância do direito e o impacto que ele tem na vida das pessoas. Pareceu-me, pois, uma boa escolha, depois de alguma ponderação. Lamentava apenas o facto de me distanciar do raciocínio de índole mais matemática, mas nem isso se concretizou totalmente, dado que, na FDUP, o curso apresentava várias unidades curriculares da área económica lecionadas, à época, por docentes da FEP. Acresce que venho lecionando e investigando na área do direito das sucessões que, de alguma forma, é a matemática do direito. Hoje, estou certa de que foi uma escolha acertada, tendo muito gosto em trabalhar nesta área.
Muita da investigação que produz incide na área do Direito em saúde. Como surgiu este interesse em particular?
O interesse pela área do direito em saúde surgiu, primacialmente, pelo meu interesse pela matéria da responsabilidade civil, que é uma área central da minha investigação. A responsabilidade civil apresenta-se como uma reação jurídica à produção de danos, fazendo nascer uma obrigação de indemnizar, quando estão verificados os pressupostos legalmente previstos para o efeito. Ora, a aplicação do regime da responsabilidade civil na área da prestação de cuidados da saúde coloca várias dificuldades. Por um lado, no que respeita à definição do comportamento que é exigível em cada momento, e nas concretas condições em que é travada a batalha contra a doença, a aplicação do regime dificulta a delimitação das situações em que pode ser afirmada a responsabilidade do prestador de cuidados que agiu, ou deixou de agir, no caso. Por outro lado, atendendo à presença de fatores que não são controláveis pela intervenção humana (nomeadamente dos profissionais da área) e também à consequente incerteza do resultado que uma intervenção, tecnicamente acertada, pode ter na evolução de uma determinada patologia, torna-se especialmente difícil a afirmação do nexo de causalidade nos termos juridicamente relevantes. As dificuldades referidas nas respostas, à luz do direito vigente, e as mudanças que devem ser introduzidas perante as desadequações que se vão detetando na aplicação desse regime, foram pontos que suscitaram o meu interesse. Acresce que a intervenção do direito, à luz dos valores que o mesmo deve servir (desse logo, a justiça) deve permitir uma proteção suficiente dos doentes lesados, sem fazer impender exigências excessivas sobre os profissionais e sem criar um efeito sistémico de medicina defensiva, que a todos prejudica. A área da saúde é, pois, um laboratório especialmente interessante para testar e afinar o regime da responsabilidade civil.
É investigadora principal do Projeto gLAWbalHEALTH - Direito e Saúde Global. Poder-nos-ia dar a conhecer as metas e expectativas deste projeto, quer para a comunidade científica quer para a sociedade em geral?
No projeto em referência, que coordeno com a minha colega Anabela da Costa Leão, debruçamo-nos sobre os principais desafios que se colocam, no início da terceira década do século XXI, à tutela jurídica da saúde, como conceito poliédrico e multidimensional que aglutina uma perspetivação integral e relacional da pessoa. Identificámos alguns desses desafios que erigimos como pilares do projeto em curso. São eles, em primeiro lugar, o dos fenómenos da globalização e universalização da saúde (pense-se no caso paradigmático da pandemia que vivemos há pouco, e que disso é um exemplo) a par da tendência para a mercantilização da prestação de cuidados de saúde que pode atraiçoar as finalidades primeiras da intervenção nesta área (um dos assuntos que tem ganho visibilidade perante algumas dificuldades que se detetam no sistema nacional de saúde). Por outro lado, assume especial relevo a preocupação de garantir e promover a saúde num mundo em envelhecimento, e num contexto de enormes conquistas biotecnológicas e de revolução digital em curso, com a utilização crescente da inteligência artificial e de robots na prestação de cuidados da saúde. Analisando as respostas que encontramos da parte do direito no presente, em diálogo com outras áreas do saber, procuramos identificar debilidades e apresentar respostas para as mesmas. Esta busca permitirá inspirar mudanças legislativas que se revelem necessárias e, do mesmo passo, munir profissionais e utentes de conhecimentos e competências que permitam uma melhor prestação de cuidados de saúde e uma maior promoção do direito à saúde.
A investigação em Direito Civil versa, por diversas vezes, questões éticas complexas, difíceis de destrinçar. Como enfrenta esse exercício por vezes difícil?
Como jurista, eu trabalho com regras jurídicas. Sendo o direito, como a ética, um conjunto normativo, é um conjunto de normas que recebe a sanção do Estado que lhes garante, através do aparelho estadual, a sua aplicação. Trabalho, pois, com as regras que, através dos órgãos legislativos competentes, vão sendo adotadas para solucionar questões complexas que também interpelam a ética. Quero com isto sublinhar que, sem prejuízo da enorme importância que a reflexão e estudo no plano da ética apresenta, não é nesse plano que eu, como profissional, me movo. Ademais, como civilista, trabalho com um arcaboiço teórico que vem sendo apurado ao longo de séculos e que nos oferece instrumentos robustos para que a aplicação do direito possa servir, mais adequadamente, a realização da justiça. Na análise das questões, para lhe podermos aplicar o direito constituído e para podermos propor alterações a ser introduzidas no ordenamento jurídico, devemos conhecer e compreender os interesses de todos os intervenientes, procurando, de acordo com a técnica jurídica, a solução mais equilibrada. É, sem dúvida, uma tarefa difícil e melindrosa, mas o respeito pela técnica jurídica, sempre sem perder o sentido de concretização da justiça que deve inspirar o resultado a aplicar, ajuda-nos a trilhar o caminho.
No seu Curriculum conta com mais de 2 centenas de citações na jurisprudência dos Tribunais Superiores, nomeadamente Supremo Tribunal de Justiça, Tribunal Constitucional e Tribunais da Relação. Com certeza concordará que a investigação cumpre uma função basilar no auxílio à jurisprudência. De que forma poderemos construir mais pontes para Tribunais cada vez mais justos?
Esse é um dado de grande importância para mim. Já havia referido que a investigação me é muito importante como alimento para as aulas que preparo e para o diálogo, em sala de aula, no ensino dos estudantes. A verdade é que é também muito importante perceber que o resultado da investigação realizada tem eco junto dos nossos Tribunais, podendo, dessa forma, contribuir para a aplicação da justiça e, em última análise, para fazer alguma diferença na vida das pessoas. Note-se que esta espécie de diálogo com os Tribunais é de duplo sentido, isto é, também para a minha investigação e ensino é muito importante acompanhar a nossa Jurisprudência. A expressão que utilizou (“construção de pontes”) é, portanto, especialmente feliz. Penso que as pontes estão construídas. É preciso continuar a robustecê-las. A doutrina e a jurisprudência acompanham-se mutuamente. No diálogo entre académicos e os profissionais que aplicam a justiça (dos juízes aos advogados) há um enriquecimento recíproco e, nessa medida, promovem-se resultados que, potencialmente, servirão mais adequadamente a realização da justiça. O Centro de Estudos Judiciários organiza muitos eventos com presença de académicos, tendo tido a oportunidade de participar em vários deles. Por outro lado, as universidades também procuram ouvir os profissionais nos encontros que organizam. Nos eventos que organizo promovo a presença de magistrados e de outros profissionais do foro.
Na sua opinião, e de uma forma geral, não adstrita ao Direito, quais são atualmente os derradeiros desafios para a integração e progresso da investigação nas instituições de ensino?
Sem prejuízo de haver necessidade de se repensar alguns aspetos do modelo de financiamento, dirigindo recursos para a investigação, penso que o principal desafio, no momento presente, tem que ver com a necessidade de potenciar um recurso essencial à concretização de qualquer tarefa, e, portanto, também à investigação: falo do tempo. É preciso tempo para levar a cabo uma investigação séria e profunda. A verdade é que um professor universitário leva, hoje, uma vida preenchida por um conjunto de tarefas que o dispersam e afastam da concentração necessária para investigar. São, por um lado, múltiplas as tarefas burocráticas que nos ocupam. Por outro lado, são inúmeras as comissões em que somos chamados a participar. As reuniões multiplicam-se e o tempo escasseia. A necessidade de participação em órgãos de gestão também consome tempo. A aceleração da vida em geral, e a multiplicação de solicitações para participar em eventos e publicações, também dificultam que se tenha o tempo necessário para as tarefas de investigação. Para além deste fator com que um docente universitário se deparará no dia-a-dia, penso que outro desafio respeita à inadequação que, por vezes, os critérios de avaliação nos processos de concessão de financiamento apresentam em relação a determinadas áreas do saber.
Poderá consultar mais informações sobre a investigadora aqui.