Investigadores U.Porto

U.Porto Reitoria SIP
Isabel Ferreira
Faculdade de Farmácia da U.Porto (FFUP) / Laboratório Associado para a Química Verde (LAQV-REQUIMTE)

Investigadora Principal nos projetos DIETxPOSOME e SALIVA+


Fale-nos um pouco sobre o seu percurso científico.
Iniciei o meu percurso científico na U.Porto em 1991, no laboratório de Química Analítica da FFUP, com uma bolsa de doutoramento financiada pela JNICT e com o tema «construção e aplicação de detetores potenciométricos tubulares». Após realizar um Pós-doc na Universidade Católica do Porto, regressei à U.Porto como docente do Laboratório de Bromatologia da FFUP, para dedicar-me à ciência dos alimentos. Inicialmente, foquei a minha atividade científica na avaliação da composição e segurança química de alimentos, a estudar o impacto do processamento e do armazenamento com recurso a métodos cromatográficos, e desenvolver novas estratégias para reduzir a ingestão de compostos indesejáveis da dieta. No entanto, como a Bromatologia estuda os alimentos em todos os seus aspetos, incluindo as caraterísticas sensoriais e o seu contributo para beneficiar a nossa saúde, fui abarcando outras áreas relacionadas, nomeadamente, a análise sensorial, a análise estatística de dados para identificar padrões, correlações e tendências usando modelos matemáticos e, mais recentemente, modelos in vitro que simulam a digestão, absorção e metabolismo no trato gastrointestinal. A minha atividade docente nas unidades curriculares em que sou regente - Bromatologia e Análises Bromatológicas, e Alimentação Humana e Controlo Sensorial - relaciona-se com o meu percurso científico na FFUP. Desde 2012, sou Professora Associada com Agregação na FFUP.

Consegue identificar 2 ou 3 marcos, na sua carreira profissional, que tenham sido mais relevantes para si?
Consigo identificar alguns marcos na minha carreira profissional que considero de especial relevância. Por exemplo, o estágio que fiz em 1992, na Universidade Autónoma de Barcelona, com um grupo de referência na área do meu doutoramento, abriu-me novos horizontes, sendo inspirador vivenciar o dia-a-dia numa universidade muito diferente da FFUP daquela época, o que consolidou o meu gosto pela ciência e me fez entender a importância do intercâmbio científico. Outro marco importante foi a mudança de área científica após o doutoramento, quando fui contratada como docente do Laboratório de Bromatologia da FFUP, tendo sido na ciência dos alimentos que alicercei a minha carreira profissional. O doutoramento ensinou-me a pensar e a resolver problemas de forma diferente e com espírito crítico; por isso, quando mudei de área, já sabia fazer investigação, mas tive que voltar a estudar muito para aprender as bases de uma área nova, ganhar os primeiros projetos financiados, e publicar artigos científicos. Outro marco relevante foi em 2010, quando consegui completa autonomia para o grupo de investigação que coordeno no LAQV/REQUIMTE (FOODInteract Research Team). Desde então, o grupo recebe financiamento do LAQV em função da produtividade científica, a qual tem aumentado consideravelmente sob a minha coordenação.

Em paralelo com a docência na FFUP, é coordenadora da linha temática “Alimentação & Nutrição” do LAQV/REQUIMTE. Pode falar-nos do trabalho que tem desenvolvido neste grupo de investigação e sobre, como responsável, qual a relevância do mesmo em termos de impacto social e na aplicação de políticas públicas?
A linha temática «Alimentação & Nutrição» está alinhada com a Agenda de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas (ONU), com as prioridades do Horizonte Europa, e em colaborar com parceiros industriais e órgãos reguladores. O foco é usar a Química Sustentável como uma ferramenta para enfrentar os desafios sociais, económicos e ambientais da vida moderna, fornecendo soluções sustentáveis com aplicação em políticas públicas, na indústria, e no público em geral, ajudando os consumidores a fazerem escolhas informadas que promovam a sua saúde. Como tenho uma visão global desta linha temática dentro do LAQV/REQUIMTE, tenho contribuído na elaboração de propostas que fomentam o emprego científico e aumentam o financiamento da unidade, e também na preparação dos relatórios necessários para a avaliação periódica da unidade de investigação, ou em representar esta linha temática em diversos eventos.

Sabemos que uma das suas áreas de interesse na investigação é a de desenvolvimento de métodos sustentáveis na valorização dos alimentos. Quer falar-nos um pouco sobre a pertinência/iminência do tema na atualidade?
A forma como os alimentos são atualmente produzidos, processados, distribuídos e consumidos tem forte impacto no ambiente e na sustentabilidade do planeta. De acordo com a Organização das Nações Unidas, a indústria alimentar é responsável por 30% do consumo energético mundial e por 22% dos gases de estufa. Adicionalmente, estima-se que, em 2050, a população mundial seja superior a 9000 milhões. Neste contexto, é premente o desenvolvimento de métodos sustentáveis que valorizem a composição dos alimentos, com vista à saúde global, segurança alimentar, e à preservação dos recursos naturais e biodiversidade.

Quais são, a seu ver, os três maiores erros na alimentação dos portugueses?
Os relatórios de organismos oficiais revelam que uma grande parte da população consome um excesso de calorias, demasiada carne, muito sal, muitos doces e poucos alimentos com fibra. Na minha opinião, o maior erro na alimentação de muitos portugueses é o desconhecimento ou a falta de interesse em conhecer a composição dos alimentos que consomem e as quantidades que precisam para uma alimentação variada e equilibrada.

Em paralelo com a docência e atividade de investigação, é membro de 4 redes internacionais: INFOGEST, UNGAP, SYSTEMIC e RIESDM. Que balanço retira desta experiência?
Integrar redes internacionais e colaborar com instituições europeias e nacionais permite conhecer pessoalmente e trocar ideias com os investigadores que têm reconhecimento e visibilidade em áreas relacionadas com a investigação que realizo, o que é uma vantagem para alcançar objetivos mais ambiciosos, pois, frequentemente, somos convidados para integrar consórcios nacionais e internacionais. Também permite disseminar mais facilmente os resultados dos projetos que lidero ou nos quais participo.

Fale-nos um pouco sobre a sua visão acerca das problemáticas que afetam atualmente a indústria alimentar e sobre as futuras necessidades de investigação na área, nomeadamente na ótica da economia circular e preservação ambiental.
A escassez de algumas matérias-primas é um problema para a indústria alimentar. Paralelamente, são produzidos milhões de toneladas de resíduos alimentares, que provocam problemas ambientais e contribuem para as alterações climáticas do planeta. Procurar novas matérias primas e fomentar a economia circular, com novos ingredientes, provenientes, por exemplo, de subprodutos alimentares, que apresentam elevado valor nutricional ou propriedades benéficas para a saúde dos consumidores, continua a ser um desafio a nível industrial. O projeto cLabel+, em que participei e que está a terminar, juntou empresas ligadas ao setor agroalimentar e diversas universidades e unidades de investigação, as quais, em conjunto, desenvolveram alimentos inovadores “clean label” naturais, nutritivos e orientados para o consumidor, tratando-se de um excelente exemplo de sinergia entre investigação e indústria. Existem outras problemáticas que unem a indústria alimentar e a necessidade de investigação, por exemplo, continuar a identificar contaminantes emergentes - alguns resultantes das alterações climáticas, tais como toxinas naturais -, e também contaminantes provenientes do uso intensivo de plásticos, e evitar ou reduzir a sua presença nos alimentos.

No contexto da sua investigação, conta com diversas participações em projetos e, em muitos deles, como investigadora principal. Pela sua experiência, o que é mais e menos valorizado, nos projetos da sua área científica?
Nos projetos da minha área científica é valorizada a novidade e a atualidade do tema, mas também a experiência do investigador principal em responder com sucesso a desafios científicos relacionados com o tema do projeto. É importante demonstrar que os objetivos a alcançar são inovadores e importantes para a sociedade, e que o investigador principal e a equipa, no seu conjunto, têm o conhecimento e as condições para os concretizar. Também é importante demonstrar que, caso as tarefas propostas não conduzam aos resultados esperados, é proposto um bom plano de contingência, para conseguir atingir as metas. Adicionalmente, a colaboração regular com grupos científicos e universidades de renome internacional também é valorizada, porque promove sinergias e reforça a disseminação dos resultados. Sinceramente, ainda não descobri o que é menos valorizado.

A pandemia de Covid-19 teve um forte impacto na indústria alimentar - o maior setor industrial em Portugal -, o que foi agravado pela guerra Russo-Ucraniana e pela espiral inflacionária que se tem registado. Por conseguinte, os hábitos alimentares dos portugueses continuam a deteriorar-se, em conjunto com uma indústria alimentar que tem produzido cada vez mais alimentos que são apenas compostos químicos. Como considera que tal afeta a saúde, no médio e longo prazo?
A pandemia e a guerra da Ucrânia trouxeram novos desafios à economia, à qualidade e segurança dos alimentos (food safety), mas também à disponibilidade, acesso físico e económico, e estabilidade do abastecimento de alimentos (food security). Por exemplo, os cereais armazenados por mais tempo ficam mais propensos ao desenvolvimento de fungos e à contaminação com micotoxinas. Na UE, a indústria alimentar tem de obedecer às regras impostas pela legislação europeia relativas à segurança alimentar e limites máximos de alguns contaminantes, sendo o cumprimento desta legislação assegurado pelos organismos fiscalizadores. No entanto, estão continuamente a ser identificados contaminantes emergentes que não estão legislados e cujos efeitos no organismo são desconhecidos. Os efeitos para a saúde, a médio e a longo prazo, da exposição continuada, através da dieta, a baixas doses de diversos contaminantes químicos são pouco compreendidos. Nesse contexto, no projeto DIETxPOSOME, do qual sou investigadora principal, e que está a terminar, recorremos a técnicas de machine learning para identificar o perfil de contaminantes associado a diferentes dietas, desenvolvemos modelos in vitro que simulam a exposição repetida, ao nível do trato gastrointestinal, a esses «cocktails» de contaminantes inseridos em dietas, e avaliamos o impacto na integridade da barreira intestinal e na inflamação crónica. No projeto SALIVA+, iniciado recentemente, do qual sou também investigadora principal, vamos usar a saliva para a biomonitorização da exposição a múltiplos contaminantes da dieta. Uma melhor compreensão da exposição a contaminantes alimentares e do seu impacto no organismo permitir-nos-á obter mais informações sobre os efeitos para a saúde, a médio e a longo prazo.

Como cientista, que apreciação faz do panorama científico português na sua área de investigação, e em outras áreas, de um modo geral? Considera que a ciência é devidamente valorizada em Portugal?
Na minha opinião, no nosso país desenvolve-se investigação científica de grande qualidade, reconhecida internacionalmente. Temos excelentes investigadores, altamente qualificados, que dão o seu melhor em condições, muitas vezes, adversas. Na minha área de investigação - Ciência & Tecnologia dos Alimentos -, a U.Porto ocupa a 2ª posição entre as universidades europeias no ranking de Shanghai (depois da Universidade de Wageningen) e a 15ª posição no mundo. Acredito que a nossa flexibilidade, capacidade para improvisar, e espírito de sacrifício, ajudam a superar muitas dificuldades, principalmente, tendo em atenção que a ciência em Portugal está subfinanciada, não é devidamente valorizada, e que a atividade de investigador está a tornar-se pouco apelativa, devido aos altos níveis de precariedade e às posições de carreira para investigadores praticamente inexistentes. Consequentemente, uma grande maioria dos investigadores não se sente devidamente valorizada, pelo que muitos emigram para conseguir estabilidade e progressão em empregos que valorizem o seu conhecimento, muitas vezes ligados à indústria, tecnologia e biotecnologia que, em Portugal, não absorve estes profissionais. Portugal investiu neles ao longo de anos a fio e, quando chega a altura de contribuírem ativamente para o desenvolvimento e melhoria da sociedade, vão dar o seu contributo noutros países. Esta é uma realidade que os nossos governantes precisam de resolver, para conseguir fixar aqueles que têm ambições e que são capazes de ir mais longe.






Poderá consultar mais informações sobre a investigadora aqui.

 Copyright 2023 © Serviço de Investigação e Projetos da Universidade do Porto.
Todos os direitos reservados.