Investigadores U.Porto

U.Porto Reitoria SIP
Marisa Matias
Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto (FPCEUP) / Centro de Psicologia da Universidade do Porto (CPUP)

Coordenadora do projeto RESET e membro da equipa UP Igualdade


Fale-nos um pouco sobre a sua trajetória profissional. Como chegou ao ponto onde hoje se encontra?
O meu percurso profissional foi, desde logo, ligado à investigação. Embora tenha tido algumas experiências profissionais na área da psicologia clínica e na formação profissional, o meu percurso na U.Porto e, mais propriamente, na FPCEUP, começou em 2003, enquanto assistente de investigação num projeto Europeu que se dedicava ao tema da conciliação do trabalho com a vida pessoal. Após este projeto, outros se seguiram, sempre com o pano de fundo dos temas da conciliação e da igualdade de género. Fiz o mestrado, doutoramento e pós-doutoramento nestas áreas da psicologia: género e relações trabalho-família. Tenho, por isso, um percurso sobretudo ligado à investigação. A docência esteve também presente neste trajeto, mas de forma mais pontual. Atualmente, e desde 2018, sou professora auxiliar na FPCEUP.

Consegue identificar 2 ou 3 marcos, na sua carreira profissional, que tenham sido mais relevantes para si?
Um marco muito importante foi, precisamente, o início do meu percurso como investigadora, no dito projeto Europeu (designado Famwork) e sob coordenação da professora Anne Marie Fontaine. Foi neste projeto, e com a professora Anne Marie, que descobri o meu entusiasmo pela investigação, e que desenvolvi uma forma mais crítica de olhar o mundo e questionar a realidade. Um outro marco foi a entrada na carreira docente na FPCEUP, sobretudo pelo que isso espelhou, em termos de concretização, de um longo investimento e comprometimento com uma área de estudo. O percurso profissional na investigação, embora estimulante, é pautado por extrema competitividade e por grande precariedade; ainda é na carreira docente que se alcança estabilidade. Conseguimos uma bolsa ou projeto, e passamos uma boa parte do tempo dessa bolsa a desenhar e submeter novos projetos a financiamento, ao invés de dedicar tempo ao que temos em curso. Questionei-me, por isso, em várias vezes ao longo dos anos, se valeria a pena esta teimosia em concorrer a mais um projeto, a mais uma bolsa - que, no fundo, iam prolongando esta precaridade. Sem dúvida, a entrada na carreira docente trouxe uma visão com futuro à investigação que pretendo desenvolver. No entanto, o que tem acontecido nos últimos 4 anos é que esta carreira, com a sua exigência de docência e de gestão institucional, têm limitado a minha capacidade de produção científica e de angariação de financiamento, o que torna muito desafiante a conciliação destas duas identidades profissionais, de docente e investigadora. Como terceiro marco, destaco a angariação de financiamento para o projeto RESET; não só pela competitividade da call, e por ter surgido precisamente no início da minha carreira como docente mas, sobretudo, porque é um projeto com uma grande ambição - a de transformar práticas, e promover uma cultura de maior igualdade na nossa universidade.

Qual o seu papel no âmbito do projeto H2020 RESET - Redesigning Equality and Scientific Excellence Together? Como entende a experiência da sua candidatura, e até ao momento de implementação do projeto?
Sou a coordenadora científica do projeto na U.Porto, e coordenadora do Work Package 1. Este WP é um programa de trabalhos central no projeto, pois corresponde ao desenhar, implementar e transversalizar dos Planos para a Igualdade de Género nas diferentes universidades parceiras. De todas as candidaturas se podem retirar aprendizagens, e esta não foi diferente. Conseguimos financiamento à 2ª tentativa, e foi evidente que um fator decisivo para este sucesso foi o apoio e assessoria das estruturas de investigação, e da entidade avaliadora. A ideia estava lá na 1ª candidatura, e a parceria, embora com algumas alterações, era semelhante à da 1ª tentativa; mas a forma como a ideia foi apresentada e construída foi bastante diferente. É crucial o papel dos serviços de apoio à investigação na preparação das candidaturas, e as ligações a entidades com conhecimento especializado do funcionamento de cada call. Um aspeto relacionado com o projeto, que é bastante benéfico para a sua implementação, é a estrutura da parceria, que inclui parceiros mentores e parceiros de implementação; isto é, alguns parceiros já têm experiência e prática com a implementação de planos de igualdade de género - de, pelo menos, uma década - e outros parceiros, como a U.Porto, estão a implementar o seu primeiro plano. Esta dinâmica tem sido muito importante para se atingirem os ambiciosos objetivos de transformação institucional.

No âmbito do projeto RESET, a U.Porto desenvolveu o seu Plano de Igualdade de Género: 'UP Igualdade'. Pode falar-nos de como foi o processo de construção deste GEP, e o que implicou em termos de envolvimento de serviços e atores da U.Porto? Considera que o UP Igualdade beneficiou de diferentes equipas e multidisciplinaridade?
A U.Porto já havia iniciado o seu caminho para a construção de um plano de igualdade de género, com iniciativas como o GIA.UP e o programa Conciliação4UPorto. O projeto RESET alavancou nestes esforços e aportou recursos para que, de forma sistemática e integrada, se propusessem ações em diferentes áreas. O plano, se o consultarem, verão que propõe medidas em diferentes esferas de atuação da U.Porto e que toca em toda a sua estrutura. Por esse motivo, e porque a mudança só se alcança com a implicação dos seus alvos, não poderia ter sido desenhado sem o envolvimento alargado da comunidade U.Porto. Foram envolvidos diferentes serviços centrais, mas também as diferentes unidades orgânicas, com o apoio valioso do GEB – Gender Equality Board. Este conselho é constituído por representantes de todas as faculdades, serviços de ação social, serviços de Recursos Humanos, serviços de apoio jurídico, comissão de trabalhadores e representantes da FAP e equipa reitoral.

A U.Porto reconhece que a qualidade e a excelência dependem de politicas mais inclusivas focadas na igualdade de género, na diversidade e não-discriminação baseada no género. Pode falar-nos sobre o que entende ser o trajeto percorrido pela U.Porto nos últimos anos, em matérias de igualdade de género e inclusão da diversidade, e quais são os passos futuros a dar a nível institucional?
A necessidade de se promoverem ambientes profissionais mais inclusivos e igualitários não é recente, e, portanto, a U.Porto já tem vindo a desenvolver esforços neste sentido. Considero o caminho da U.Porto bastante positivo, mas ainda numa fase inicial. São exemplos deste percurso, para além dos projetos que referi na pergunta anterior, as ações que diferentes faculdades têm vindo a desenvolver neste âmbito, muitas delas também dinamizadas pela comunidade estudantil. Agora, tanto estas iniciativas como o próprio plano UP Igualdade vão encontrando resistências, desde logo, quando não se reconhece esta área como área prioritária para intervenção e/ou não se compreendem os benefícios que um plano desta natureza pode acarretar. O caminho a trilhar passa por isso, e em primeiro lugar, pelo assumir deste tema como pilar da ação da universidade, criando, por isso, estruturas como um Gabinete para a Igualdade e Diversidade, à semelhança do que outras universidades possuem, formalizando um conselho consultivo para o tema da igualdade e diversidade, e pela criação de sistemas de registo de informação que permitam monitorizar os impactos das ações previstas no plano. Também medidas mais afirmativas, como a promoção da representação igualitária de género na constituição de listas a cargos de liderança e de tomada de decisão, ou a integração da perspetiva de género na ação investigadora e docente, são essenciais para se promover e alargar os efeitos da mudança. Note-se que, para as candidaturas Europeias, é fator de avaliação das candidaturas o grau em que a perspetiva de género é integrada nas candidaturas; portanto, estas medidas promovem ambientes mais inclusivos e igualitários, e permitem alcançar os objetivos de excelência que a universidade ambiciona.

Há quem afirme que ainda há um longo caminho a percorrer em Portugal no que se relaciona com a igualdade de género. Na sua opinião, quais são os maiores desafios para que haja igualdade de género no trabalho, hoje? Ainda podemos falar de um mundo de homens, ou é um equívoco?
Os desafios são muitos. Não desmerecendo o trabalho que tem vindo a ser feito, em particular nos últimos anos, para aumentar a representação feminina na liderança corporativa, por exemplo, o mundo do trabalho é ainda pensado de forma “masculina”. Criar condições para que todas as pessoas possam aceder a cargos de liderança nas organizações implica mudar a estrutura e as culturas organizacionais. Isto é, a questão da igualdade e inclusão não se esgota numa representação equilibrada de género. Um exemplo concreto: na U.Porto, no nosso diagnóstico, evidenciamos o que já se esperava - isto é, que há menos mulheres em cargos de liderança (nos órgãos de governo, no conselho geral, no senado, como diretoras de Unidades Orgânicas, etc.) - mas evidenciamos, também, que elas são menos encorajadas do que eles a ocupar estes cargos; que elas, mais do que eles, identificam a maternidade como obstáculo à sua nomeação para cargos de gestão; e que eles, numa proporção muito superior, têm expectativa de vir a conseguir um cargo de liderança. Portanto, as estruturas do mundo de trabalho precisam urgentemente de ser redefinidas, e a área da liderança é só um dos exemplos. Poderia ainda salientar que se, por um lado, temos uma alta taxa de participação das mulheres no mercado de trabalho - destacando-nos dos congéneres europeus nas taxas de participação das mulheres com filhos e que trabalham a tempo inteiro -, por outro, a segregação sexual das profissões e das escolhas vocacionais - com mais mulheres nas áreas sociais, educação e saúde -, a par do gap salarial, mostram esse caminho ainda a percorrer. Um outro aspeto relevante é o facto de muitos dos enviesamentos serem inconscientes e subtis. Por exemplo, nas cartas de recomendação, algo comum na academia, a escolha de objetivos para descrever as características de homens e mulheres são muito distintas. As mulheres são descritas com adjetivos relacionados às suas capacidades de relacionamento, por exemplo, enquanto que para os homens se usam adjetivos mais focados na sua iniciativa, capacidade de decisão, etc. Outro enviesamento, por exemplo, é quando, numa situação de recrutamento, as mulheres tendem a concorrer somente quando julgam cumprir todos os requisitos do anúncio, enquanto um homem concorre mesmo que só cumpra uma parte. Até ao momento, pouco trabalho tem sido feito para identificar e desmontar estes vieses. Um outro grande desafio é o de promover a igualdade e inclusão com uma visão ampla do modo como diferentes categorias sociais se relacionam, isto é, para além do género, considerarmos questões de identidade e expressão de género, orientação sexual, etnia, idade, etc. E, neste aspeto, as ações e, consequentemente, a mudança são ainda mais limitadas.

Considera que tem havido alterações na forma como os portugueses e as portuguesas estão a conciliar a sua vida profissional, familiar e pessoal? Poderá identificar, se aplicável, em que aspetos melhorou, e em que aspetos piorou este cenário.
Sem dúvida que houve alterações, motivadas sobretudo pela situação pandémica que vivemos e que “deixou a nu” o grande desafio da articulação trabalho-família das famílias portuguesas. Todos os indicadores que temos é que esta articulação piorou durante a pandemia, sobrecarregando as famílias e, sobretudo, as mulheres, que continuam a ser as principais responsáveis pela prestação de cuidados - aos filhos, a outros dependentes, etc. Portugal melhorou a sua posição global no índice Europeu para a Igualdade de Género; no entanto, uma das áreas de pior desempenho é a área relativa à partilha de tempo nas tarefas domésticas. Isto é, a discrepância entre homens e mulheres é maior. Temos um país a duas velocidades, com avanços no mercado de trabalho para a promoção de maior igualdade de género, mas, no domínio da família e da prestação dos cuidados, ainda há um fosso no tempo e nos níveis de sobrecarga e pressão que penalizam as mulheres. A pandemia piorou os índices de conflito entre o trabalho e a vida pessoal, especialmente das mulheres, e penalizou mais os empregos destas. Agora, a pandemia trouxe uma “normalização” do trabalho remoto, e esta pode ser uma via para facilitar a articulação trabalho-família. Contudo, ao que também assistimos durante a pandemia, foi o esbater por completo das fronteiras entre os domínios do trabalho e da vida familiar e pessoal, com consequência negativas para as pessoas, para as famílias e também para as instituições. É importante perceber esta e outras alternativas (flexibilidade de horários, etc.) no contexto da cultura organizacional, e é nessa linha que um plano para a igualdade pode contribuir, com medidas claras, mas também com sinais claros, de comprometimento das instituições com o bem-estar e inclusão de todas as pessoas.

Dado o contexto atual em que vivemos, e o impacto da pandemia COVID-19, quais os desafios futuros que identifica para a investigação?
É inequívoco o impacto da pandemia em todas as áreas da nossa vida. O que vivenciamos mostrou ainda que são os grupos mais vulneráveis na sociedade os que mais são afetados por estes eventos. Enquanto investigadora numa área com implicações sociais muito claras, julgo que este acontecimento reforçou a importância de as políticas públicas assentarem em evidências científicas. Portanto, eu diria que um dos grandes desafios será o de sermos capazes de traduzir a ciência que produzimos. Ora, esta transferência do conhecimento e esta devolução social da investigação não se contabiliza na maioria dos rankings, fatores de impacto, nem em outras métricas comumente usadas para se aferir o mérito científico. Penso, por isso, que um grande desafio para a comunidade científica é também o de repensar a sua organização à volta deste tipo de parâmetros.

Na sua opinião, qual/quais o(s) principal(ais) passos ou políticas que o país deve adotar para ser uma referência europeia em termos de investigação na área da igualdade de género e conciliação laboral e pessoal?
Reforço que temos estado a trilhar um bom caminho, e um indicador é o progresso que temos feito no índice de igualdade de género que é todos os anos publicado pelo EIGE (Instituto Europeu para a Igualdade de Género). Temos em curso várias medidas e políticas, previstas no âmbito da Estratégia Nacional para a Igualdade e a Não Discriminação (ENIND), que são muito positivas. A área das licenças de parentalidade, por exemplo, é uma área onde se alcançaram bons indicadores, com cada vez mais homens a partilhar e usufruir destas licenças. Mas a prestação de cuidados não se esgota na parentalidade, e a área dos cuidados a idosos e outros dependentes ao longo da vida precisa de uma política pública clara e afirmativa, que inclua uma rede de estruturas de apoio ao cuidado de dependentes. Agora, as mudanças não se fazem por decreto e, portanto, importa que as instituições façam a sua parte e concretizem estes esforços, promovendo locais de trabalho mais igualitários e inclusivos. Isto é positivo para todas as pessoas e para as próprias organizações. Uma instituição com uma imagem de inclusão e igualdade é uma instituição atraente para se trabalhar. Recomendar que as instituições - desde logo as públicas, mas também as restantes -desenhem e implementem um Plano para a Igualdade e Diversidade seria uma excelente medida para transversalizar esta preocupação em todos os setores da sociedade.

Por fim, sendo uma jovem investigadora, que conselhos gostaria de deixar a quem a lê, do ponto de vista da liderança e da ação para a mudança?
Não tanto um conselho, mas uma mensagem chave, seria a de que uma sociedade mais justa tem de assentar em igualdade de género e inclusão. Instituições que promovam a inclusão e a diversidade só têm a ganhar em termos de talento, ideias e criatividade. A mudança passa, também, por estarmos atentas ao ambiente em que nos inserimos, aos fatores que promovem ou não a inclusão, e percebermos, na nossa ação investigativa, em que medida podemos contribuir para este fim.



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