Investigadores U.Porto

U.Porto Reitoria SIP
José Carlos Brito
Associação Biopólis (BIOPOLIS) / Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos (CIBIO-InBIO)

Liderou diversas expedições científicas ao Saara-Sael e Península Arábica


Fale-nos um pouco sobre o seu percurso científico na U.Porto.
Após completar o doutoramento na Universidade de Lisboa em 2003, cheguei ao CIBIO/U.Porto como Investigador de Pós-doutoramento com o intuito de liderar investigação científica em desertos. Ao longo dos últimos 20 anos de atividade na U.Porto, usufruí de bolsas de pós-doutoramento, contratos Ciência 2008, Investigador FCT, CEEC Individual, e atualmente tenho um contrato como Investigador Principal no âmbito do programa CEECINST da FCT.
Em 2010 criei o grupo de investigação BIODESERTS – Biodiversidade de Desertos e Regiões Áridas no CIBIO/U.Porto, o qual tem fundamentado as atividades de investigação. Neste contexto, tive a oportunidade de orientar 15 teses de doutoramento e 27 teses de mestrado desenvolvidas tanto na U.Porto como em Universidades estrangeiras, assim como liderar ou participar em cerca de 20 projetos científicos e contratos de investigação, quase sempre no âmbito da investigação em desertos. Durante os últimos 20 anos, participei em mais de 40 expedições científicas ao Norte de África e Península Arábica, tendo realizado trabalho de campo em mais de 10 países, acumulando um total de 1.200 dias de trabalho de campo e quase 300.000 quilómetros percorridos em ambientes desérticos. A experiência acumulada ao serviço da U.Porto ao longo de 20 anos tem sido altamente gratificante, criando-me as condições para explorar ambientes únicos e proporcionando-me uma carreira repleta de experiências e aventuras.

Consegue identificar 2 ou 3 marcos na sua carreira profissional mais relevantes para si?
Os três marcos mais relevantes para mim foram:
1) a atribuição, em 2004, de uma bolsa de investigação da National Geographic, integrada no conjunto das três bolsas atribuídas pela primeira vez a portugueses. Essa bolsa permitiu-me fazer uma dupla travessia do Saara, primeiro de norte para sul passando pela Tunísia, Líbia e Níger e, depois, de sul para norte passando pelo Senegal, Mauritânia e Marrocos. Foram cerca de 20.000 quilómetros, percorridos ao longo de 104 dias, através das areias e montanhas do Saara, numa única viatura e acompanhado por um único colega. Essa expedição permitiu-me a recolha de um vasto conjunto de amostras de répteis em locais de muito difícil acesso e também alavancar o início das atividades de investigação na U.Porto para as décadas seguintes.
2) a atribuição, em 2008, de uma segunda bolsa de investigação da National Geographic, desta vez relacionada com a investigação sobre a distribuição e variabilidade genética em população isoladas de crocodilos na Mauritânia. Esta bolsa permitiu-me consolidar as atividades de investigação em desertos e fundamentar aquilo que seriam cerca de 20 anos de investigação na Mauritânia, relacionada com diversos aspetos da biologia de anfíbios, répteis e mamíferos.
3) o início de vários projetos científicos na Arábia Saudita em 2022, os quais permitiram, simultaneamente, expandir as atividades de investigação para a Península Arábica e consolidar a posição do grupo BIODESERTS como uma referência internacional na investigação em desertos, e mesmo, até um certo nível, fechar o ciclo de investigação no Norte de África e começar um novo na Península Arábica.

Tem especial interesse nas Ciências Biológicas, e em particular, na Conservação da Biodiversidade. O que o levou a escolher esta área como área de estudo e profissão?
Enquanto estudante de licenciatura, na década de 90, tive a oportunidade de ler vários livros sobre Biologia da Conservação escritos ou editados pelo biólogo Michael Ellman Soulé. Estes livros, nomeadamente o Conservation Biology: An Evolutionary-Ecological Perspective, Conservation and Evolution, e Viable Populations for Conservation, tiveram uma influência muito grande nos meus interesses em Biologia e ajudaram-me a fortalecer o interesse na área da Biologia da Conservação. No entanto, os interesses tanto pelas Ciências Biológicas como pela conservação da biodiversidade nasceram 20 anos antes, como resposta ao impacto da série documental O Homem e a Terra, realizada por Félix Rodríguez de la Fuente, emitida no final da década de 70. Numa época em que a televisão era praticamente o único canal de contato com o mundo exterior, estes documentários ajudaram a despertar uma curiosidade enorme pelo mundo natural. O acentuar das atividades humanas no fim do século XX, com impactos crescentes nas espécies e habitats naturais levou-me a procurar desenvolver uma carreira profissional consagrada à Biologia da Conservação.

A sua atividade de investigação tem uma forte componente de trabalho de campo. Tem alguma história curiosa que queira partilhar?
São inúmeras as histórias acumuladas durante o trabalho de campo! Escolho uma em particular pela relevância concetual em como visualizamos o mundo. No decurso de uma das expedições à Mauritânia em conjunto com um aluno de doutoramento mauritano, várias vezes expressava-me na forma: “quando chegarmos ao local X faremos isto ou aquilo”, ao qual a resposta do estudante surgia sempre na forma “se chegarmos ao local X faremos isto ou aquilo”. Ou seja, enquanto para nós, humanos residentes em zonas temperadas, (quase) tudo é dado como adquirido e seguro, para a grande maioria dos habitantes das zonas intertropicais, pouco ou quase nada está garantido. Esta pequena subtileza na formulação das ideias tem, portanto, um impacto tremendo na forma de estar e atuar. Embora seja um pequeníssimo detalhe, são aspetos que ajudam a construir a personalidade e a relativizar as aspirações e desejos diários.

O Saara-Sahel tem experimentado recentes e fortes oscilações climáticas que mudaram muito a distribuição da biodiversidade e a composição da comunidade. Tendo comandado 24 expedições científicas ao Sahara-Sahel qual a sua posição sobre esta questão em concreto, e qual a visão que tem sobre outros múltiplos problemas que afetam a região?
Todos os países do Saara-Sael são nações em desenvolvimento e a maioria deles está classificada como Reduzido Desenvolvimento Humano pelas Nações Unidas; vários estão entre os 40 países com maior subfinanciamento para a conservação da biodiversidade a nível global (p.ex. Argélia, Mauritânia, Marrocos e Sudão). Atualmente, estes países carecem dos recursos e capacidades e, em alguns casos, do compromisso político para executar as mudanças estruturais necessárias para reverter a atual situação. A assistência para aliviar as pressões humanas que poderia ser fornecida pelas ONGs está ausente e, quando existe, é amplamente subfinanciada. A combinação de baixos recursos económicos, falta de perspetivas de desenvolvimento social e fraca aplicação dos direitos humanos estimulam a migração humana. Por exemplo, a Argélia, a Mauritânia e o Chade estão entre os cinco principais países a nível global incapazes de reter os melhores talentos, e a fuga de cérebros priva-os dos recursos humanos necessários para conduzir e implementar mudanças. A má governança e os altos níveis de corrupção são sistémicos nos países do Saara-Sael, o que contribui para a destruição ambiental e a falta de responsabilidade social. A circulação descontrolada de armas de fogo no Saara-Sael também sustenta os crescentes níveis de conflito. Dadas as rápidas taxas de crescimento populacional e as sociedades etnicamente fracionadas que caraterizam os países do Saara-Sael, é fortemente expetável que as secas cíclicas e as futuras adversidades relacionadas com as alterações climáticas venham a aumentar os conflitos regionais e a perda adicional de biodiversidade.

No seu currículo, conta com a participação em projetos, muitos deles, como Investigador Principal. Pode falar-nos um pouco sobre alguns dos projetos financiados. Quais as suas temáticas e principais objetivos?
Os projetos que liderei em desertos e regiões áridas enquadram-se em três temáticas: 1) Avaliar os padrões de distribuição da biodiversidade através do mapeamento das áreas de distribuição de determinados grupos taxonómicos e de hotspots de biodiversidade, e da identificação de fatores ambientais relacionados com a distribuição da biodiversidade; 2) Compreender os processos evolutivos e paisagísticos através da identificação de relações filogenéticas em espécies do deserto, da avaliação de padrões filogeográficos e de mecanismos de diversificação, e da identificação de estruturas populacionais e barreiras geográficas na paisagem ao fluxo génico e conetividade populacional; e 3) Contribuir para o planeamento da conservação através da identificação de espécies ameaçadas, determinação de unidades de conservação genética, e da simulação dos efeitos das alterações climáticas na distribuição da biodiversidade em desertos.
No decurso dos projetos de investigação tenho a preocupação em assegurar que os resultados podem ser usados como diretrizes para fundamentar políticas de conservação, tais como: 1) proporcionar a transferência de tecnologia para países em desenvolvimento, por meio da partilha de conhecimentos, tecnologias e ferramentas metodológicas desenvolvidas para otimizar a conservação da biodiversidade; 2) promover a capacitação local, fortalecendo as capacidades e competências de estudantes e investigadores de forma a promover a conservação da biodiversidade e atitudes ambientalmente amigáveis; e 3) promover a divulgação científica na sociedade civil, por meio da consciencialização sobre a importância cultural, económica e ecológica da biodiversidade e dos serviços de ecossistema.

O que destaca como mais relevante, nos últimos anos, ao nível da biodiversidade, ecologia e conservação em Portugal, sejam políticas ou iniciativas de organizações?
Provavelmente o passo político mais importante para a conservação de natureza em Portugal terá sido a promulgação, em 2018, da Estratégia Nacional de Conservação da Natureza e Biodiversidade (ENCNB) para 2030. O documento reconhece que a valorização económica da biodiversidade e dos serviços dos ecossistemas são ativos estratégicos essenciais para a coesão territorial, social e intergeracional, e estabelece como grandes prioridades a melhoria do estado de conservação do património natural, a promoção dos valores do património natural, e a aproximação da sociedade aos valores naturais e da biodiversidade.
No âmbito da U.Porto destaco o BIOPOLIS, dado que é o maior projeto português na área da Biologia Ambiental, Ecossistemas e Biodiversidade. Este projeto permitirá avançar a compreensão biológica dos genes aos ecossistemas e usar esse conhecimento para enfrentar os desafios societais prementes nas áreas de meio ambiente, biodiversidade e agricultura. No que respeita à conservação da natureza, o projeto BIOPOLIS irá desenvolver soluções para os desafios da sociedade, abordando os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável 2030 das Nações Unidas, promover o uso sustentável da biodiversidade e dos ecossistemas para reduzir a pobreza, e aumentar as oportunidades de crescimento económico. Simultaneamente, o projeto BIOPOLIS pretende aumentar a valorização da ciência, da biodiversidade e dos ecossistemas pela sociedade como um todo, consciencializando-a sobre os vínculos entre a gestão baseada no conhecimento dos sistemas socioecológicos, o desenvolvimento socioeconómico sustentável, e a saúde e bem-estar humanos.

Na sua opinião, quais serão os maiores desafios para Portugal cumprir a Estratégia Europeia de Biodiversidade?
A Estratégia de Biodiversidade da União Europeia para 2030 estabelece como prioridades transformar pelo menos 30 % das terras e dos mares da Europa em áreas protegidas, restaurar os ecossistemas degradados que se encontrem em mau estado, e ainda permitir o reconhecimento da UE como líder internacional em termos de proteção da biodiversidade. Portugal apresenta tanto responsabilidades como debilidades acrescidas por vários fatores. Primeiro, se a parte terrestre está razoavelmente bem protegida, a zona marinha sob administração portuguesa tem dimensões consideráveis, o que implicará um esforço acrescido para a designação adicional de áreas protegidas. Por outro lado, a gestão da parte continental apresenta vulnerabilidades às alterações climáticas, como fogos e secas de grande impacto. Segundo, o país apresenta níveis de degradação assinaláveis resultantes de décadas de ausência de uma política florestal consistente, traduzida em áreas assinaláveis de produção monoflorestal (eucalipto e pinheiro) com prejuízos para os habitats naturais. Por outro lado, os níveis de degradação dos solos no Sul do país são muito consideráveis, resultantes de décadas de corte sistemático do bosque natural para dar a lugar a monoculturas cerealíferas, tornando a região vulnerável às alterações climáticas. Finalmente, o reduzido investimento na capacitação científica, agravado por crises económicas ou falta de visão política sobre o papel da ciência na construção de sociedades mais eficientes e justas, levanta também desafios consideráveis para atingir as metas da estratégia europeia. Se é verdade que os instrumentos políticos estão disponíveis, como a ENCNB, também é verdade que é necessária mais determinação para implementar os objetivos destas estratégias.

Com o pós-pandemia de COVID-19, a guerra Russo-Ucraniana e a espiral inflacionária que se tem registado, quais os desafios relacionados com a ciência e inovação que, na sua opinião, a investigação enfrentará nos próximos anos?
As pressões societais que se têm observado nos últimos anos colocam desafios gigantescos à promoção da saúde e bem-estar humano, assim como à conservação da biodiversidade. No entanto, a história mostra que os períodos mais complexos e com dificuldades acrescidas, correspondem também a oportunidades para as sociedades se recriarem e reinventarem, adotando políticas e comportamentos que permitem ultrapassar os obstáculos existentes. Neste sentido, recorro de novo ao exemplo do projeto BIOPOLIS, o qual nasceu no atual complexo contexto mundial. O projeto está alicerçado na atração de investigadores talentosos e no alinhar da investigação com os desafios societais e estratégias de especialização inteligente, o qual permitirá estabelecer um forte programa de afiliados e outros mecanismos para promover a tradução de investigação e inovação em aplicações e oportunidades de negócio. Desenvolver as capacidades humanas e logísticas em investigação e inovação de excelência, formar investigadores e profissionais e promover a transferência de conhecimento, estabelecer plataformas de investigação colaborativa de ponta onde as melhores instalações e equipamentos estão disponíveis para investigadores, spin-offs e start-ups e parceiros industriais, são cruciais para fomentar os níveis de excelência em Portugal e promover o desenvolvimento socioeconómico sustentável. Permaneço confiante de que a obstaculização do contexto global será ultrapassável se existir visão e vontade para desenvolver estratégias de capacitação, inovação e crescimento alinhadas com os objetivos de desenvolvimento sustentável, sabiamente estabelecidos pelas Nações Unidas.

Como é que gostaria de ver Portugal daqui a dez anos?
Em dez anos, ou num horizonte temporal mais dilatado, gostaria de ver Portugal como um país que investiu de forma sólida na educação científica e cultural, e na saúde. No meu entender estes são os pilares para criar sociedades simultaneamente mais exigentes e mais criativas e, portanto, são os elementos necessários para efetivar mudanças e atingir objetivos de desenvolvimento. A inteligência e a criatividade são caraterísticas humanas que geram oportunidade de mudança e por isso a educação e a saúde terão que estar na raiz de qualquer meta de desenvolvimento social. A grande incógnita reside, portanto, na forma como alocaremos nos próximos anos os recursos disponíveis, tanto nacionais como internacionais, para estes setores.
 





Poderá consultar mais informações sobre o investigador aqui.

 Copyright 2023 © Serviço de Investigação e Projetos da Universidade do Porto.
Todos os direitos reservados.