Investigadores U.Porto

U.Porto Reitoria SIP
Jaime Cardoso
Faculdade de Engenharia da U.Porto (FEUP) / Instituto de Engenharia de Sistemas e Computadores, Tecnologia e Ciência (INESC TEC)

Um dos cientistas mais citados em inteligência artificial


Fale-nos um pouco sobre o seu percurso científico na U.Porto.
Comecei como bolseiro, em 1999, no INESC TEC, em projetos de inovação ligados à introdução de tecnologias ICT nos ambientes dos estúdios de televisão. Esta experiência deu-me um primeiro contacto com o processamento de imagem, na vertente de codificação e compressão, e motivou-me a enveredar, em 2001, por um doutoramento em análise de imagem/visão por computador. A compreensão automática do conteúdo da imagem surgiu como um tema cientificamente desafiante e com o potencial de possibilitar todo um novo conjunto de aplicações, mesmo na própria codificação de vídeo. Durante o doutoramento, tive a oportunidade de colaborar informalmente em análise de imagem médica aplicada ao cancro da mama, o que teve duas consequências muito positivas: motivou-me a aprofundar os meus conhecimentos de machine learning - frequentando o mestrado em engenharia matemática, na FCUP - e deu-me a conhecer a área de aplicação de análise de imagem médica - onde continuo a investigar até aos dias de hoje. Terminado o mestrado, em 2005, e o doutoramento, em 2006, tivemos a felicidade de conseguir ir consolidando um grupo de investigação em visão por computador e machine learning, que vai equilibrando a investigação em desafios fundamentais de análise de imagem com a especialização da análise de imagem em medicina, biometria, condução autónoma, entre outras. O meu percurso recente é o percurso do próprio grupo VCMI (https://vcmi.inesctec.pt/), das teses de mestrado que acolhemos, dos membros que se foram doutorando, dos colegas doutorados que ficaram no grupo, e dos que o foram integrando, contribuindo para a qualidade e visibilidade da investigação que fazemos.

Consegue identificar 2 ou 3 marcos, na sua carreira profissional, que tenham sido mais relevantes para si?
No ano em que terminei o doutoramento, em 2006, submeti duas propostas ao Concurso de Projetos de I&D em todos os domínios científicos da FCT, ambas como investigador principal, e tive a felicidade de ver ambas financiadas. Estes projetos deram-me folga financeira para iniciar e fazer crescer o grupo de investigação. Sem este financiamento, o percurso teria sido necessariamente diferente. Também nesse ano, consegui a colocação como professor auxiliar convidado no DEEC/FEUP. Esta posição permitiu-me ficar a ensinar e a investigar, tarefas que me preenchem e se complementam, e deu-me uma estabilidade a longo prazo, fundamental para a investigação de qualidade e construção de equipas. Em paralelo com tudo isto, a colaboração, que começou informal, na análise de imagem médica (no cancro da mama), com a Profª Maria João Cardoso, foi-se consolidando em vários projetos financiados nacionais e europeus, resultou em inúmeras publicações científicas, e deu (e continua a dar) grande visibilidade à atividade do grupo.

Numa lista* publicada em 2022, a mais recente atualização da World’s Top 2% Scientists list, faz parte dos 2% de investigadores mais citados do mundo e com maior impacto na sua área de investigação. O que considera que o levou a chegar até aqui?
Julgo que o sucesso (relativo) resulta de um equilíbrio (precário) entre a confiança necessária para acreditar que podemos ser tão bons quanto os melhores, e a humildade para reconhecer que temos de trabalhar muito para lá chegar. Julgo que a forma profissional e honesta como trabalhamos permitiu-nos construir uma reputação positiva (pelo menos localmente), e atrair, de forma regular, novos membros (mestrandos, doutorandos, investigadores) que também partilham a mesma cultura de trabalho. Esta visibilidade, local e nacional, foi também potenciando colaborações internacionais - elas próprias alavancas de mais e melhor investigação.

No seu currículo, conta com a participação em projetos e, em muitos deles, como investigador principal. Consegue identificar e falar-nos um pouco sobre aquele, ou aqueles, que considera terem tido um grande impacto na sociedade?
Os projetos do INESC TEC com a INCM (dos quais não fui IP, mas com os quais colaborei) resultaram em novos algoritmos de reconhecimento de impressões digitais, hoje em dia presentes nos nossos cartões do cidadão (https://noticias.up.pt/cartao-do-cidadao-tem-algoritmo-inesc-tec/). Foi de fato gratificante ver a ‘nossa’ tecnologia a ser usada diariamente. Os projetos na análise da avaliação estética do tratamento ao cancro da mama resultaram em algoritmos e aplicações de software que são usados por dezenas de grupos de investigação, um pouco por todo o mundo (Austrália, USA, China, etc.), para apoiar a sua própria investigação clínica. Sentimos que estamos a ajudar, por pouco que seja, a melhorar o serviço prestado a estes doentes e a sua qualidade de vida pós-cirurgia.

Liderou o Centro de Telecomunicações e Multimédia (CTM) no INESC TEC e, em particular, o Breast Research Group. Tendo em conta a tendência crescente de novos casos de cancro da mama em Portugal, qual é, para si, o papel da investigação na compreensão da doença, sua prevenção e tratamento?
De facto, a investigação pode estar, e tem estado, presente em diferentes fases do processo de gestão do cancro da mama, desde a fase de estudo e compreensão da doença, passando pelo seu rastreio e diagnóstico, planeamento cirúrgico, reabilitação, e análise de qualidade de vida da doente pós-cirurgia. Em 2007, eu e a Profª Maria João Cardoso criamos o Breast Research Group por compreendermos a necessidade de abordar a investigação médica de uma forma multidisciplinar e conscientes de que a formação de equipas multidisciplinares é a abordagem de sucesso para fazer investigação. Na altura, escrevemos que “A prática da Medicina está cada vez mais dependente da tecnologia. A introdução de sistemas tecnológicos para monitorizar funções fisiológicas e assistir no diagnóstico ou no tratamento de pacientes tem contribuído decisivamente para o avanço verificado na área médica. A recolha, tratamento, análise e comunicação de dados médicos depende da capacidade de gerir e usar as tecnologias instaladas. A implementação de novas soluções tem de ser planeada por equipas interdisciplinares, constituídas por especialistas com competências científicas diversas.” O crescimento e centralidade atual da IA apenas veio reforçar esta visão, transversal à investigação e prática da medicina.

O uso de imagem médica como suporte ao diagnóstico do cancro da mama já faz parte da prática clínica há bastante tempo, mas a caraterização completa do tumor ainda é uma tarefa desafiante. Quais considera serem os desafios de investigação e as principais contribuições da inteligência artificial na mudança da forma de ver e estudar as imagens?
Considero que a integração da informação será um desafio central. Existem cada vez mais dispositivos médicos para obter informação sobre o tumor e a doença, mas cada um deles apenas fornece informação parcial. A capacidade de raciocinar a partir destes dados complementares mas não estruturados, muitas vezes incompletos e com erros, e de combinar os dados específicos do doente com dados populacionais do subgrupo onde o paciente se insere, ainda está longe de ser devidamente realizada pela IA. A IA, ao automatizar a procura do que é relevante na imagem e a construção destes modelos de decisão, permite acelerar o desenvolvimento de soluções automáticas, construídas sobre base de dados de uma escala impensável há alguns anos atrás.

Pensa-se que os modelos de inteligência artificial vão continuar a melhorar, à medida que a capacidade de computação for crescendo. Atualmente existem modelos com milhares de variáveis, capazes de produzir resultados verdadeiramente surpreendentes. Na sua opinião, onde é que o impacto vai ser mais determinante e transformador?
Talvez exista alguma simplificação dos desafios quando afirmamos que é apenas uma questão da capacidade de computação. Não é, de todo, claro que o paradigma de IA atualmente mais em voga (deep learning) nos permita continuar a evoluir na nossa compreensão da inteligência artificial. É verdade que existem resultados surpreendentes, mas alguns dos erros deste modelos não são menos surpreendentes. Atualmente, as aplicações onde o erro é tolerável, ou com elevado controlo sobre a aquisição dos dados, são as candidatas a mais beneficiarem de IA. Aplicações críticas, como a condução e o diagnóstico médico, continuam a ter o decisor humano no loop.

Os temas de investigação ao qual se tem dedicado assentam em três grandes domínios: visão computacional, machine learning, e sistemas de suporte à decisão. Que desafios futuros prevê nestas temáticas, num mundo que caminha rumo à sustentabilidade e conectividade de informação?
Estas ‘tecnologias’ podem contribuir de uma forma clara para uma maior sustentabilidade e transparência de processos. Mas os desafios são muitos e variados, alguns ainda mal compreendidos. O desenvolvimento destes algoritmos profundos requere, ele próprio, enormes quantidades de energia e recursos computacionais apenas ao alcance de alguns. É, por isso, ele próprio promotor de assimetrias/injustiças, e fonte de (in)sustentabilidade energética. A falta de controlo sobre os dados usados para construir os modelos, a opacidade dos modelos, a ausência de uma modelação adequada da incerteza (ignorância) dos modelos, trazem ao de cima questões relacionadas com a privacidade, transparência das decisões, confiança, etc. A área cresceu muito, e depressa. Julgo que precisa agora de alguma ‘autoanálise’ para melhor compreender as suas próprias limitações (técnicas, mas não só), o impacto nas nossas vidas, e redefinir objetivos.

Como cientista, que apreciação faz do panorama científico português na sua área de investigação e em outras áreas, de um modo geral? Considera que a ciência é devidamente valorizada em Portugal?
Julgo que, nestes 20 anos que levo de trabalho na área, passamos de um certo amadorismo e descontextualização, no panorama internacional, para uma investigação profissional, inserida e reconhecida internacionalmente (talvez ainda não o suficiente, talvez ainda ‘apenas’ na Europa). A ciência tem tido cada vez mais visibilidade, e os acontecimentos recentes acabaram por promover essa valorização da ciência. Mas, para que todos nós beneficiemos mais e mais do valor produzido pela nossa ciência, é essencial melhorar a colaboração da academia com a indústria, assente em mecanismos ágeis, que promovam uma continuidade do fluxo de conhecimento. Criar um ecossistema, onde a academia e a indústria convivam, promove não só a aplicação do conhecimento produzido, mas promove também mais e melhor ciência.

A adoção de novas tecnologias digitais, processos de automação e inteligência artificial está a tornar-se parte da nova realidade, num mundo pós-COVID-19, e irá moldar o futuro próximo. Na sua opinião, como se posiciona Portugal, face a outros países, na digitalização, que é quase uma nova revolução, e na automatização?
Não tenho dados suficiente para uma resposta completa. Mas julgo que Portugal, em áreas específicas, pode ser um líder a nível europeu. Estas áreas tanto podem ser área de especialização de IA, como processamento de linguagem natural, visão por computador e edge AI, ou áreas interdisciplinares de aplicação, como a saúde. Em algumas destas áreas, Portugal beneficia de uma oferta formativa de elevado nível, investigadores com reconhecimento internacional, e empresas de sucesso. O talento está cá - temos o dever de encontrar forma de o rentabilizar.



Poderá consultar mais informações sobre o investigador aqui.




* Ioannidis, J.P.A. (2022), “September 2022 data-update for "Updated science-wide author databases of standardized citation indicators"”, Mendeley Data, V5, doi: 10.17632/btchxktzyw.5

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