Investigadores U.Porto

U.Porto Reitoria SIP
André Tavares
Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto (FAUP) / Centro de Estudos de Arquitetura e Urbanismo (CEAU)

Vencedor de ERC Consolidator Grant


Retrospetivamente, fale-nos um pouco sobre o seu percurso científico e sobre o que levou a escolher a área da arquitetura como área de estudo e profissão.
Foi uma escolha natural. O meu pai é arquiteto e desde pequeno o acompanhei nas visitas às obras ou nos projetos do atelier, que era em nossa casa. Na faculdade, empenhei-me em atividades editoriais e na crítica às práticas pedagógicas, o que gerou hábitos de escrita e publicação. No estágio, tive oportunidade de trabalhar no arquivo documental, que então se estava a construir na FAUP, e interessei-me pela história da arquitetura e pelos mecanismos mentais e constrangimentos práticos subjacentes ao trabalho de projeto. Mais tarde, tive uma bolsa do governo suíço que me permitiu prolongar esse estudo em torno da tuberculose e da circulação internacional das ideias. Esse trabalho levou-me ao doutoramento, que fiz entre o Porto, São Paulo e Paris. Houve um momento em que hesitei, mas acabei por continuar a desenvolver investigação na história e teoria da arquitetura, especificamente, na história do livro e da publicação, com financiamento da Fundação para a Ciência e Tecnologia. Essa frente estava ligada ao meu trabalho como editor que, entretanto, estava a ganhar expressão na Dafne Editora. A investigação do livro The Anatomy of the Architectural Book, desenvolvida no Centro Canadiano de Arquitetura, em Montreal, teve um amplo reconhecimento internacional e acabou por me levar à escola de arquitetura do Politécnico de Zurique. Foi aí que desenvolvi o livro Vitruvius Without Text, que acabou de ser publicado, este mês, pela gta Verlag. Tenho pontuado o meu trabalho científico com a crítica de arquitetura, a publicação, e a divulgação pública dos resultados e das ideias, talvez com a ilusão de que o conhecimento não deve ficar preso à academia.

Para quem ainda não conhece o trabalho que tem vindo a desenvolver, pode referenciar algum momento, atividade ou algo produzido por si que tenha sido marcante, excetuando a bolsa atribuída pelo Conselho Europeu de Investigação (ERC, na sigla de língua inglesa)?
O trabalho mais marcante - porque está a ter uma grande continuidade no tempo - são os livros da Dafne Editora. São uma oportunidade única para trabalhar com autores que admiro e aprender com eles que forma física podem ganhar as ideias. Os livros são objetos palpáveis, e materializar ideias é das coisas que mais me fascina. Outro momento, muito intenso e marcante, foi a curadoria, com o meu grande amigo Diogo Seixas Lopes, que nos deixou demasiado cedo, da edição de 2016 da Trienal de Arquitetura de Lisboa, sob o título 'A Forma da Forma'. Foram várias exposições que deram substância a muitas ideias e à comunicação cruzada entre arquitetos e vários públicos - desde Lisboa, até a um público internacional. Nesse contexto, geraram-se reações importantes ao modo como mostrámos um estado presente da arquitetura. Tenho continuado esse trabalho nas exposições da Garagem Sul, no Centro Cultural de Belém, em Lisboa.

O que representa, para si e para o seu grupo de investigação, a aprovação do projeto vencedor de uma bolsa ERC Consolidator Grant e intitulado 'FISH-A - Fishing Architecture: The Ecological Continuum between Buildings and Fish Species'?
Em primeiro lugar, significa a hipótese de construir um grupo de investigação. Tenho trabalhado em colaborações preciosas e muito frutíferas, mas nunca tive oportunidade de constituir um grupo com a estabilidade e os recursos que o financiamento do ERC promete. Por outro lado, representa um estímulo fundamental para a ambição de dar corpo a novos modos de pensar a arquitetura. O projeto tem como fundo a história ambiental, ou ecológica, da arquitetura; são temas e ideias muito afastadas das preocupações de vários dos meus colegas e, sobretudo, da ideia que a maior parte das pessoas tem do mundo. Espero conseguir demonstrar que a arquitetura pode ter um papel fundamental no nosso futuro.

Fale-nos um pouco do projeto FISH-A. Como surgiu a ideia, e qual é a sua missão e os seus objetivos?
O projeto chama-se Fishing Architecture; se tivesse de lhe dar um título em português, seria qualquer coisa como: 'Em busca da arquitetura dos peixes'. A ideia tem por base pensar a arquitetura na sua relação com a natureza, as dinâmicas dos ecossistemas e as suas inter-relações com sistemas, cujo nexo nem sempre é óbvio. Para comermos peixes, pescamos, e, para pescar, construímos instalações de apoio à pesca – desde os portos, às fábricas de conserva e infraestruturas de distribuição do pescado. Ao construirmos essas arquiteturas estamos, inevitavelmente, a aumentar a pressão sobre as populações de peixes que, com taxas de mortalidade maiores do que as taxas de reprodução, acabam por colapsar com a sobrepesca. Ao colapsarem as populações de peixe, o que se construiu perde a sua razão inicial, e transforma-se - um processo que corre em paralelo com as transformações do ecossistema. Estas relações de interdependência entre sistemas naturais e construção não estão estudadas. Compreendê-las, espero, vai ajudar a perceber melhor como transformamos o mundo.

O projeto FISH-A incide sobre as espécies e os seus ecossistemas marinhos. A nível pessoal, o conhecimento sobre as espécies marinhas é algo que lhe suscita particular interesse ou entusiasmo? Em caso afirmativo, como surgiu este interesse?
Se não suscitasse interesse, não teria imaginado este projeto! Mas há duas respostas diferentes à sua pergunta. A primeira tem a ver com o projeto, que decorre de outros trabalhos que tenho vindo a fazer em torno de algumas pescarias específicas, como as do bacalhau e a da sardinha. Ao desenvolver esses projetos, tenho ficado cada vez mais fascinado com as dinâmicas dessas espécies, que continuo a não conhecer muito bem - afinal de contas, sou arquiteto. A segunda resposta tem a ver com o interesse neste tipo de trabalho - porque não percebo nada de biologia marinha, estudar a arquitetura a partir das espécies é fascinante. Obriga a uma interdisciplinaridade difícil, mas é muito gratificante. É um diálogo que faço, não só com a biologia marinha, mas também com a economia, a geografia, etc. É esse encontro e trabalho conjunto com cientistas de outras áreas que mais me motiva.

De que forma o projeto FISH-A e o trabalho desenvolvido nesta área pode informar, para além da ciência, também medidas e políticas aos níveis nacional e internacional?
As transferências de conhecimento são muito complexas e dependem de uma população mais bem informada – que possa ser mais exigente – e de políticos atentos. Este projeto não vai resolver esses problemas estruturais. Contudo, espero que ajude a informar uma sociedade que tem cada vez mais interesse em compreender quais as consequências humanas nos ecossistemas. E, se um dia se compreender que é importante ter um biólogo marinho na constituição de uma equipa de planeamento urbano, sentirei que este trabalho serviu para alguma coisa. Muitas vezes, a conceção das formas em terra faz-se no desconhecimento total dos seus impactos no mar. O que me aflige mais é que, tantas vezes, mesmo conhecendo os impactos negativos – o exemplo da indústria de construção de pontões de proteção/destruição marítima é um bom exemplo –, as instâncias responsáveis não hesitam em continuar a construir destrutivamente. Essa incompetência só pode ser combatida com conhecimento e saber, e espero contribuir para construir essa força coletiva.

Durante os próximos 5 anos constituirá um grupo de trabalho para levar a cabo o projeto galardoado pelo ERC. Fale-nos dos perfis da equipa, e da forma como o projeto irá motivar a criação de sinergias entre equipas de investigação dentro e fora da U.Porto.
A equipa tem como base disciplinar a arquitetura. Trata-se de compreender a construção do espaço, as suas formas e as suas dinâmicas. A arquitetura tem uma dimensão de projeto muito singular – os arquitetos projetam, no sentido em que imaginam o percurso das coisas, ou sua trajetória, olhando para o futuro da realidade material. Este trabalho de investigação que agora começa tem, sobretudo, uma dimensão histórica, o que implica olhar para o passado. É nessa relação entre o futuro e passado, ou a história dos futuros, que se funda o nosso trabalho. Mas esta história da arquitetura vai ter uma dimensão de biologia marinha muito importante: Como funcionam as espécies? Que dados é que os futuros do passado nos dão para compreender estas relações cruzadas? E como representar – visualmente – essas relações e transformações? A arquitetura trabalha com representações relativamente fixas – formas estáveis no espaço e no tempo –, e o que aqui está em causa são representações dinâmicas – espécies em movimento no espaço e no tempo. Estas várias frentes vão ser lidas no contexto do Atlântico Norte - afinal, os peixes não têm nacionalidade. Por isso, a equipa vai relacionar realidades de vários países do Atlântico, da França à Islândia, da Inglaterra ao Canadá, passando pelos Estados Unidos e Noruega.

Que conselhos daria a todos(as) aqueles(as) que se encontram atualmente a desenvolver propostas de investigação, de forma a melhor se prepararem, e responderem de forma mais competitiva, a futuros concursos de financiamento de projetos de IC&DT, como é o exemplo do Conselho Europeu de Investigação?
Rigor e objetividade. Uma certa modéstia na organização do trabalho – nenhum projeto vai resolver todos os problemas do mundo – e uma grande ambição nas ideias: temos mesmo de mudar os modos de pensar e agir e, para isso, temos de ser ambiciosos. Preparar a candidatura a este financiamento foi uma oportunidade para refletir sobre o meu próprio percurso, compreender que esse percurso se foi construindo trabalho após trabalho, que cada coisa tem o seu tempo, e que se vão encontrando ressonâncias inesperadas ao longo dos anos. Por outro lado, o concurso era muito claro a pedir risco: não saber, à partida, que resultados se vão encontrar à chegada. Só com esse risco é que se podem fazer avanços inesperados e importantes. Vale a pena ler o programa deste concurso, porque é claro nesse objetivo: progredir no conhecimento, e tornar esse progresso acessível a todos. Na minha opinião, o mais importante na investigação é ter em vista essa dimensão de utilidade pública, saber qual a contribuição da investigação para os desafios da sociedade. E ser rigoroso, cuidadoso e generoso na organização e publicação dos resultados.

Dado o contexto atual em que vivemos, e após dois anos atípicos devido à pandemia da COVID-19, como tem sentido o impacto da pandemia no mercado da arquitetura? A pandemia fez-nos repensar o modo como vivemos (dentro e fora de casa), fez-nos repensar os espaços (coberturas verdes, jardins particulares e parques públicos) e, em particular, os espaços verdes. Como serão, por exemplo, as casas do futuro? Os escritórios? Os espaços de convivência social?
Não sei se concordo com essa separação antes/depois da pandemia. Há fatores muito mais importantes do que a pandemia a determinar as formas das «casas do futuro». Pense no investimento imobiliário, nos mercados financeiros, nas políticas públicas de habitação. Todos esses fatores têm um peso muito maior, e têm tempos de maturação e desenvolvimento muito mais longos do que os dois anos da pandemia. É muito rara uma obra de arquitetura que se construa em tão pouco tempo. Claro que agora todos queremos casas com varanda, e percebemos que é vantajoso ter espaços em casa que não sejam nem quarto nem sala ou cozinha, mas daí até virar tudo de pernas para o ar vai uma grande distância. Talvez seja pena, mas creio que não vamos mudar muito por causa da pandemia.

Como cientista, que apreciação faz do panorama científico português na área da arquitetura, e em outras áreas, de um modo geral? O que poderia aumentar a visibilidade da arquitetura portuguesa, a nível nacional e internacional?
Pessoalmente não acredito em nacionalismos. A «arquitetura portuguesa», como é geralmente caracterizada, foi um produto comercial inventado pelas agências de promoção económica dos anos de 1990, apoiadas no êxito de arquitetos como o Álvaro Siza, ou o Eduardo Souto de Moura. São arquitetos extraordinários, com quem aprendemos muito, mas cujas práticas são tão portuguesas como espanholas (o arquiteto Álvaro Siza deve ter construído mais em Espanha do que em Portugal). Creio que um dos principais problemas do panorama científico português é ser demasiado fechado sobre si próprio e, nesse ensimesmamento, temo que a arquitetura reine. Por outro lado, fico muito feliz em ver muitos colegas a produzir conhecimento original e de grande relevância, quer em Portugal, quer no estrangeiro. A União Europeia é uma estrutura política que tem potenciado enormemente esse crescimento, tem aberto possibilidades formidáveis, e temos ainda muito para aprender e crescer. Por isso, vejo com alegria e satisfação essa abertura europeia do panorama científico português.



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