Investigadores U.Porto

U.Porto Reitoria SIP
Amélia Polónia
Faculdade de Letras da Universidade do Porto (FLUP) / Centro de Investigação Transdisciplinar «Cultura, Espaço e Memória» (CITCEM)

Distinguida com o título de Doutora Honoris Causa pela Université Bretagne Sud


Fale-nos um pouco sobre o seu percurso científico na U.Porto, que conta já com mais de 35 anos.
Estou afiliada à U.Porto, como estudante, há cerca de 40 anos e, como docente e investigadora, há mais de 35 anos. Este percurso, atípico em carreiras académicas contemporâneas, em nada impediu a prossecução de percursos de mobilidade e de internacionalização. Após a investigação desenvolvida para doutoramento, centrada num porto marítimo – o de Vila do Conde, no século XVI –, procurei responder a novos desafios no campo dos estudos de género e dos estudos ambientais, sempre ligados a processos de colonização europeus consolidados durante o período que considero ser “A Primeira Idade Global" (1500-1800). Tendo partido de trabalhos centrados numa escala local, tenho, na última década, desenvolvido abordagens a uma escala mais ampla, procurando intercetar o local e o global. Venho a desenvolver, mais recentemente, uma nova agenda de investigação em torno dos impactos ambientais dos processos de construção de impérios coloniais no período moderno, tendo sido levada a refletir e a publicar sobre o assunto, e passando a questionar o quadro teórico e metodológico que assistia às tradicionais perspetivas do “imperialismo ecológico”. As questões fundamentais a que me tenho vindo a dedicar prendem-se com o estudo do papel dos indivíduos e das comunidades locais – na Europa, na África, na América e na Ásia –, na formação de um mundo global, de que todos somos devedores. Preocupações atuais, como as de alteridade, confrontos culturais, mobilidade, conflito, tolerância e intolerância – diretamente relacionadas com diálogos interculturais amplamente documentados na Época Moderna e em contextos do colonialismo europeu –, constituem um foco privilegiado da minha investigação.

Para si, enquanto investigadora, o que simboliza ter sido distinguida com o título de Doutora Honoris Causa pela Université Bretagne Sud em 2020?
Trata-se naturalmente de um reconhecimento da investigação, colaborativa, que tenho vindo a desenvolver, a nível internacional, na área de História Marítima. Colaboro com a Université Bretagne Sud em projetos e redes científicas desde 2003, o que explica que essa distinção me tenha sido concedida por essa universidade. Mas é também o reconhecimento da U.Porto / FLUP, como escola de formação de docentes / investigadores que atuam e desenvolvem atividade com impacto internacional, e em áreas acutilantes para a atualidade.

Enquanto coordenadora científica cessante da unidade de I&D CITCEM - Centro de Investigação Transdisciplinar "Cultura, Espaço e Memória", pode falar-nos um pouco do trabalho que têm desenvolvido e ações planeadas para 2022?
O que se tem procurado, desde a fundação do CITCEM, em 2007, é a promoção de uma atuação que exponencie o carater multidisciplinar da equipa, que se pretende fazer verter em práticas e em produções científicas inter e transdisciplinares.
Os 8 Grupos e as 5 Linhas de Investigação em atividade no CITCEM são convergentes com o tema de “Migrações e Permeabilidades”, definido como prioridade de investigação para o período de 2020-2023. Este tema abarca questões de natureza sociocultural, política, económica, ambiental e tecnológica, enfatizando noções de transnacionalidade, sincretismo e transição. O CITCEM procura articular a investigação pura com o estímulo ao emprego científico e a práticas conducentes a uma ciência cidadã. Quanto às ações planeadas para 2022, ainda delineadas no período da minha coordenação científica, posso salientar o X Encontro CITCEM, dedicado ao tema Culturas d’Água, agendado para 23 a 25 de novembro, e a realização, entre 28 de junho e 2 de julho, de um Congresso Internacional, o 8th IMHA International Conference, subordinado ao tema: Old and New Uses of the Oceans, com a presença de mais 200 especialistas em estudos marítimos, provindos de todos os continentes. A implementação de uma plataforma interativa e colaborativa com a comunidade social, em torno de patrimónios costeiros, baseada em princípios de cocriação do conhecimento e de uma ciência cidadã, envolvendo numerosos parceiros externos, entre municípios e associações independentes, contribuirá para proporcionar uma efetiva interação entre investigação académica e comunidade social, e a aposta em temas de sustentabilidade – territorial, ambiental e climática.

No seu currículo conta com a participação em projetos, e em muitos deles como investigadora principal. Pode falar-nos um pouco sobre alguns dos seus projetos financiados? Quais as temáticas e os principais objetivos?
O trabalho em equipa tem sido a prioridade dos meus investimentos científicos nas últimas duas décadas. Posso mencionar alguns projetos, que foram marcantes para mim, como coordenadora, e que espero tenham contribuído para algum avanço do conhecimento. O primeiro é, sem dúvida, o projeto Hisportos: contributos para o estudo dos portos do noroeste português, séculos XV-XVIII. Este projeto foi sustentado por uma equipa multidisciplinar. A mesma orientação foi prosseguida pela equipa portuguesa do DynCoopNet - Dynamic Complexity of Cooperation-Based Self-Organizing Trade Networks in the First Global Age, projeto financiado no âmbito do programa TECT / EUROCORES, da European Science Foundation. O caráter inovador deste último residiu no uso de metodologias de análise de redes, de geovisualização e de modelização matemática, e resultou da colaboração altamente produtiva entre historiadores, geógrafos, especialistas em GIS, matemáticos e especialistas em ciência da computação. A Rede CoopMar - Cooperação Transoceânica: Políticas Públicas e Comunidade Sociocultural Ibero-americana, um projeto financiado pelo Programa CYTED, é dirigida a uma maior intervenção social. Inclui representantes de seis países (Brasil, Chile, Cuba, Panamá, Portugal e Espanha), e pretende promover a transferência de conhecimentos entre a academia e as comunidades Ibero-americanas, a par de contribuir para a definição de políticas públicas de preservação e disseminação de patrimónios em cidades porto ibero-americanas. A participação em COST Actions segue a mesma prioridade, desta feita centrada nos impactos ecológicos sobre os Oceanos e sobre as comunidades marítimas, a par dos estudos de género.

Sabemos que uma das suas maiores áreas de interesse na investigação está, indiscutivelmente, relacionada com estudos transdisciplinares, em particular, a História da Expansão Ultramarina Portuguesa e a História da Colonização Europeia. O que necessita a sociedade para compreender estes fenómenos / temas, que não são dominantes na atualidade?
A sociedade precisa de se libertar de leituras nacionalistas, que serviram no passado, para legitimar processos políticos em vigor. Isso ocorreu, em particular, através do aparelho de propaganda do Estado Novo, em Portugal, que produziu leituras que, embora distorcidas e manipuladas, se revelam ainda hoje atrativas para muitos. É preciso revê-las. Depois, precisa de se libertar de perspetivas eurocêntricas, que apenas são capazes de apresentar visões e interpretações parcelares, excluindo leituras que integrem os territórios, espaços políticos, saberes e perspetivas “outras”, dimanadas das comunidades de contacto, nos múltiplos e tão diversos espaços de colonização. Outro problema é a falta de comunicação de ciência, e de disseminação do saber produzido em meios académicos, para a sociedade. Muito se tem feito nas últimas décadas para alimentar esses fluxos, mas os manuais escolares, os media, os canais de divulgação digital, a elaboração de produtos com conteúdos didáticos e de linguagem acessível, clara e objetiva, têm ainda muito espaço para atuar nesse sentido. Por último, a sociedade continua a desvalorizar a análise histórica como componente essencial para a compreensão de fenómenos do presente. Questões de identidade, supremacia, imposição e domínio, encontram-se entre esses tópicos de imprescindível análise. O mesmo se aplica quando se fala de sustentabilidades – económicas, ambientais, climáticas –, todas dimensões praticamente esquecidas na análise do expansionismo europeu e nos seus impactos no presente. Daí também a importância da interdisciplinaridade e a necessidade de se sensibilizar os atores sociais do presente para a estrita necessidade de se compreenderem os fenómenos do passado, mais ou menos longínquo, a partir de uma leitura interdisciplinar.

No desejável retorno à normalidade, e em tempos em que migrações e mobilidades estão no termo do dia, quais considera serem os desafios mais prementes? O projeto MOVES - Migration and Modernity: Historical and Cultural Challenges, no qual é investigadora, oferece oportunidade para se repensarem os “estudos de mobilidade” e debates sobre a “crise migratória”?
Essa é uma das oportunidades, sim: científica, e de fundamento académico. O MOVES, projeto financiado pelas Marie-Curie Actions, tem-se revelado uma oportunidade única para colocar em debate e complementaridade uma comunidade multinacional, multicultural e multidisciplinar de estudantes de doutoramento. A maior parte dos projetos desenvolvidos focam-se em fenómenos migratórios do presente ou de um passado recente, e muitos em dinâmicas e projeções dos fluxos migratórios que preocupavam e desafiavam a Europa à data da submissão do projeto (2019), vulgarmente designada como “a crise migratória”. O programa estabelece, ainda, uma colaboração única entre investigadores universitários das Ciências Humanas e Sociais e parceiros de todos os sectores (ONGs, instituições que trabalham com migrantes e indústrias culturais e criativas), em cinco países da UE. Este diálogo, efetuado também sob a forma de estágios e trabalho de campo, aponta para o futuro da investigação pós-graduada: a abertura da academia a entidades da sociedade civil e a necessidade de dar voz aos próprios agentes, neste caso, migrantes, espontâneos ou forçados, de fundamental importância para uma cabal compreensão desse complexo fenómeno.

No contexto da sua investigação, esteve envolvida numa Ação COST - Ocean Governance for Sustainability - Challenges, Options and the Role of Science. Que balanço retira desta experiência, e que dicas gostaria de partilhar com a restante comunidade científica da U.Porto, de forma a incentivá-los a integrar, também, uma ação COST?
A referida COST Action - a par de uma outra, prévia, a OPP (Ocean Past Platform) - debruçava-se sobre uma temática crucial nos nossos tempos, inevitavelmente numa perspetiva interdisciplinar: a governança dos oceanos e das linhas de costa, visando contribuir para a sua sustentabilidade. Modelos de governança, o papel dos numerosos atores com atuação-chave neste domínio, os diálogos interdisciplinares, envolvendo políticas públicas, ciência, tecnologia, comunidades marítimas e piscatórias de vários países europeus, estiveram em diálogo, através das numerosas ações, encontros e publicações da Rede. As Redes COST são, sem dúvida, uma oportunidade a não perder para o estabelecimento de contactos, em rede, com vastíssimas comunidades - científicas e não científicas. A sua “governança” é, porém, um desafio grande para os seus coordenadores. Estando financiada a mobilidade dos investigadores nelas integrados, e algumas realizações que consubstanciam a sua ação, muito depende do envolvimento e do comprometimento de cada investigador individual e da capacidade de se manter em contacto, para que os seus impactos transcendam o tempo de vigência de cada uma destas Redes, e sejam capazes de gerar dinâmicas multiplicativas para o futuro.

Dado o contexto atual em que vivemos e o impacto da pandemia COVID-19, quais os desafios relacionados com a ciência e inovação que, na sua opinião, a investigação enfrentará nos próximos anos?
Esta pandemia trouxe, aos olhos do presente, vulnerabilidades e riscos que têm sido vividos ao longo da História, sem que sobre eles se tenha refletido o suficiente. A peste negra, os surtos de varíola, o impacto da tuberculose, da gripe espanhola, os impactos da SIDA, são alguns exemplos. Mas, também, o impacto viral e bacteriano, conhecido nas Américas, a partir do século XV, com a introdução, pelos Europeus, de agentes patogénicos (gripe, varíola, sarampo) que dizimaram milhões de habitantes nesse(s) continente(s). Esta pandemia reavivou, por uns tempos, a ideia da vulnerabilidade do género humano. Voltando à minha condição de cidadã, parece-me, porém, indiscutível que se devem notar, como dados cruciais, o espírito colaborativo num mundo que se assume como globalizado; o espírito cooperante entre a investigação pura e aplicada; a confiança na “ciência” como panaceia para todos os problemas da Humanidade. Entendo que esta constatação não é necessária ou unicamente positiva: isso tende a desresponsabilizar e a inibir a afirmação de uma autoconsciência acerca da necessidade de uma revisão de padrões de vida ou de comportamentos sociais – que se revelaram tão ou mais decisivos para controlar os surtos pandémicos do que as soluções médicas. Este é um verdadeiro desafio para o futuro. Entre outros desafios que foram enfrentados e que poderão ser exemplos para o futuro, pode-se apontar também a capacidade de adaptação rápida a novos paradigmas de comunicação, de trabalho, de interação social; a superação das resistências dos “negacionistas” que, nuns países mais do que noutros, se revelaram capazes de inibir ações coletivas de controlo da progressão do vírus. No plano político, o debate entre autoridade e controlo versus liberdade individual, e entre interesses coletivos versus autodeterminação individual, são aspetos e desafios que não se esgotarão com a desejável superação (ou minimização) da pandemia.

Como cientista, que apreciação faz do panorama científico português na área das Humanidades, e de que modo está esta associada à captação de financiamento?
Perante esta questão, prefiro adotar uma perspetiva otimista. Poderia referir-me à desvalorização social das Humanidades e dos produtores dos seus saberes; aos preconceitos quanto à sua (in)utilidade social; ao desnível de financiamentos para o desenvolvimento de investigação e ensino nestas áreas; à imensa desproporção nos ratios professores / alunos (convertidos em disparidades extremas de financiamento a nível do ensino superior e da formação avançada). Tudo isto poderia ser consubstanciado em números – nenhum deles favorável à área das Humanidades. Mas prefiro salientar que me congratulo com a forma como têm evoluído, na última década, as oportunidades e o reconhecimento do valor e da importância das Humanidades. O plano estratégico do Horizonte 2020, da Europa 2030, e a afirmação dos 17 Objetivos Globais proclamados pela ONU, tornam incontornável o papel das Humanidades e das Ciências Sociais como contribuintes imprescindíveis para a desejável superação de problemas estruturais da Humanidade, para o incremento do diálogo Norte / Sul (e já agora Este / Oeste), e para a discussão dos grandes dilemas do presente, visando sustentabilidades futuras. Em paralelo, as deliberações do Parlamento Europeu em termos de políticas de memória e de lembrança (as European Memory Policies, Challenges and Perspectives (2015) e as European Rememberance Policies (2022)), a par da importância do debate em torno de questões de alteridade, género e etnicidade, colocam também as valências das Ciências Sociais e Humanas na ordem do dia. Todavia, valor social não tem direta correspondência com valorização económica, e, aqui, as Humanidades, em particular, debatem-se com um problema de difícil resolução: o do seu autofinanciamento, em sociedades dominadas por agentes económicas que privilegiam ainda a tecnologia em detrimento do saber (que pode ser também aplicado) das Humanidades e das Ciências Sociais e Humanas.

Quais os principais objetivos do novo Conselho Diretivo da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) para o triénio 2022-2025, o qual que tomou posse no passado dia 1 de julho e do qual faz parte integrante? Na sua opinião, que desafios conta enfrentar e quais os passos que mais fazem sentido num processo de valorização científica, no presente contexto?
Alguns dos objetivos e desafios principais foram identificados no discurso de tomada de posse do novo Conselho Diretivo. Entre elas, encontram-se o emprego científico, a digitalização e sua articulação com a organização da computação avançada no País, e a mudança de paradigma nas práticas de ciência aberta e de avaliação dos cientistas ou a igualdade de género. Quanto à segunda parte da questão formulada, entendo, pessoalmente, que importa esbater ou transpor fronteiras do saber, o que não é sinónimo de comprometer os níveis de especialidade e a especificidade metodológicas das diversas áreas disciplinares existentes (as ciências ditas duras, as aplicadas, as artes, as humanidades e as ciências sociais e humanas, em geral). É de fundamental importância esbater a ideia de que nos encontramos perante áreas de saber concorrentes, rivais ou paralelas, quando o que importa impulsionar é a sua complementaridade. Torna-se também imperativo promover a convergência entre o sistema de gestão de ciência e tecnologia nacional, as instituições de ensino superior (IES), e outras entidades não académicas de interesse público. A implementação de processos decisórios participados pelos agentes do sistema e, em particular, pelos seus beneficiários - a comunidade que o sistema deve servir -, deverá ser também contemplada, numa lógica participativa, bottom-up, em que todos os participantes sejam parte ativa. Por outro lado, encontra-se em implementação, desde há anos, uma política de fomento ao emprego científico louvável (em ordem também a evitar “brain drainage”), mas que se encontrará, dentro em breve, num beco sem saída, sem que se vislumbrem soluções, a curto prazo, capazes de desatar este “nó górdio”. Sem comprometer níveis de autonomia e prioridades definidas, em simultâneo (e muitas vezes em paralelo) pelas IES e pela FCT, afigura-se-me que só um diálogo ativo entre estas duas áreas, e respetivas entidades representativas, poderá garantir a salvaguarda dos interesses dos investigadores e uma produção científica de impacto a nível nacional e internacional, sem nunca descurar outros operadores na área do mercado de trabalho científico.


 
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