Investigadores U.Porto

U.Porto Reitoria SIP
Maria Raquel Guimarães
Faculdade de Direito da U.Porto (FDUP) / Centro de Investigação Jurídica (CIJ)

Diretora da primeira Revista Jurídica Portuguesa online (RED)


Fale-nos um pouco do seu percurso científico na U.Porto e do que a levou a escolher o Direito como área de estudo e profissão.
Ingressei na U.Porto em setembro de 1997, como assistente, no terceiro ano letivo da, à época, recém-criada licenciatura em Direito, a convite do Doutor Jorge Ribeiro de Faria, que integrava a Comissão Instaladora da nova Faculdade. Comecei a dar aulas práticas da disciplina de Teoria Geral do Direito Civil, no segundo ano letivo do segundo curso de licenciatura, com a Doutora Maria Regina Redinha, numa parceria que se mantém até hoje, em variadíssimos projetos. Tinha já entregue a minha tese de mestrado em Ciências Jurídico-Empresariais, em Coimbra, sobre transferências eletrónicas de fundos, e aguardava as provas públicas da sua defesa. Licenciei-me na Universidade Católica do Porto em 1992, cinco anos antes de arrancar o curso na U.Porto. Sempre encarei o curso de Direito como uma formação clássica, como um modo de estruturar o pensamento, e não tanto na perspetiva prática de seguir uma profissão jurídica. Nunca equacionei uma carreira na magistratura ou na advocacia. Pouco tempo depois de entrar na FDUP, e ainda assistente, fui vice-presidente do Conselho Diretivo da FDUP, sendo Diretor o Doutor Cândido da Agra. Foram anos muito divertidos — e criativos, com várias colaborações com as Belas Artes —, em que todos os dias surgiam situações e problemas novos, exigindo grande capacidade de improvisação. A defesa da tese de doutoramento, sobre o contrato-quadro no âmbito da utilização de meios de pagamento eletrónicos, ocorreu em junho de 2010, tendo, então, sido contratada como professora auxiliar.

Consegue identificar 2 ou 3 marcos, na sua carreira profissional, que tenham sido mais relevantes para si?
Talvez o próprio ingresso na U.Porto, que me abriu as portas de uma carreira universitária, seja o primeiro marco a assinalar. Aqui me foi dada a oportunidade de estudar, de ensinar e de integrar um grupo de Colegas com quem gosto de trabalhar. Um outro aspeto, para mim muito relevante, já no que respeita ao trabalho que fui desenvolvendo ao longo dos anos, foi o reconhecimento prático desse trabalho pelos tribunais, a sensação de ser útil, e de poder contribuir, ainda que numa escala mínima, para a solução de problemas concretos. Num outro plano, de divulgação e internacionalização do trabalho de investigação dos outros, diria que a conceção, lançamento e direção da RED (Revista Eletrónica de Direito) foi e é para mim muito gratificante. Foi um projeto pioneiro, na medida em que se tratou da primeira revista jurídica portuguesa online, de acesso livre e com peer review, algo com muita pouca tradição no Direito, sobretudo, no Direito nacional do ano de 2013. A RED é, desde então, publicada três vezes por ano e chega aos quatro cantos do mundo, sendo já uma referência para os juristas.

Pode falar-nos do trabalho que tem desenvolvido no Centro de Investigação Jurídica (CIJ), e sobre o contributo que pretende, com este trabalho, deixar para a sociedade?
O CIJ iniciou a sua atividade com a coordenação entusiástica da Doutora Glória Teixeira em 1999, e eu tive a sorte de integrar os primeiros projetos aí desenvolvidos. Acabei por ser uma das co-coordenadoras da Unidade de Investigação, durante a coordenação da Doutora Maria Regina Redinha, de 2016 a 2021. A nossa ideia foi sempre a de desenvolver projetos inovadores, abrir a Unidade de Investigação a jovens investigadores — nomeadamente, estudantes de mestrado —, e internacionalizar a investigação, cativando investigadores estrangeiros através de residências de investigação. Assim aconteceu logo em 2016, com um projeto sobre a economia colaborativa, então emergente, que trouxe ao Porto grandes especialistas no tema, nomeadamente da área laboral, e culminou em várias publicações internacionais. Mais recentemente tenho que salientar o projeto Street Art — Direito à cidade, no qual procuramos estudar o fenómeno dos graffiti e da arte urbana, juntando investigadores das áreas da propriedade intelectual, Direito Civil e Penal, Criminologia, Economia, artistas urbanos e graffiters... O CIJ está sediado em plena rota dos graffiters e o desenvolvimento deste tipo de intervenção urbana e de “ocupação” do espaço público sempre nos pareceu merecedor de um estudo mais profundo. Juntamos o Direito à arte transgressiva e criamos ligações muitíssimo interessantes com a comunidade dos graffiters. Ultimamente, temos também desenvolvido a área do Direito Digital, muito com a colaboração dos alunos de mestrado, que têm investigado estes novos temas, e com a parceria da Universidade Complutense de Madrid, numa série de conferências. O nosso objetivo último é sempre tentar contribuir para uma melhor compreensão da realidade que nos rodeia e para a resolução de problemas práticos.

No seu currículo, e ao longo da sua carreira, esteve envolvida em projetos de investigação com entidades/ instituições espanholas. Num contexto de investigação cada vez mais multidisciplinar e em cooperação, que diferenças genéricas podemos encontrar entre as universidades portuguesas e espanholas?
A grande diferença ao nível da investigação que é levada a cabo pelas universidades dos dois países é essencialmente “administrativa”, e não tanto substantiva. Ou seja: a investigação em Espanha é feita mediante a constituição ad hoc de grupos de investigadores que elaboram um projeto e o submetem diretamente ao apoio do Ministério competente. A investigação não é realizada através de unidades de investigação e não passa tanto, nessa medida, pelas faculdades de acolhimento, como acontece entre nós. Os investigadores principais dos projetos subsidiados atuam de uma forma independente. Pelo menos na área do Direito, a investigação não está tão institucionalizada, deixando maior liberdade para a constituição de equipas de investigadores de diferentes faculdades e para a integração também de estrangeiros. A investigação, assim realizada, é depois tida em conta para a avaliação individual dos investigadores envolvidos, não havendo todo o processo de avaliação e de financiamento dos centros, como ocorre periodicamente em Portugal.

Como vê, hoje, o ensino do Direito?
O ensino do Direito, hoje, depara-se com a dificuldade de conciliar a grande especialização de muitas áreas, como as áreas empresariais, económicas, fiscais, do consumo, das novas tecnologias e do cibercrime, e a formação jurídica de base, troncal, que tem de ser assegurada para que o edifício do Direito assente em alicerces sólidos. Isto, num mundo cada vez mais globalizado, em que o nosso espaço já não é só Portugal, mas sim a Europa, e em que as fronteiras físicas do Direito não impedem que os problemas se coloquem à escala mundial, como acontece com as questões ambientais. As faculdades de Direito têm que assegurar que os seus alunos aprendem a pensar e sabem adaptar os quadros que lhes são ensinados a novas situações, ou que têm os conhecimentos que lhes permitem criar novos quadros ajustados à realidade quando os instrumentos tradicionais deixam de dar respostas satisfatórias aos problemas colocados. É impossível abranger todas as áreas emergentes e aprofundar áreas muito complexas ao nível da licenciatura. A formação especializada deverá ser disponibilizada a um nível pós-graduado, tendo em conta necessidades específicas, que vão sendo ditadas pela prática.

A evolução exponencial das tecnologias de informação e a quantidade de dados gerados, de forma estruturada e não estruturada, estão hoje a criar novos e constantes desafios, nomeadamente ao nível da cibersegurança e da proteção de dados. Como avalia o panorama nacional?
Confesso que estou bastante apreensiva com os passos que têm sido ensaiados no nosso país em matéria de proteção de dados e de tutela da pessoa no mundo digital. Veja-se a proposta inicialmente apresentada quanto à utilização de IA pelas forças e serviços de segurança, da iniciativa do Governo, e que veio a culminar na Lei n.º 95/2021, de 29 de Dezembro, que regula a utilização e o acesso pelas forças e serviços de segurança a sistemas de videovigilância para captação, gravação e tratamento de imagem e som. A proposta de Lei, que acabou por ser bastante alterada e amputada, sobretudo no que contende com a utilização de IA, previa o alargamento da utilização de sistemas de videovigilância sem a necessária definição de um regime legal suficientemente densificado e das respetivas salvaguardas, como teve necessidade de lembrar a CNPD. Em causa estavam sistemas de videovigilância em espaços públicos e privados, através de câmaras fixas e câmaras portáteis, designadamente drones e bodycams. Previa-se, em termos genéricos, a utilização de tecnologia com um grande potencial de lesão dos direitos de personalidade dos visados sem delimitar de forma precisa os termos dessa utilização e sem a restringir a determinadas finalidades da videovigilância. Por outro lado, veja-se o disposto na versão inicial da Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital, Lei n.º 27/2021, de 17 de Maio, em matéria de “proteção contra a desinformação”, que acabou por ser revogado este Verão, onde o Estado assumia a tarefa de definição da verdade e da sua separação face às “narrativas comprovadamente falsas ou enganadoras”. Devemos estar muito atentos a este tipo de iniciativas, e nunca dar os nossos direitos por garantidos.

As ondas de choque da Covid-19 provavelmente serão sentidas durante muitos anos. Quais os desafios relacionados com a ciência e inovação que, na sua opinião, a investigação enfrentará nos próximos anos?
Eu não destacaria tanto, na minha área, os desafios relacionados com a ciência e a inovação que a pandemia desencadeou. Eu diria que, para o Direito, as “ondas de choque” da Covid-19 foram assinaláveis e, eventualmente, irreversíveis. As restrições do direito à liberdade impostas por razões sanitárias, a digitalização forçada, o teletrabalho, o homeschooling e o ensino à distância, entre outras realidades, levaram a um repensar de muitas soluções jurídicas. Relativamente a estes fenómenos de migração para o mundo digital, não está apenas em causa a perda de privacidade dos afetados, mas é a própria conceção de privacidade — as fronteiras entre o espaço público e o espaço de reserva privada — que é reequacionada, com o “esventrar” dos lugares mais íntimos do “lar” e a captação e divulgação da imagem sem precedentes. Recentemente, eu e a minha colega Regina Redinha tivemos a oportunidade de publicar um estudo, ainda introdutório, sobre o tema, onde constatávamos que a compressão dos direitos de personalidade em tempos de crise nunca é seguida da sua reexpansão ulterior. Há sempre algo que se perde e que não se volta a ganhar e, com esta pandemia, perdemos, desde logo, privacidade, que nunca recuperaremos. Não se trata só de alguns encararem entusiasticamente aplicações móveis de localização bem-intencionadas, mas sim de um “despudor” mais profundo em frente de um ecrã, e que leva, por exemplo, à aceitação generalizada da utilização de câmaras de filmar. O que acaba por ter repercussões importantes em muitas áreas, como, por exemplo, a laboral. Mais uma vez, cabe ao Direito estar alerta e não baixar a guarda na sua missão primeira de proteção da pessoa.

Que apreciação faz do panorama científico português na sua área, e de uma forma geral?
A investigação jurídica realizada em Portugal é, quase sempre, de altíssimo nível, de grande profundidade, com um carácter internacional e muitas vezes comparativo, dada a pequena dimensão do país e a exiguidade das fontes disponíveis, diferentemente do que acontece em países de maior dimensão. Essa qualidade é reconhecida pelos pares internacionais, sempre que a “barreira linguística” é ultrapassada, e nos países de língua portuguesa. O Direito de um país está intimamente ligado à língua nacional e nem todas as áreas do Direito permitem a investigação numa “língua franca” como o inglês. Assim, o Direito, tal como acontece com algumas outras ciências sociais e humanas e com as artes, dificilmente se adapta às regras bibliométricas e de avaliação de desempenho científico adotadas pelas ciências exatas, não obstante a sua progressiva e irreversível imposição aos juristas. E, nessa medida, é por vezes difícil dar visibilidade ao trabalho que fazemos, bem como é difícil mostrar o impacto prático da nossa investigação, na medida em que não são tidos em conta parâmetros como a influência da nossa atividade na aplicação do direito pelos tribunais, por exemplo. E, como sabemos, não basta fazer um bom trabalho; é preciso demonstrar que o fazemos.


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