Investigadores U.Porto

U.Porto Reitoria SIP
Paulo Farinha Marques
Faculdade de Ciências da Universidade do Porto (FCUP) / Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos da Universidade do Porto (CIBIO-inBIO)

International Camellia Garden of Excellence, Coordenador e co-autor de projetos e obras recentes
Parque da Asprela, no Porto e Parque do Verdeal, em Sto.Tirso


Fale-nos um pouco sobre o seu percurso científico na U.Porto, e de quando e como surgiu o seu interesse pela arquitetura paisagista.
O meu interesse por arquitetura paisagista precede o meu percurso na U. Porto. Arquitetura paisagista foi a formação universitária que escolhi em primeiro lugar, quando ingressei no ensino superior. O que me atraía era o conhecimento abrangente que implicava e a possibilidade de desenhar, de participar na conceção de espaços de natureza para o uso humano. Foi o desejo de combinar arte e ecologia, muito motivado pela experiência que tinha nas minhas vivências de infância e adolescência em parques e jardins, como os jardins Gulbenkian (Lisboa) e as férias nos campos do Ribatejo. A estética e a dinâmica do mundo vivo sempre foram uma constante fonte de espanto e, neste âmbito, tenho obrigatoriamente que referir os programas televisivos “O Homem e a Terra”, de Felix Rodriguez de La Fuente; esta visão inovava retumbantemente a comunicação de conceitos de natureza, vida selvagem, paisagem cultural, significado local, até mesmo exultando uma nova estética dos espaços mediterrânicos, com a sua enorme diversidade, os seus gradientes o seu carater central na biodiversidade europeia. Esta nova narrativa, também acompanhada pela publicação de «Fauna – Vida e costumes dos animais selvagens», acendiam novas possibilidades de apreciação da nossa própria realidade, à distância de um passeio de bicicleta por olivais tradicionais, por alamedas de lódãos ou orlas ribeirinhas de álamos e freixiais. Esta vivência, e uma compulsiva tendência para desenhar, empurram-me pra o óbvio – a disciplina que conjuga o ordenamento e desenho do espaço vivo e dinâmico, um nicho de formação académica designado por «arquitetura paisagista». O percurso científico na U.Porto segue-se logicamente com a minha deslocação para o Porto, após a licenciatura no Instituto Superior de Agronomia (UL), o doutoramento no Reino Unido, e a participação no lançamento da formação académica em arquitetura paisagista na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro. Sempre acreditei e pugnei na importância de conjugar a prática profissional de arquitetura paisagista com a docência e reflexão académicas, convicção que ainda hoje me centra e orienta. É neste quadro que persisto, e ainda evoluo, tentando ligar a formação avançada em arquitetura paisagista com aspetos investigativos, nomeadamente ao nível da organização e desenho do espaço vivo e dinâmico, num contexto de oportunidade de uso humano em viabilidade, perpetuidade e consonância com o funcionamento dos sistemas naturais.

Consegue identificar 2 ou 3 marcos mais importantes na sua carreira profissional?
É fácil e difícil, dado o meu caráter algo intensivo e imersivo no envolvimento daquilo que faço. Posso indicar obviedades, como os espaços exteriores da Cidade Cooperativa da Prelada (Porto), o Plano de Ordenamento do Bom Jesus do Monte (Braga), a participação na Instrução da Candidatura do Alto Douro a Património Mundial,  o reordenamento e desenho do Terreiro de Tibães (Braga), o Jardim Silvestre da Faculdade de Ciências da U.Porto, os Parques da Asprela (Parque de Lamas e Parque Central da Asprela - Porto), intervenções de menor escala no Jardim Botânico do Porto (ex. Jardim dos Anões, as bordaduras da biodiversidade)… enfim, por aí. Estes trabalhos foram todos feitos em equipa, e por isso em coautoria; trabalho e concebo quase sempre em grupo - em arquitetura paisagista, uma arte social, sistémica, holística e multi-finalitária, nunca se trabalha sozinho.

O prémio Green Flag Award certifica a qualidade de manutenção e conservação dos parques e jardins de todo o mundo. Para si, como Diretor do Jardim Botânico do Porto, o que simboliza ter sido, por várias vezes, distinguido com o este prémio?
Gosto de prémios como todas as pessoas, mas confesso que não lhes dou muita atenção. Receber estes reconhecimentos tem a grande vantagem de fazer perceber como alguns grupos da sociedade estão atentos ao trabalho que se faz, e aos seus propósitos. No entanto, raramente estou verdadeiramente satisfeito com o resultado dos trabalhos em que participo;  a atividade projetual e de obra com o mundo vivo e dinâmico é muito exigente, e não responde com o efeito de compensação que normalmente se assiste noutras artes; no entanto, retenho algum vigor e motivação para continuar, insistir e procurar ir mais longe. Agilizar a proximidade da natureza com as populações humanas e facilitar essa interação em situações de conflitualidade controlada é um enorme desígnio. É este maravilhamento e a sua vivência que constitui o verdadeiro prémio.

Como membro integrado do grupo de Arquitetura Paisagista do Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos da Universidade do Porto (CIBIO - InBio) pode falar-nos sobre o trabalho que têm vindo a desenvolver, e qual o contributo do mesmo para a sociedade?
O trabalho que tenho vindo a desenvolver no âmbito do grupo de Arquitetura Paisagista do Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos da Universidade do Porto (CIBIO - InBio) centra-se na reflexão sobre a conceção de espaços promotores da biodiversidade espontânea e cultivada, articulada com a oportunidade e presença humana. Para isso, investigo exercitando a composição de mosaicos de habitats, ecológica e sensorialmente contrastantes, promotores da circulação e conservação in situ da água e do enriquecimento da matéria orgânica no solo; este programa - ambicioso, mas incontornável - é acompanhado por redes de circulação e pontos de estadia humana universalmente acessíveis, de modo a conseguir esse contacto privilegiado com o mundo vivo. Esta reflexão é especialmente relevante nos ecossistemas urbanos de alta densidade humana, com elevada grau de artificialidade e oportunidades reduzidas para a biodiversidade. Para atingir estes objetivos, temos desenvolvido alguma investigação complementar em biodiversidade urbana, na tipologia de espaços verdes urbanos e sua morfologia, e na identificação e caraterização dos habitats urbanos. Esta abordagem tem contribuído para montar uma visão sobre a estrutura verde urbana e sua conectividade num pressuposto de continuum naturale que sempre motivou e acompanhou o pensamento e a ação dos arquitetos paisagistas, praticamente desde o início da disciplina em Portugal, no início da década de 1940. São preocupações e questões que me acompanham desde a formação que recebi no ISA, Lisboa, na década de 1980, sobretudo pela influência reflexiva, sistémica e crítica de Manuel Sousa da Câmara; que no seu discurso professava o questionamento sistematizado, no qual o conhecimento objetivo e quantificado do metabolismo da paisagem, e das suas qualidades estéticas e sensoriais, explicavam e orientavam as respostas para questões sobre a organização e o desenho dos espaços exteriores. Nessa época, chamava-se a intervir tirando partido do conhecimento do funcionamento dos sistemas naturais; hoje, novas gírias sobressaem, talvez com o mesmo significado, como é o caso dos termos «serviços de ecossistemas», «soluções baseadas na natureza», ou abordagens «eco-sociais».

Como coordenador do projeto do novo Parque Central da Asprela – “pulmão verde” que liga agora várias faculdades, unidades de investigação e outros espaços da Universidade do Porto –, inaugurado no passado mês de março, pode falar-nos um pouco do seu processo criativo e metodologia de trabalho até alcançar o produto final?
A criação dos parques da Asprela começou há muito tempo (2010), com o projeto do parque da quinta de Lamas (Parque da Asprela nascente). O processo criativo seguiu uma racionalidade objetiva, orientada por um programa de intervenção definido em conjunto pela equipa projetista e por um distinto triunvirato, integrado pelo Vice-Reitor António Cardoso, o Diretor da FEUP, Sebastião Feyo de Azevedo, e o Diretor da FEP, João Proença. O programa base pressupunha a «re-naturalização» de um troço da ribeira encanada que corre junto à FEUP, a ligação entre a FEUP e a FEP com uma alameda, a criação de uma grande clareira para jogo de bola e a ligação de todos os espaços sobrantes das diversas intervenções edificadas a nascente, mais a integração de uma rua e estacionamento já previamente decididos com a Câmara Municipal do Porto. Cerzir e ligar estes espaços devolutos, cheios de lixo e invasoras, sem qualquer distinção, era o desafio. Ao mesmo tempo, percebeu-se a oportunidade de usar a área de intervenção, sobretudo no Parque da Alameda, para receção, estacionamento e infiltração das águas pluviais. Assim, de acordo com uma estrutura matricial baseada na modelo paisagista «clareira-orla-mata», criaram-se um conjunto de espaços em micro-bacias de tempestade, que pudessem otimizar a retenção das águas pluviais, podendo em tempo seco ser utilizadas para atividades de momento e jogo informal. Todo o processo criativo foi sempre participado por toda a equipa, riscando-se mesmo em conjunto, numa dinâmica iterativa, que só cessa com o fim da obra. O Parque Central da Asprela seguiu-se, com a estafeta da sua promoção agora nas mãos de Vice-reitor Rui Ramos, e com um programa mais ambicioso. Este inclui a integração da rede hidrográfica muito perturbada pelos aterros feitos durante as obras do metro, a resolução da hipotética cheia de 100 anos e o consequente problema da inundação do metro (fazendo com que a bacia do Leça descarregue para a bacia do Douro), a conservação do bosque paludoso existente, a criação de um edifício de restauração e a criação de oportunidades de desporto formal com um campo de jogos). Esta abordagem implicava ainda fazer com que o novo parque facilitasse a ligação entre vários pontos da malha urbana pela criação de uma rede de percursos pedonais e cicláveis de utilização fácil por todas as pessoas. Claro que toda esta ambição era acompanhada pelo que é mais caro à intervenção paisagística, isto é, a criação de uma estrutura verde dominada pelo estrato arbóreo - robusta, biodiversa, incluindo espécies autóctones e exóticas não invasoras, que, nas zonas novas do parque, possam celebrar a biodiversidade cultivada dos jardins do Porto. Também neste âmbito, a intervenção articula espaços abertos e espaços mais fechados, numa orgânica estimuladora da surpresa, da multiplicidade de vistas e de efeito imersivo na natureza, que ajudem o utilizador a desligar-se, a evadir-se dos espaços mais artificiais da cidade. No geral, podemos afirmar que idealizamos soluções em acordo com as pré-existências: o relevo, a circulação e a presença da água, o solo, a vegetação, as estruturas construídas, as referências, as histórias do lugar; tudo isso num contexto quase contraditório, em que a otimização da solução pela contenção de esforços e custos se confronta com a de maximização de oportunidades de vida e vivências, de cenários e de estimulações; há vários procedimentos sistematizados para atingir esses objetivos, como por exemplo, a busca da concordância topográfica e fisiográfica, a não exportação de volumes de escavação nem importação de volumes de aterro, a adequação ecológica com o metabolismo em presença, a potenciação dos valores herdados e o recurso a traçados e materiais robustos, duradouros, que passem para além da contingência do imediato. Pretende-se, portanto, criar uma nova paisagem viável a médio e longo prazo, com algum sentido de laço e continuidade com a paisagem anterior.
A metodologia de projeto segue um procedimento convencional, com três etapas exploratórias principais: levantamento, análise, proposta; a estabilização e decisão da proposta e, de seguida, um processo iterativo, mais ou menos convulso, consoante as circunstâncias de adequação ao programa e às vivências do momento. Importa referir as muitas vicissitudes, perturbações e indefinições, mais relacionadas com funcionalidades, ou disfuncionalidades, da governança das coisas, do que propriamente com o projeto. É fundamental prosseguir etapas lógicas e racionais, baseadas no conhecimento e caraterização do espaço de intervenção, no diagnóstico de oportunidades e constrangimentos para o cumprimento do programa, na definição de critérios orientadores para a exploração de alternativas para novas organizações e desenhos dos espaços, sempre acompanhadas das inevitáveis iterações, até se atingir uma clarificação suficiente para a decisão da forma final. A revisão do projeto, em fases já avançadas e supostamente estabilizadas, é muito frequente, introduzindo um esforço iterativo adicional, penoso, que exige grande paciência - grande paciência -, perseverança, teimosia e resiliência.
O produto final é um conjunto muito variado de resultados, sempre em transformação, marcados pelos ciclos de vida e pelas estações. Logo no início, é a dificuldade do nascimento e da sobrevivência dos primeiros tempos, como acontece com um bebé humano: frágil, incipiente, sugestivo do seu potencial, mas incompleto, e nem sempre belo. É particularmente suscetível a acidentes, maus tratos ou simplesmente um insuficiente acompanhamento. É uma fase de revelação e de abertura ao uso público e, por isso muito, crítica, pois a esta data os elementos vivos ainda não estão suficientemente robustos para enfrentar esse contacto, a pressão do uso, a agressividade do vandalismo. Mas logo revela muitas oportunidades e os elementos pré-existentes, como as árvores já desenvolvidas, parecem sobressair na composição, ganhando uma identidade renovada e um esplendor mais evidente. Os primeiros 5 anos, com uma manutenção atenta e constantemente recuperadora dos estragos causados pelo uso, permitem consolidar o espaço, onde domina a presença das estruturas construídas e os revestimentos herbáceos, sobretudo nas zonas onde as jovens árvores e arbustos dominam a intervenção, e ainda só pontuam, não formando conjuntos de volume expressivo (fase herbácea); nos 5 aos 10 anos, as plantas do estrato arbustivo marcam os espaços deixando evidente a sua participação na composição (fase arbustiva); dos 10 aos 15 anos, o parque ou jardim começa a anunciar os componentes vivos de maior porte, sendo aqui protagonizado por grandes arbustos e as pequenas árvores (fase sub-arbórea); aos 20 naos chegamos à jovem fase adulta, e neste cenário as árvores começam a dominar o conjunto, e a maior escala da intervenção (fase arbórea); neste momento todos os intervenientes participam plenamente na composição espacial e no nosso metabolismo, podendo agora evoluir para fazes posteriores, durantes as quais a espécies mais longevas irão sobressair; a partir dos 20 anos, o parque ou jardim podem requerer alguma revisão de desenho para readquirir o vigor da sua composição inicial ou evoluir para uma nova composição decorrente da anterior. Os resultados da intervenção paisagística são, assim, uma sequência de paisagens em mutação, regidas pelas lógicas da vida, do acaso e da manutenção humana. Esta última deve ocorrer em consonância com a conceção espacial e dialogar bem com ela; se assim não for, raramente o espaço evolui, nos primeiros 20 anos, como previsto no projeto; antes deformando-se, com maior ou menor gravidade, ou mesmo sucumbindo à crueza destrutiva das práticas inadequadas.

Trabalhar a arquitetura e a paisagem é realmente cativante, podendo-se conciliar a ciência e arte num todo. Sendo a paisagem também uma construção cultural, quais os desafios de lecionar a alunos países diferentes, com backgrounds e referências diferentes?
Uma paisagem desenhada tem sempre uma dimensão natural e outra cultural. Na nossa prática de projeto, a dimensão natural tende a informar a dimensão cultural naquilo que são as bases para a sua perpetuação, em consonância com o funcionamento dos sistemas biofísicos. Isto quer dizer que tentamos seguir uma análise e interpretação da paisagem universalmente partilhável, assente no conhecimento dos ecossistemas e dos valores em presença, à partida livres de pressupostos e preconceitos culturais. Os valores naturais e os valores gerados pela pessoa humana são integrados, isto é, postos a funcionar em concordância e complementaridade, de modo a atingir um resultado conjunto, congruente, harmonioso e belo. Estas premissas e objetivos são também universais e, por isso, a sua partilha é incentivada e cultivada nas aprendizagens. A oportunidade de contactar com estudantes e colegas de diferentes países e culturas é um acréscimo muito importante para o alargamento da nossa visão e do nosso conhecimento. A diversidade é o maior bem em qualquer sistema, em qualquer conceito. Dessa fusão, resultam propostas sócio ecológicas mais amplas, mais integrativas, mais sustentáveis e resilientes. As diferenças de interpretação são mediadas num processo de busca de plataformas de entendimento comuns a todos os indivíduos e esse procedimento é priorizado na partilha de perceção, vivência e entendimento do mundo vivo, nas suas dimensões tangíveis e intangíveis, na descodificação do seu metabolismo, na apreciação da sua sensorialidade, e no maravilhamento da sua beleza.

Numa era digital, e no âmbito do trabalho do arquiteto paisagista, poderíamos dizer que houve uma evolução enorme. Passamos de desenhos no computador em 2D – uma necessidade que ainda se mantém – para apresentações através de maquetes eletrónicas e, agora, até de experiências em realidade virtual, que facilitam a compreensão de ideias, principalmente para os clientes. Na sua opinião, como é que o Paisagismo aproveita hoje as novas tecnologias, como inteligência artificial, simulações em softwares, entre outras?
Arquitetura Paisagista é um conhecimento que busca soluções para a organização, desenho e composição do espaço exterior, produzindo novas oportunidades para melhores condições de vida, saúde, bem-estar e perpetuidade humana, em acordo com a natureza. É uma proposta complexa, sistémica, sinérgica, muito exigente em informação espacial das mais diversas origens disciplinares (ex. ecológica, histórica, geográfica, artística, social, etc.). Essa proposta requer ser antecipada em toda a sua complexidade e completude; isto implica a sua visualização, representação e comunicação de maneira a que esse sistema possa ser compreendido, escrutinado e avaliado, de modo a facilitar a tomada de decisão - quer dos projetistas, quer da comunidade a que se destina a intervenção. O projeto é o conjunto de interfaces de representação e comunicação que se têm materializado em imagens e objetos, estáticos ou em movimento (desenhos, pinturas, maquetas, filme, vídeos, etc.); estes suportes de projeto são, hoje, cada vez mais eficientemente resolvidos em suportes digitais, hiper-realistas, imersivos, progressivamente mais potentes ao nível da perceção e sensação de vivência dos espaços projetados, com múltiplas condições temporais e espaciais, que permitem a confrontação direta com a dinâmica dos ecossistemas na sua plenitude biofísica e cultural: sucessão ecológica, sazonalidade, ciclos de vida, crescimento e morte. As tecnologias de informação digital permitem atingir aquilo que sempre foi um objetivo fundamental de qualquer paisagista – o ver antes, simular cenários, confrontá-los e, ainda mais, experienciá-los, em práticas imersivas cada vez mais acessíveis. Este processo, sempre feito apenas pelo cérebro de alguns, é agora potenciado pela oportunidade de processamento digital de grande quantidade de dados, integrando muitas variáveis, possibilitando a representação de muitos resultados espacial e temporalmente visualizáveis, e progressivamente mais completos e realistas, simultaneamente do ponto de vista do rigor científico e das qualidades sensoriais associadas. As perceções e representações sistémicas, as visões de conjunto, as abordagens integradas, o holismo, podem tornar-se mais acessíveis a todos com a digitalização e o progresso da inteligência artificial, e assim conhecendo-se melhor as soluções mais adequadas aos programas e aos recursos disponíveis e viabilizando-se melhores decisões. No entanto, este estado promissor só é verdadeiramente seguro se for sempre acompanhado e amparado de reflexões e posturas éticas que façam prevalecer a comunicação da verdade - justa e não alienada.

A Covid-19 amplificou a relevância de espaços verdes dentro e fora de casa (coberturas verdes, jardins particulares e parques públicos), bem como a necessidade de se repensarem os espaços. Que desafios enfrenta a arquitetura paisagista, e em particular Portugal, neste contexto?
Os desafios atuais que a Arquitetura Paisagista enfrenta podem ser respetivamente referidos do ponto de vista global e local. A nível global, indico as transformações de grande escala que população humana impõe ao planeta como a desflorestação, as alterações climáticas, a desertificação, a redução acelerada da biodiversidade e consequente extinção massificada das espécies; tudo isto acelerado pela pressão demográfica, a disputa de espaço e solo fértil, a globalização consumista e o desperdício, a expansão urbana descontrolada e desorganizada, a má governança - sobretudo no que concerne à distribuição dos recursos, à desigualdade, à pobreza e à guerra. São tudo faces de uma mesma moeda, cuja consequência é, infelizmente, “resolvida” da pior maneira – conflito intraespecífico, antagonismo, guerra, sofrimento, morte. Nos processos globais, saliento a perda do coberto vegetal, multiestratificado e biodiverso como o maior problema e a base de toda a catástrofe. Sem plantas verdes e espaço para que se possam desenvolver,  em quantidade e qualidade, não há vida otimizada - nem neste nem em nenhum planeta; a não ser que, provavelmente, uma tecnologia muito rica e sofisticada substitua o funcionamento da natureza - mas isso, mais uma vez, só seria possível para muito poucos, inacessível para a maioria dos seres humanos. Pode-se fazer diferente, com mais investimento na investigação e desenvolvimento integrado, maior conhecimento na governança de equidade e, sobretudo, em espaços onde os grandes seres vivos verdes possam viabilizar um planeta com sociedades humanas informadas e organizadas, em consonância com todos os componentes dos ecossistemas. Portugal sofre dos mesmos problemas e enfrenta os mesmos desafios globais; estes são acentuados com o problema da enorme desorganização, provocados pela urbanização caótica, com perímetros urbano-industriais sobredimensionados (o que leva a uma pulverização pseudoaleatória da construção), e pelo abandono de vastas áreas do território com consequente potenciação de fogos de grande magnitude e efeito destrutivo. Portugal precisa desesperadamente de conservar água, produzir alimentos de proximidade, gerar energia a partir de fontes renováveis, gerir com precisão e preocupações conservativas o acesso a materiais raros (ex. lítio), reordenar a floresta de produção e as zonas de agricultura intensiva com estruturas de compartimentação biodiversas (ex. orlas ou sebes multiestratificadas) acompanhado de políticas de gestão e valorização da biomassa. A nível local muito pode ser feito, sempre na ótica de criar e manter espaços biodiversos, “fotossintéticos”, permeáveis, férteis, universalmente acessíveis e belos. Precisamos de tirar melhor partido dos valores endógenos, autóctones e de proximidade, usando e conservando todos os espaços naturais e os espaços verdes de geração humana de interesse público, ligados em redes “verdes e azuis” conectadas, a várias escalas e com diversas morfologias: orlas costeiras, linhas de drenagem natural e suas margens, zonas húmidas, escarpas, falésias e afloramentos rochosos, conjuntos de vegetação autóctone ou cultivada não invasora, parques, jardins, praças e ruas arborizadas/ajardinadas, coberturas e empenas vegetadas; todas estas preferencialmente dominadas pelos seres vivos verdes de maiores dimensões e longevidade. Para isto ser possível e extensível ao território, especialmente ao ocupado pelas populações humanas, é forçoso recolher e conservar a água (infiltração in situ, reservatórios, cisternas, pequenas albufeiras) e promover a acumulação da matéria orgânica no solo para regeneração da fertilidade dos substratos, e robustecer o desenvolvimento e perenidade da estrutura verde.

Atualmente, a profissão de Arquiteto Paisagista é cada vez mais importante e necessária, assistindo-se a uma maior procura de arquitetos paisagistas, muitas vezes na tentativa de introduzir uma arquitetura mais sustentável nas cidades cinzentas. No entanto, ainda há muito que fazer para que se torne uma profissão com mais procura, tanto por parte do sector privado como público. Considera que a profissão é devidamente valorizada em Portugal?
A profissão de Arquitetura Paisagista não é ainda valorizada nem plenamente conhecida pela generalidade da população portuguesa, nem mesmo por algumas instituições com responsabilidade sobre o território e sobre a paisagem. É um problema civilizacional que tende a melhorar, sobretudo pelo aumento do número de escolas que oferecem formação total ou parcial da disciplina, com o aumento do número de profissionais no mercado, e com algum progresso na cultura ambiental, sobretudo no âmbito da criação de estruturas verdes, urbanas e metropolitanas. Não ajuda o facto de ser uma área exigente, de conhecimento e ação, que sintetiza e propõe a partir da informação que obtém a partir de muitas outras áreas do conhecimento; é uma arte espacial, social e ecológica, de aprendizagem longa e lenta, que reclama maturidade e contemplação.

Que conselho daria a quem quer enveredar pela arquitetura paisagista em Portugal?
A Arquitetura Paisagista, o seu conceito e a sua prática, é uma atividade de presente e de futuro, pois age na promoção da viabilidade do planeta e de todos os seus seres vivos. Possibilita a vida humana em contacto com a natureza, em dignidade e qualidade, em espaços harmónicos e justos, onde os recursos cheguem a todos e a experiência da manifestação sensorial dos ecossistemas nos dê prazer, significado e sentido de pertença. Hoje, como outrora, a Arquitetura Paisagista permanece carregada de grandes missões e desígnios: 1) a participação na criação de espaços mais adequados para enfrentar a adaptação às alterações climáticas; 2) o planeamento e conceção de espaços ricos em habitats que induzam a promoção da biodiversidade natural e cultivada; 3) o desenho de espaços vivos de circulação, estadia, cultivo e socialização, que fomentem a inclusão e a equidade; 4) a promoção de investigação, desenvolvimento e intervenções territoriais e ambientais recorrendo a soluções baseadas na natureza; 5) o desenvolvimento de espaços mais claramente organizados e desenhados para tirar melhor partido dos serviços de ecossistemas e sua quantificação; 6) a participação no ordenamento e gestão territorial a várias escalas, de modo a resolver conservativamente: a) o ciclo água doce (salvaguarda uma proactiva rede de drenagem natural, das zonas de infiltração e recarga de aquíferos, de sistemas de armazenamento de proximidade); b) a irracional expansão urbana; c) a “floresta de combustão” e o abandono ou uso inadequado dos solos férteis produtores de alimentos vitais; d) a ocupação perigosa e arriscada da orla costeira; e) a exígua estrutura verde urbana que tem que ser aumentada e desenvolvida em rede conectada; g) a falta de acesso a espaços verdes de proximidade, concebidos para aumentar o efeito de saúde e bem estar das populações. Precisamos de mais profissionais pró-ativos para criar e gerir espaços de mosaico, com um desenho orientado por uma rede hidrográfica o mais natural possível, associada a espaços retentores de água doce, em espaços urbanos simultaneamente mais compactos e mais verdes, com clareiras de produção agrícola e pecuária (tecnologicamente apoiadas e frugais no uso dos recursos e na poluição difusa), compartimentados com orlas arbóreo arbustivas ricas em nichos ecológicos, e complementados com áreas de florestas de produção; estas também rematadas e compartimentadas com corredores de água e biodiversidade. Hoje, os ideais da Arquitetura Paisagista acompanham-se de uma semântica “refrescada”, assídua em termos como eco-social, economia circular, co-criação, serviços de ecossistemas, sequestro/captura de carbono, soluções baseadas na natureza, resiliência, restauro de ecossistemas, sustentabilidade, saúde e bem-estar...
Enfim, nada de novo, mas tudo cada vez mais premente.




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