Percurso científico na área da Economia da Energia
No dia 17 de março 2023 assinala-se um ano que terminou um percurso notável na docência e investigação, que culminou com a sua aula de jubilação, intitulada "Economia da Energia: da marginalidade à centralidade na ciência económica". Que simbolismo teve o momento em que deu início à sua última aula?
Fiquei muito emocionada com a iniciativa e com a dimensão da assistência e das mensagens recebidas! Sempre pensara retirar-me discretamente. Naquele momento, também, tive um forte sentimento de incredulidade! Como era possível o tempo ter passado tão rápido! Tantas vivências, e parecia que tinha sido ontem! A minha cabeça continuava a fervilhar de ideias e projetos, com 70 anos acabados de cumprir e, aí estava eu na” hora da despedida”. Algo não jogava bem… Ao ver o Salão Nobre da FEP com tantos colegas, funcionários, amigos e alunos, por breves momentos, senti-me invadida por uma melancolia que, felizmente, consegui ultrapassar quando iniciei a Lição. Aí, voltei a envolver-me e a entusiasmar-me com a área científica que sempre me apaixonou. Alguns slides que preparara continuaram a servir apenas de âncoras, tal como nas minhas aulas, ao longo do tempo. Foi preciso impor bastante autodisciplina para terminar num tempo aceitável para todos. A Lição obrigou-me a repensar, muito para além do meu próprio percurso, na evolução da Economia da Energia como um ramo da Economia Aplicada com relações fundamentais, complexas e sofisticadas com as restantes áreas da Ciência Económica e em estreita relação com outras áreas científicas. Mas é, no seu scope e nas metodologias que utiliza, Ciência Económica. Senti-me, de novo, entusiasmada com os desafios que se levantam. E de novo, muito emocionada e grata por ver que, por fim, após tantos e tantos anos de luta para convencer a minha Escola da importância da Economia da Energia e da Economia dos Recursos Naturais, em geral, havia agora jovens colegas a trabalhar na área, vários doutorados, mestres e licenciados da FEP, em várias instituições e empresas, a nível nacional e internacional. Valeu a pena nunca ter desistido de trazer, para a minha Escola, a minha experiência e contactos nas grandes Escolas e Centros de Investigação com quem colaborei regularmente, em projetos de investigação e em programas de doutoramento, desde que me doutorara em 1986.
Quais foram as aprendizagens mais significativas que fez ao longo destes anos de percurso profissional e também de ensino?
O meu percurso até agora foi feito de experiências muito diversas e ricas, que, frequentemente, envolveram elevados custos pessoais e familiares. O meu foco foi sempre estar em contacto e aprender com académicos, investigadores, Escolas de referência e, no plano profissional, com os agentes no terreno. Nem sempre foi fácil, mas persisti, tentando preservar o espírito crítico. Tanto a nível da Academia como da Consultoria procurei fazer sempre o melhor que sabia e podia, não traindo os Princípios que sempre nortearam a minha vida. Também nunca tive ambições políticas ou a elas ligada. Claro que tal me prejudicou, muitas vezes, em termos de projeção de carreira para outros voos. Mas não é mérito meu: sou naturalmente assim e bastante adversa à exposição pública. Da minha vida profissional e académica, procurei aprender, e também valorizar, a importância da empatia, da intuição e da resiliência.
Consegue identificar 2 ou 3 marcos, na sua carreira profissional, que tenham sido mais relevantes para si?
Em primeiro lugar, logo no início do meu doutoramento (Doctorat D’Etat-ès-Sciences Economiques) no BETA – Bureau d’Economie Theorique et Appliqué, da Universidade Louis Pasteur de Strasbourg, tive o privilégio de privar com o Professor Georgescu-Roegen, fundador da Economia Ecológica e autor de uma obra que tinha sido decisiva para mim: “The Entropy Law and the Economic Process”. Jovem bolseira, tive a sorte de acompanhar os últimos meses do Prof. Georgescu-Roegen como Professor Convidado no BETA. Foi uma revelação! Até então, eu ainda não tinha muito claro o quadro mental em que iria desenvolver a minha tese de doutoramento. Na época, tratava-se de um pensamento inovador, já que, partindo da segunda lei da Termodinâmica, ele passava à degradação dos recursos naturais (não renováveis) e criticava, de forma consistente, os economistas liberais neoclássicos. Ficou célebre a sua Teoria do Decrescimento Económico. Mais tarde, já a partir da década de (19)90, destaco as diversas reuniões de trabalho com o Prof. Paul Joskow, do MIT Center for Energy and Environmental Policy Research, do qual viria a ser diretor. Neste caso, a minha aprendizagem, na área do funcionamento dos mercados, em especial dos mercados de eletricidade e da regulação, aumentou exponencialmente. A sua perspetiva complementava e, se possível, desafiava, uma visão mais europeia, decorrente dos meus contactos com a escola inglesa de David Newbery. Finalmente, um marco importantíssimo para mim, não só a nível da Energia, mas das indústrias de rede, foi o convite para integrar o REFORM GROUP, no início dos anos 90, e que se mantém, embora com geometria variável, e que agrega investigadores internacionais na área das indústrias de rede. É evidente que hoje já pertenço ao grupo dos seniores, alguns dos quais também professores eméritos - o tempo não perdoa!
Pode falar-nos um pouco do trabalho que desenvolveu no centro de investigação em Economia e Finanças (cef.Up), unidade de investigação onde estava integrada?
O cef.Up agrega projetos e investigadores de grande mérito. Além dos projetos em curso, o cef.up constitui um apoio fundamental para os Programas de Doutoramento em Economia e em Gestão, e desenvolve intensa atividade científica de divulgação. Sempre me senti muito bem enquadrada no centro, com muito apoio, mesmo quando não tinha projetos específicos da FCT sob a minha direta responsabilidade. Nos últimos anos, o cef.up ganhou maturidade e capacidade de gestão. Atualmente, sou responsável por dois projetos: “HyGreen&LowEmissions - Tackling Climate Change Impacts: the role of Green Hydrogen production, storage and use, together with low emissions energy systems” e “Impact of COVID-19 lockdown measures on mobility, air pollution and macroeconomic indicators in Portugal: a Machine Learning Approach”. Ambos em parceria com a FEUP.
Fez carreira no meio empresarial enquanto consultora de entidades nacionais e internacionais, tais como o Governo de Portugal, o Banco Mundial, a Comissão Europeia, a Agência Reguladora dos Serviços Energéticos de Portugal, para referenciar algumas. Que balanço retira desta experiência?
Tão rica e diversa! Quer pelas áreas concretas, quer pelas entidades envolvidas. O denominador comum é que nunca é fácil lidar e trabalhar com equipas envolvendo diferentes formações académicas e institucionais. Mas, talvez, as experiências mais complexas – e enriquecedoras em termos de conhecimento do comportamento humano –, tenham sido as que envolveram mais diretamente interesses empresariais ou políticos. Aprendi muito sobre como o mundo realmente funciona. E, tanto as experiências nacionais como as internacionais, apesar de coisas em comum, têm sempre traços diferenciadores, por vezes surpreendentes. A nossa capacidade diplomática é frequentemente posta à prova! Por vezes, tive o caminho um pouco facilitado, por dominar bem 4 idiomas além da língua materna e de ter vivido períodos mais ou menos longos em França, na Alemanha e nos EUA. Em equipas internacionais, com sensibilidades muito diferentes, tal pode constituir uma ajuda preciosa!
O que tem a dizer sobre o facto de estarmos a lidar com um contexto pós-pandémico, efeitos de um conflito militar em território europeu, uma crise energética e um período de inflação, e sobre como tal está a condicionar os esforços de transição energética, que se sabe serem absolutamente necessários?
Esta tempestade, já longa e, arriscaria o adjetivo, perfeita, está a por à prova a capacidade de gerir económica e politicamente o processo de descarbonização. Até porque estão envolvidos custos económicos e sociais elevados e difíceis de gerir, e uma mudança radical, não só na estratégia, mas principalmente, na forma como encaramos o funcionamento da economia e do próprio processo (e até conceito) de desenvolvimento. Os problemas são de uma magnitude inimaginável, principalmente para os países mais pobres e com problemas estruturais mais graves. Depois do lockdown das economias, imposto pelo COVID-19 e a subsequente disrupção nas cadeias de abastecimento mundiais, esta crise que tudo contagia, porque a energia está na base da economia, tem tido efeitos devastadores. Mas, como bem sabemos pela História, é nestes momentos que se dão os grandes saltos, tanto do ponto de vista tecnológico, como da estrutura económica e social. A Europa tem feito um reajustamento das suas prioridades energéticas em tempo recorde, que passa não só pela questão das ações concretas, de uma maior independência energética direta, mas também dando prioridade à sua autonomia em termos de fornecimento de equipamentos e componentes ligados à energia. É esta, talvez, a parte menos visível e menos comentada nos media. É inequívoco que o risco geopolítico voltou, e de que maneira! E o modelo de globalização da economia está em profunda transformação. Mas, voltando à sua questão, apesar de numa fase transitória termos de recorrer ainda a fontes de energia que julgávamos ultrapassadas, pelo menos na maioria dos países da UE, a política de descarbonização ganhou, se possível, ainda mais força. Apesar do esforço financeiro e económico que tal implica, nestes anos de tantas dificuldades. É um processo de longo prazo, que não nos podemos dar ao luxo de menosprezar.
Portugal continua a reduzir as emissões de gases com efeito de estufa, em parte graças a uma produção recorde de energia a partir de fontes renováveis. Podemos ficar descansados, ou esta narrativa pode desincentivar a suficiência energética?
Sem dúvida, é uma mais-valia. Mas o problema é muito mais amplo. A eficiência energética é prioritária e não basta um bom enquadramento legislativo. A capacidade de fiscalização e de intervenção efetiva (e punitiva) das entidades responsáveis é essencial, se queremos resultados. E os tribunais têm de funcionar em condições e a velocidades que não comprometam as boas intenções legislativas. Também uma política de mobilidade baseada no transporte público minimamente poluente/não-poluente não pode ser tímida. Reconheço que o caminho não é fácil, depois de tantos erros de política de transporte, e de tantos “elefantes brancos”.
As mudanças climáticas e a sustentabilidade estão a desafiar os sistemas de energia a novos níveis de inovação em termos tecnológicos. Será a tecnologia a solução para todos os problemas climáticos? Existirão outras soluções, e/ou talvez mais relevantes, a desenvolver a curto prazo?
Estou convencida que temos de viver com as alterações climáticas. A nossa obrigação é tudo fazer para mitigá-las. A forma como construímos e gerimos as nossas economias e o nosso comportamento estão sob o nosso controlo. E as economias mais ricas têm a maior responsabilidade e capacidade de pôr em prática modelos de desenvolvimento sustentáveis e de apoiar económica e financeiramente as economias mais frágeis. Nada se faz sem tecnologias inovadoras, mais sustentáveis em si mesmas, e promotoras dessa mesma sustentabilidade. Mas é apenas uma peça na engrenagem. O cerne da questão está na organização e funcionamento das economias, e nos planos estratégicos de desenvolvimento que envolvem as classes política, empresarial e sociedade em geral. E o movimento para a sustentabilidade tem de ser global, caso contrário não funciona, porque se vai traduzir em custos e capacidades competitivas em que, eventualmente, os melhor intencionados ficarão a perder. Estou convicta de que os compromissos internacionais que jogam, não tenhamos ilusões, na base dos interesses, são uma pedra fundamental no processo para uma sociedade mais sustentável. Até neste tema tudo mudou neste ano de guerra: a profunda alteração da geopolítica, e o desrespeito provocador dos compromissos internacionais, também afetam este percurso difícil.
Como cientista e com obra feita nas vertentes da Transição Energética e da Sustentabilidade, pela sua vocação e conhecimento, que apreciação faz do panorama científico português na sua área de investigação e em outras áreas, de um modo geral? Considera que a ciência é devidamente valorizada em Portugal?
Começo por responder à primeira parte da questão. Não me quero pronunciar criticamente sobre o panorama científico português em áreas que me transcendem. Seria irresponsabilidade minha. Na área em que trabalho, encontro muitas vezes uma muito significativa incapacidade dos avaliadores de identificar o tema dentro da área da Ciência Económica. Tal sempre me surpreendeu, já que participei em muitos projetos científicos financiados diretamente pela Comissão Europeia e grandes Escolas de Economia europeias. Algumas vezes, fiquei estupefacta com os argumentos, mas tal serviu de incentivo para reforçar a minha colaboração com grupos científicos internacionais de referência e continuar a trabalhar.
Hoje a situação está muito lentamente a alterar-se. Mas o termo “Economia da Energia” é frequentemente apropriado indevidamente. Contudo, regista-se um número crescente de investigadores de grande valor na área da Economia, que se têm vindo a impor através de publicações nas melhores revistas internacionais. E, na minha qualidade de Subject Editor de 5 delas, é sempre um enorme orgulho ver reconhecido internacionalmente o seu contributo nesta área da Ciência Económica. Finalmente, sobre “se a ciência é devidamente valorizada em Portugal”: o que se entende por valorizar? Atribuição de melhores condições? Estamos ainda longe. A definição clara e relativamente estável de prioridades estratégicas em Ciência e a formalização de colaborações internacionais regulares podem ser fundamentais na investigação em Economia e nas perspetivas de carreira (não gosto da palavra!) dos investigadores. Muito particularmente em tópicos menos tradicionais. Mas ser investigador é profissão de risco!
Como é que gostaria de ver Portugal, daqui a dez anos?
Maior coerência e menor volatilidade no desenho de políticas, e na sua implementação. Acabar de vez com esta mania nacional de querer estar sempre “no pelotão da frente” em tudo, pelo menos “no papel”, e muitas vezes sem coragem de definir prioridades. Isto é chocante quando analisamos, em detalhe, alguns documentos orientadores. Uma sociedade tem de ter ambição, mas também consciência de que os recursos são escassos e, portanto, há que tomar opções. Por vezes, fala-se demais e atua-se um pouco levianamente. Sejamos francos: o desenvolvimento faz-se com todos e para todos. Uma sociedade desequilibrada é uma bomba-relógio. Temos provado que somos excelentes a ultrapassar problemas e crises sucessivas, mas temos défice de bons gestores, de topo e a nível intermédio. Parece-me uma questão transversal à sociedade portuguesa. E, last but not least, gostaria de ver o meu país com mais autoestima e uma maior participação democrática da base ao topo.
Poderá consultar mais informações sobre a investigadora aqui.