Investigadores U.Porto

U.Porto Reitoria SIP
Paulo Correia de Sá
Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar da Universidade do Porto (ICBAS) / Centro de Investigação Farmacológica e Inovação Medicamentosa (MedInUP)

Mais de 20 anos de investigação na área de Farmacologia e Neurobiologia


Fale-nos um pouco sobre o seu percurso científico na U.Porto e o que levou a escolher a área de Farmacologia como área de estudo e profissão.
A vontade de saber mais em prol do conhecimento capaz de ajudar as pessoas foi sempre um objetivo de vida. A primeira decisão relevante foi entre o curso de Educação Física no antigo ISEF, natural para quem se tinha dedicado ao desporto a vida toda, e o curso de Medicina no ICBAS, por sinal as duas instituições que partilhavam (em 1982) o antigo edifício Abel Salazar. Admitido no curso de Medicina do ICBAS, logo percebi que estava no sítio certo para desenvolver o que tanto ansiava, devido à multidisciplinaridade dos primeiros anos do curso e ao contacto com professores ecléticos com formações muito diversas e, cuja atividade pedagógica era alicerçada sobre bases sólidas de conhecimento e investigação biomédica. Tive a “sorte” de entrar com o pé direito no curso e de ter bom aproveitamento escolar. Chegado ao 3º ano (ano de barreira antes das Clínicas no HGSA) surgiu a 2ª decisão relevante que marcou decisivamente o meu percurso. Escolher entre os convites para trabalhar com o Professor Joaquim Alexandre Ribeiro (professor convidado de Farmacologia do ICBAS e Diretor do Laboratório de Farmacologia do Instituto Gulbenkian de Ciência - IGC em Oeiras) ou com o Professor Mário Arala Chaves, Diretor do Laboratório de Imunologia do ICBAS, hoje com o seu nome. A opção foi por “ordem de chegada”, não sem antes ter tido uma conversa amistosa com o Professor de Imunologia, que me deixou completamente à vontade para tomar a minha decisão e de quem me viria a tornar grande amigo, confidente (nas longas viagens de e para Ovar, onde vivíamos) e que veio por obra do destino a tornar-se o meu primeiro diretor no recém-criado Departamento de Imuno-Fisiologia e Farmacologia, onde comecei como monitor de Farmacologia no 5º ano do curso.

Consegue identificar 2 ou 3 marcos, na sua carreira profissional, que tenham sido mais relevantes para si?
Conforme referido antes, a primeira grande decisão foi a escolha do curso de Medicina. Não tinha exatamente a noção no que me viria a meter, mas volvidos estes anos tomaria hoje a mesma decisão (deixando a atividade desportiva para 2º plano). A segunda grande decisão foi o desafio de ir para Oeiras trabalhar com o Professor Alexandre Ribeiro na área da Farmacologia e Neurociências. Foi uma decisão pensada e não muito difícil de tomar, já que tinha alojamento disponível em Oeiras (em casa de familiares, tias paternas) capaz de suportar os verões (Agosto a Outubro) a trabalhar no IGC, onde aprendi as bases de tudo o que sei hoje e que viriam a ter grande importância na minha carreira. A terceira decisão maior foi, já doutorado (desde 1995), o abandono da carreira hospitalar no Serviço de Ortopedia e Traumatologia do Centro Hospitalar de V.N. de Gaia (em 2000) para ingressar exclusivamente na vida académica como Professor Auxiliar de Farmacologia. Quis o destino que viesse a substituir o Professor Arala Chaves (infelizmente falecido precocemente) na Direção do Departamento de Imuno-Fisiologia e Farmacologia do ICBAS, cargo que ocupei durante 19 anos consecutivos.

Como membro e ex-presidente da Direção e da Assembleia Geral Sociedade Portuguesa de Farmacologia, qual a sua opinião sobre o papel desta sociedade científica na teia de relações entre faculdades / unidades de investigação e a comunidade?
Cresci como médico e investigador no seio da Sociedade Portuguesa de Farmacologia (SPF). Fiz a primeira comunicação (oral) científica na SPF ainda como estudante do 5º ano de Medicina, à semelhança de tantos outros Farmacologistas do nosso país. A SPF é mais do que uma sociedade científica com mais de meio século de existência. Trata-se de um local em que se cultiva a amizade entre os colegas de profissão e se aprende a respeitar a experiência dos mais velhos. É, também, uma escola de Ciência, tal é o grau de exigência colocado na elaboração dos trabalhos científicos (incluindo o culto da correção linguística). É, ainda, o fórum de encontro por excelência entre investigadores académicos, clínicos e da indústria, bem como das agências reguladoras na área da Farmacologia e da Toxicologia em Portugal. Falta-nos, talvez, dar o salto para uma intervenção mais eficaz na comunidade, caso os principais intervenientes (e.g. comunicação social, governantes) pretendam elevar o nível de evidência científica para a tomada de decisões para patamares diferentes do conhecimento científico. Porém, nem sempre a evidência científica consegue vencer “crenças e opiniões” menos avalizadas, mas seguramente mais interessantes para alimentar certa comunicação social e os interesses de quem tem que gerir os destinos do país, de resto, como se tem visto no combate à pandemia Covid-19.

Conte-nos um pouco sobre os projetos financiados, atualmente em execução, nos quais participa ou lidera. Quais as suas temáticas e principais objetivos, e de que forma estes projetos se complementam?
Defendo com convicção o legado deixado do Professor Alexandre Ribeiro (felizmente ainda de boa saúde) em demonstrar que as purinas (ATP e adenosina) são moléculas sinalizadoras ancestrais capazes de regular as respostas das células a estímulos fisiológicos, mas que atingem níveis de relevância superiores em algumas doenças. No início dos anos 70 do século XX esta ideia era considerada paradoxal, já que as purinas são componentes essenciais de todas as células vivas e, por conseguinte, tornava-se difícil antever os mecanismos pelos quais seriam capazes de regular processos de sinalização intercelular. Na verdade, sabe-se hoje que a sinalização purinérgica tem maior número de graus de liberdade e de capacidade de ajuste fino comparativamente com outras moléculas sinalizadoras desenvolvidas através da evolução das espécies para esta finalidade, já que o seu efeito resulta da conjugação de vários fatores (vias de libertação, metabolismo extracelular e receção/transdução celular) coexistentes no microambiente local cuja variação depende não só da atividade celular, mas também do número e tipo de células existentes na vizinhança. Já muito se sabe do ponto de vista molecular sobre os vários componentes do sistema purinérgico. No entanto, a translação destes conceitos para a clínica tem tardado, em parte devido à facilidade na utilização de modelos animais. Ora, desde há cerca de 20 anos, a aposta do meu grupo de investigação no Laboratório de Farmacologia e Neurobiologia do ICBAS tem sido estreitar o conhecimento proporcionado pelos modelos animais e a biologia humana na área da sinalização purinérgica. Esta tarefa tem sido facilitada pela minha formação em Medicina e pelo excelente acolhimento que temos tido por parte dos hospitais de referência com quem trabalhamos, incluindo o Centro Hospitalar Universitário do Porto (Hospital Santo António), o Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia/Espinho, bem como da vasta rede de hospitais de referência a nível nacional para colheita de órgãos / tecidos para fins científicos, que de outra forma seriam desperdiçados. Esta rede de parcerias permitiu-nos constituir ao longo de quase duas décadas um banco de tecidos criopreservados e os correspondentes dados clínicos anonimizados para utilização científica, que nos permite ter esperança na consolidação da investigação nas nossas áreas de interesse científico, designadamente a regeneração óssea e da cartilagem, a hiperatividade da bexiga e a disfunção eréctil, as formas de epilepsia refratárias do adulto, a fibromialgia e a fibrose endomiocárdica tropical - esta última doença num projeto transacional recente em colaboração com investigadores moçambicanos da área onde esta doença é endémica.

No seu currículo é longa a lista de projetos em que esteve envolvido. Qual acredita ser o fator mais importante para ter sucesso na angariação de financiamento competitivo?
Na minha opinião, existem várias palavras-chave para o sucesso científico e, por conseguinte, na angariação de financiamento competitivo. À cabeça encontram-se sem dúvida a elevada exigência científica e objetividade. Seguidamente (talvez de forma menos consensual), será a dedicação de uma vida a uma temática científica com grande possibilidade de progressão e capacidade de translação (e.g. sinalização purinérgica no Homem). A focagem da nossa atividade numa temática concreta permite-nos conhecer muito bem o que se passa a nível internacional e granjear apoios, colaborações e reconhecimento além-fronteiras capaz de promover a visibilidade do nosso trabalho. Em terceiro lugar, deve haver um forte investimento em sofisticação metodológica e tecnologias dedicadas capazes de dar resposta às questões levantadas e que, simultaneamente, sejam diferenciadoras no panorama científico nacional e internacional. O Laboratório de Farmacologia e Neurobiologia do ICBAS passou de uma sala vazia (com apenas 2-3 equipamentos sobrantes de outros laboratórios) para um laboratório com equipamentos e valências técnicas pouco habituais no panorama nacional e, por vezes, existentes apenas nos grandes institutos internacionais. Este investimento foi realizado em contraciclo com a prática mais habitual (incentivada pelas agências financiadoras) que visa a implementação de metodologias menos dispendiosas, eventualmente com curvas de aprendizagem menos exigentes e com retorno mais fácil, e onde todos os equipamentos têm uma configuração partilhável em detrimento da sofisticação. Trata-se, na minha opinião, de um erro estratégico, que em parte pode ser explicado pelo desinvestimento na contratação e formação de pessoal técnico especializado (preferencialmente com grau de doutor) capaz de operar e desenvolver o uso desses equipamentos em detrimento da preferência pela contratação de pessoal docente e de investigação, cujos contratos a prazo são incompatíveis com o desenvolvimento e implementação de metodologias diferenciadoras.

Como Diretor do Laboratório de Farmacologia e Neurobiologia, pode falar-nos sobre o trabalho que têm vindo a desenvolver, e quais considera serem os maiores desafios para 2022?
Qualquer diretor de laboratório que conjuga as atividades académica, científica e de extensão universitária deve ter nas suas preocupações garantir que os recursos humanos que lhe estão adstritos, incluindo estudantes, docentes, técnicos e investigadores, tenham as condições necessárias para desenvolverem a sua atividade de forma sustentável, i.e., sem os solavancos habituais do financiamento científico no nosso país. Isto inclui capacidade para realizar a manutenção dos equipamentos e da infraestrutura, bem como a angariação de fundos para despesas correntes, de promoção e de investimento. Trata-se de um empreendimento que não pode/deve ser realizado individualmente mas sim por uma equipa coesa capaz de realizar trabalho conjunto na promoção do desenvolvimento do grupo, na conquista das metas científicas e na diversificação da angariação de fundos em prol do grupo e da infraestrutura como um todo. Nem sempre esta tem sido a tradição do nosso sistema científico, que privilegia as individualidades em detrimento dos grupos com alguma dimensão. Temos assistido a uma escassez na obtenção de financiamento através de fundos públicos (incluindo no apoio ao desenvolvimento das universidades), assim como à pulverização do financiamento de pequenos projetos sem cuidar de verificar a exequibilidade dos mesmos, a começar pela existência da disponibilidade dos equipamentos e infraestrutura necessários. O desafio é garantir que todos os intervenientes percebem que a contribuição para o bem comum permitirá melhorar as condições existentes, promover a competitividade do grupo e suprir em conjunto as oscilações habituais do financiamento disponível e, por conseguinte, a sua produtividade científica. A diversificação das fontes de financiamento e a prestação de serviços especializados constituem uma oportunidade para grupos com a dimensão do Laboratório de Farmacologia e Neurobiologia, mas também uma ameaça à produtividade científica se o grupo não for suficientemente robusto para ultrapassar os constrangimentos inerentes à realização de investigação de divulgação reservada e/ou protegida por propriedade intelectual.

Com um currículo consolidado na investigação, o que perspetiva para o futuro? Tem algum sonho profissional que gostaria de ver concretizado?
Do ponto de vista pessoal gostaria de ter a certeza de que o Laboratório de Farmacologia e Neurobiologia do ICBAS continuaria por muitos e bons anos a crescer e a desenvolver-se na cena académica e científica nacional e internacional. Para tal, tenho trabalhado na formação de inúmeros jovens ao nível de mestrado e doutoramento, alguns dos quais são já hoje uma realidade nos quadros do instituto. O sonho de qualquer investigador é que as suas descobertas possam ser úteis em prol do desenvolvimento da sociedade e, por maioria de razão neste caso, na promoção da saúde das populações. Para além da nossa contribuição para o conhecimento médico que está bem patente nos trabalhos publicados internacionalmente em revistas de elevada exigência editorial, ficaria muito feliz se os nossos trabalhos na área da regeneração óssea, das doenças do aparelho urinário inferior e das doenças neurológicas (e.g. epilepsia, miastenia gravis) resultassem em novas abordagens terapêuticas e/ou em biomarcadores de doença com translação direta para a clínica, tal como antevemos a partir dos ensaios pré-clínicos já realizados.

A grande maioria dos fármacos atualmente desenvolvidos pelas farmacêuticas têm problemas de solubilidade e/ou permeabilidade. Pode falar-nos um pouco sobre que possibilidades existem para o desenvolvimento e avanço no uso de fármacos, em Portugal e no mundo?
Não sendo uma área à qual me dedico, prefiro uma resposta breve. Tanto quanto sei estas limitações são habitualmente resolvidas através do desenvolvimento de farmacóforos mais simples mantendo ao local ativo e a atividade clínica ou através da conjugação de moléculas facilitadoras, algumas até com vantagens por favorecerem o direcionamento do fármaco para determinado território. Alternativamente, existem diversas vias de administração mais ou menos invasivas para entregar fármacos próximo ou diretamente nos locais de atuação, que podem ser úteis enquanto não se desenvolvem fármacos alternativos.

Dado o contexto atual em que vivemos e o impacto da pandemia COVID-19, a comunidade pede uma velocidade diferente ao ritmo usual da ciência. O que pode ser acelerado nos estudos e, por outro lado, que etapas não devem ser suprimidas?
Costumo dizer que a pressa é inimiga da perfeição. Tudo tem o seu tempo ótimo de desenvolvimento. Há etapas das fases do ensaio clínico que não se podem ultrapassar por várias razões, desde logo devido a questões de segurança, já que os efeitos (tóxicos) que se estão a monitorizar não se observam imediatamente ou têm fraca incidência na população. O mesmo é verdade para os “endpoints” relativos ao efeito terapêutico, que nem sempre aparecem tão rapidamente quanto se espera. Existe um enviesamento na analogia com o desenvolvimento das vacinas contra o SARS-CoV-2 em tempo acelerado, desde logo porque (1) grande parte dos laboratórios mundiais pararam a sua atividade para estudar o vírus e desenvolver a vacina, o que não me parece que seja razoável nos próximos tempos, já que muito trabalho ficou por fazer noutras áreas de pesquisa, para já não falar na escassez de recursos provocada pela canalização destes para a investigação do vírus e combate à pandemia; (2) por outro lado, admitia-se à partida uma elevada probabilidade de falhas na vacina e na pesquisa de novos medicamentos, tal como aconteceu nas pesquisas iniciais contra o cancro e a SIDA, desde logo por não se conhecer a fisiopatologia da doença e tolerar-se a possibilidade de reações adversas, que seriam inadmissíveis na pesquisa de novos medicamentos para doenças com algum tipo de tratamento já implementado; (3) a seleção dos indivíduos a testar foi relativamente simples, já que se tratava de escolher voluntários saudáveis, i.e. sem a complexidade de selecionar doentes em populações de baixa prevalência ou através da implementação de critérios / biomarcadores exigentes; (4) a metodologia para o desenvolvimento das vacinas com forte capacidade de variação sazonal já era conhecida e foi adaptada, demonstrando que a investigação de natureza fundamental continua a ter a sua relevância quando necessitamos de novas perspetivas de desenvolvimento.

Como cientista, que apreciação faz do panorama científico português na sua área de investigação, e em outras áreas de um modo geral? Considera que a ciência é devidamente valorizada em Portugal?
Quem deu os primeiros passos na ciência, nos anos 80 do século passado, jamais pode esquecer quão incipientes eram as condições para fazer investigação científica em Portugal, que era realizada maioritariamente por uma elite do meio académico que tinha tido alguma experiência internacional. Fora do meio académico e na área da Biomedicina, destacava-se o IGC em Oeiras, mercê do forte financiamento por parte do serviço de Ciência da Fundação Calouste Gulbenkian. A situação foi progressivamente melhorando no fim dos anos 80 e início dos anos 90, com a democratização do financiamento às universidades e laboratórios do estado, e posteriormente com o aparecimento dos laboratórios associados. Apesar dos constrangimentos e da pequena percentagem do PIB dedicada à Ciência num país com a nossa dimensão, pode dizer-se que em Portugal se desenvolve investigação científica de grande qualidade, capaz de ombrear com o que de melhor se faz no estrangeiro em determinadas áreas científicas, incluindo a Farmacologia e as Neurociências, às quais me tenho dedicado nos últimos 30 anos. Falta-nos desenvolver algumas áreas cientificas, garantir sustentabilidade no financiamento a longo prazo e voltar a incentivar a investigação em meio académico em prol da formação dos jovens que frequentam as nossas universidades. Existem hoje assimetrias inaceitáveis nos montantes de financiamento atribuídos à investigação académica / fundamental (verdadeiramente disruptiva e base de toda a inovação) e a investigação aplicada associada às empresas (algumas delas criadas na hora e de qualidade duvidosa); paradoxalmente, esta política exclui os hospitais-empresa na área da saúde onde de facto existem exemplos de investigação clínica de grande qualidade. Por último, uma palavra sobre como é que a Ciência é vista pela sociedade. Penso que é bastante valorizada, mercê dos últimos acontecimentos relacionados com a pandemia e devido a um esforço de divulgação científica por iniciativa das instituições de ciência e por parte dos órgãos de comunicação social desde há vários anos. Apesar disso, continuamos a assistir a uma relativa pouca profundidade e credibilidade na abordagem dos temas, havendo certamente margem para evoluir na formação dos jornalistas e divulgadores de ciência. Apesar destes esforços, a mensagem da importância da Ciência para a sociedade não parece passar para os órgãos de decisão, que têm por incumbência definir a política científica no nosso país, sendo que estes parecem ser bastante sensíveis a alguns “lobbies” de grupos bem instalados.




Poderá consultar mais informações e contactos na página pessoal do investigador, acessível aqui.

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