Atividade de investigação em Arquitetura
Com um extenso curriculum científico em arquitetura, uma área de investigação que se expande temporal e geograficamente, de que forma foi moldando o percurso académico a sua abordagem particular ao estudo do património e arquitetura?
Desde cedo no meu percurso académico desenvolvi uma curiosidade particular pela história, pela identidade coletiva e pelos encontros culturais que ocorreram no período da expansão marítima de Portugal. Mais tarde, já no curso de Arquitetura da Universidade de Coimbra, esse interesse foi acalentado por Professores como Fernando Távora, Alexandre Alves Costa e Domingos Tavares. Paralelamente, participei como voluntário em várias escavações arqueológicas no norte do país, com estudantes da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Acabei por encontrar nas ruínas de grandes edifícios, sobretudo aquelas em risco de erosão ou demolição, o meu tema principal de investigação e também de projeto arquitetónico. Na verdade, nunca tive aptidão para conceber e desenvolver os projetos de grande escala – grandes prédios de habitação ou hotéis – que por norma eram o tema das cadeiras nucleares dos cursos de arquitetura, tanto em Coimbra como no Porto. Talvez também esse handicap me tenha conduzido para as temáticas do património, da reabilitação e da conservação. Quando concluí a licenciatura em Arquitetura, foi mais por necessidade – mas também por gosto, claro – que concorri e beneficiei de várias bolsas, desde a Bolsa de Iniciação Científica (2006-2007), Bolsa de Doutoramento (2008-2011), Bolsa de Pós-Doutoramento (2013-2018) e Bolsa/Contrato CEEC-Individual (2019-2024). A grande competitividade dessas bolsas, sobretudo para projetos na área científica da História e Teoria da Arquitetura, obrigou-me a um constante trabalho de investigação e de atualização teórica. Todos esses projetos tiveram por temática principal o património de influência portuguesa na Ásia, levando-me também a construir uma rede de contatos internacionais.
A herança cultural da influência portuguesa na Ásia e Sudeste Asiático é o principal foco da investigação que desenvolve, diríamos mesmo que se destaca como uma especialização. Que inspiração fez emergir este interesse em particular?
Em 2001, enquanto estudante finalista na Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto (FAUP), optei por fazer o 5° ano da licenciatura como estudante free-mover no Goa College of Architecture, na Índia. No início desse processo, houve o desafio de organizar e conduzir o intercâmbio entre universidades, incluindo a admissão na Universidade de Goa, o que não foi linear. Porém, pouco depois de chegar a Goa, tive a oportunidade de visitar Velha Goa, a antiga capital do Estado da Índia, uma cidade em parte abandonada, e em parte arruinada, com edifícios de elevado e singular valor patrimonial. Foi uma experiência inesquecível. Quando me apercebi que muitas daquelas ruínas nunca tinham sido estudadas ou sequer exploradas, encontrei um tema perfeito para a minha Prova Final de Licenciatura (que hoje equivale a uma dissertação de mestrado). Felizmente, nesse trabalho académico, fui orientado pelo Professor Alexandre Alves Costa, que não apenas acompanhou de perto o desenvolvimento da investigação, mas também me encaminhou, generosamente, para um grupo de outros professores e investigadores ligados ao património de influência portuguesa no Oriente, no sentido de ouvir experiências e perspetivas diversas. Entre esses contatos, estava o Professor Paulo Varela Gomes, que mais tarde se tornou coorientador da minha tese de doutoramento, e a quem também muito devo no arranque do meu percurso científico. Na confluência da minha paixão por Velha Goa e da partilha de conhecimento com esses dois Mestres nasceu e desenvolveu-se o foco da minha investigação, que depois se alargou às outras regiões costeiras do subcontinente Indiano, e, mais tarde, a países como o Sri Lanka, Timor Leste, Malásia, etc.
Foi-lhe recentemente atribuída uma ERC Consolidator Grant, no âmbito do seu projeto “ID-SCAPES: Building Identity. Religious Architecture and Sacral Landscapes of Christian Minorities in India and Bangladesh”. Poderia partilhar com a comunidade científica da U.Porto as complexidades e desafios do estudo da arquitetura religiosa nestas comunidades minoritárias, e de que forma este projeto espera reformular a nossa compreensão coletiva da identidade, cultural e não só, através da arquitetura sacra?
O projeto ID-SCAPES centra-se no património cultural de influência portuguesa associado às minorias cristãs na Índia e no Bangladesh, um património que é transcultural, multifacetado e por vezes contestado, mas sempre essencial para a história, identidade e resiliência dessas mesmas minorias. Muitas das igrejas medievais e primo-modernas de ambos os países foram construídas principalmente para comunidades de cristãos recém-convertidos, provenientes de diferentes regiões e castas e, por conseguinte, com identidades correspondentes. Ainda hoje, muitas das igrejas da Ásia do Sul refletem estas identidades e tradições locais, com fatores como a casta, a influência indígena e a acomodação cultural a desempenharem um papel na sua história social e arquitetónica. Estes contextos deram origem a expressões arquitetónicas regionais distintas nas principais comunidades etnolinguísticas cristãs de ambos os países. Atualmente, à medida que os grupos dominantes afirmam políticas hegemónicas por toda a Ásia do Sul, as minorias religiosas enfrentam desafios crescentes e o seu património cultural está muitas vezes em risco. Muitas das igrejas da Ásia do Sul fundadas antes de ca. 1800 desapareceram, estão em ruínas ou foram profundamente transformadas, e há um sentimento de urgência em documentar as igrejas que restam. O projeto ID-SCAPES produzirá uma História Social do Ambiente Construído das igrejas e paisagens sacralizadas medievais e primo-modernas da Índia e do Bangladesh, revelando as influências de diversas agências, identidades e tradições na sua arquitetura.
A investigação que desenvolve é extraordinariamente rica em multidisciplinariedade, abrangendo várias disciplinas para além da arquitetura, como sejam história e estudos culturais. De que forma considera que esta natureza de reciprocidade temática enriquece o estudo da arquitetura em geral?
Durante longas décadas, a maior parte dos trabalhos de autores portugueses sobre a história do património de influência portuguesa no mundo partiram de leituras centradas em objetos arquitetónicos individualizados, e foram fortemente influenciadas por perspetivas eurocêntricas. Nessas perspetivas, entendiam-se esses objetos enquanto extensões ou variantes de modelos emanados de Portugal continental, e isolados dos seus contextos culturais locais. Essa visão eurocêntrica era – e, por vezes, ainda é – permeável a alguns “saudosismos” e “paternalismos”, e muitas vezes indiferente ao modo como os habitantes dos países por onde se encontra espalhado o património de influência portuguesa pensam e lidam com esse mesmo património. Na minha investigação, uma das questões que mais acalento é a produção de valor e de significados inerentes a esse património que tenham ressonância e atualidade junto das populações que estão mais próximo dele, que o vivem e o experienciam no dia-a-dia. Para tal, torna-se imprescindível encarar de frente o legado muitas vezes controverso, violento e socialmente injusto do colonialismo português, olhando para os contextos pré, pós, e para-colonial, para além do dito colonial. Assim, não se pode desligar o património de influência portuguesa daqueles que foram subjugados pelo projeto colonial português. Não se pode olhar para uma fortificação em África sem pensar nos povos que estavam na mira dos seus canhões; não se pode olhar para uma fazenda setecentista no Brasil sem pensar nos escravos que a construíram; não se pode olhar para uma igreja na Índia sem pensar naqueles que estavam impedidos de entrar nela. Atendendo a esta postura de pensar o património de influência portuguesa, a história e os estudos culturais são campos disciplinares indispensáveis sem os quais não existe, de facto, história da arquitetura.
Gostaríamos de abordar um tema a montante, o da conservação. Na sua opinião, haverá necessidade de melhor educar e sensibilizar decisores políticos e sociedade em geral para a importância de conservar tamanha riqueza arquitetónica e paisagística, e em última análise, cultural e patrimonial?
Relativamente à conservação do património de influência portuguesa no mundo, a realidade que conheço mais de perto é a da Índia. Nesse país, existe uma fortíssima conexão entre a política e a religião. Relativamente às igrejas dos católicos, é fundamental compreender a atuação do clero católico indiano, através das instituições a nível diocesano e paroquial. Algumas decisões relativamente à conservação – ou não conservação – das igrejas de influência portuguesa têm conotações políticas. Durante toda a segunda metade do século XX, existiram momentos em que elementos do clero católico indiano procuraram distanciar-se do legado do colonialismo português, nomeadamente através da construção de novas igrejas no lugar de outras mais antigas, por vezes apagando os vestígios da influência portuguesa. Atualmente, essa tendência é mais incomum, porém, teve um impacto profundo. Por outro lado, existem muitas igrejas ou conventos em ruínas que nunca suscitaram a atenção ou o investimento da igreja católica na Índia. Se há algo que a história dos últimos dois séculos nos ensinou, é que os edifícios religiosos de influência portuguesa na Índia vão acabar por desaparecer, na sua grande maioria. É um processo que acaba por ter a sua naturalidade, considerando a realidade da economia e da sociedade indiana. No âmbito do projeto ID-SCAPES, procuramos sobretudo sensibilizar o clero católico, as hierarquias das dioceses, e as associações de paroquianos para o significado cultural deste conjunto patrimonial. Apenas na convergência de vontade política, a nível das dioceses e de movimentos proactivos a nível das paróquias, se poderá tentar reverter, em alguns locais, um processo de erosão patrimonial que se afigura irreversível. Assim, o projeto ID-SCAPES tem um grande enfoque nessa sensibilização, mas também na documentação gráfica rigorosa do património em risco, procurando pelo menos resgatar a sua memória na expectativa do seu iminente desaparecimento físico.
A propósito das diversas colaborações internacionais que compõem o seu percurso científico, de que forma moldou a influência afro-asiático-europeia a sua perspetiva sobre o intercâmbio e a transformação do património cultural, particularmente no contexto da evolução da história da arquitetura?
Se olharmos para o património de influência portuguesa no mundo, existem dois espaços claramente distintos: o espaço do Atlântico e o espaço do Índico (com a sua extensão numa parte do Pacífico ocidental). Durante o período primo-moderno, e excluindo a presença portuguesa em Marrocos, verifica-se que no espaço do Atlântico a arquitetura de influência portuguesa foi relativamente pouco impactada pelas culturas arquitetónicas e urbanas locais. Inversamente, no espaço do Índico, a arquitetura de influência portuguesa foi fortemente influenciada pelas culturas e pelos povos das regiões onde se implantou, desde a costa oriental Africana até ao Japão. Esta dicotomia é especialmente marcante na arquitetura religiosa cristã. Basta compararmos as igrejas primo-modernas do Brasil com as da Índia. A verdade é que ao longo das regiões litorais do oceano Índico frequentadas pelos portugueses dos séculos XVI, XVII e XVIII, existiu um notável encontro e intercâmbio cultural, processo que teve um impacto muito significativo na arquitetura e no urbanismo. Estas realidades estão na base dos objetivos e metodologias do projeto PORTofCALL (financiado pela FCT) do qual sou co-investigador responsável, sendo a Professora Marta Oliveira investigadora responsável. Ao longo dos primeiros três anos deste projeto, foi possível desenvolver e aprofundar colaborações internacionais em vários países do Oceano Índico, como Moçambique, Índia e Sri Lanka, evidenciando o valor plural e transcultural do património de influência portuguesa, sem esquecer o legado controverso do colonialismo português.
De que forma estabelece a ponte entre a investigação académica e o trabalho de campo - que em matéria de arquitetura é de resto indissociável - e que grandes desafios impõe este exigente equilíbrio?
O equilíbrio entre o trabalho de campo e o trabalho de investigação em arquivos e bibliotecas é, para mim, fundamental. Conheço muitos arquitetos que são exímios no trabalho de campo, mas têm “alergia” ao pó dos livros e dos manuscritos...e conheço outros académicos que escrevem sobre obras do património de influência portuguesa sem sair das salas e gabinetes de Portugal. Os resultados destes métodos raramente são interessantes, no que concerne a produção de conhecimento inovador. Naturalmente que o trabalho de campo em países como a Índia é logisticamente mais complexo do que em Portugal. Quando refiro, no resumo do meu curriculum vitae, que coordenei in loco vinte e cinco levantamentos topográficos georreferenciados de sítios arqueológicos na Índia (entre ruínas de fortes, igrejas, capelas e casas-senhoriais de influência portuguesa), faço-o porque sei que a maior parte das pessoas ligadas à minha área científica conhecem os desafios que tais tarefas implicam. São momentos muito intensivos de trabalho, mas que apenas fazem sentido se, paralelamente, se fizer a correspondente investigação documental. Sinto que, atualmente, os estudantes de arquitetura estão numa fase de deslumbramento com certas ferramentas digitais que aparentemente produzem resultados atraentes para pouco investimento de tempo, quer em trabalho de campo, quer de arquivo. Alerto-os para a necessidade de não esquecerem a principal ferramenta do arquiteto: o desenho. Tanto o desenho à vista como o desenho enquanto ferramenta conceptual. Por outras palavras, para compreender verdadeiramente uma obra arquitetónica de valor patrimonial, não basta vê-la e/ou fotografá-la, é necessário observá-la e interpretá-la através do desenho. No cruzamento desses desenhos com documentos visuais ou escritos abre-se a janela para o desenho enquanto produção de conhecimento, sustido pela palavra escrita.
Tendo ganho prémios de prestígio, como o prémio ‘Fernando Távora’, e publicado obras de referência, como equilibra as suas responsabilidades de investigação, escrita e ensino? Que conselhos daria a académicos emergentes que aspiram a uma carreira de investigação interdisciplinar complexa?
Felizmente, estou numa posição em que é relativamente simples equilibrar a investigação com a docência, porque as experiências e os resultados da minha investigação produzem a história de arquitetura que comunico aos estudantes, enquanto um dos professores da unidade curricular História de Arquitetura Portuguesa. Portanto, existe uma “canalização direta”, por assim dizer, da minha investigação para a minha atividade docente e de orientação. A escrita é sempre algo mais complicado, devido a questões de políticas editoriais e de financiamento. Com o projeto ID-SCAPES é possível publicar extensamente e para um grande público sobre as temáticas do património de influência portuguesa, algo que é um privilégio, mas também uma grande responsabilidade. Na verdade, o projeto permite atualizar a história da arquitetura de influência portuguesa, e isso apenas se concretiza através de publicações. É muito difícil dar conselhos, pois cada percurso académico é construído face a desafios específicos, quer do foro académico, como do científico ou pessoal. Porém, e pensando na realidade da academia e das escolas de arquitetura em Portugal, acho que é fundamental, para se ser professor, ter a experiência de mais do que uma instituição. No meu caso, fui estudante no Departamento de Arquitetura da Universidade de Coimbra e na Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto, para além da experiência enquanto free-mover em Goa. Mais tarde, fui investigador no Centro de Estudos Sociais, e professor auxiliar na Universidade Lusófona do Porto. E atualmente, sou professor na Universidade do Porto, a minha terra natal. Cada passagem por cada instituição teve os seus “altos e baixos”, mas teve sempre um efeito enriquecedor, quer a nível científico, quer de relações humanas.
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