Investigadores U.Porto

U.Porto Reitoria SIP
Raquel Lucas
Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto (ISPUP) - Unidade de Investigação em Epidemiologia (EPIUnit) / Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar da U.Porto (ICBAS) / Laboratório para a Investigação Integrativa e translacional em Saúde Populacional (LA ITR)

Investigação na área da epidemiologia das doenças musculoesqueléticas


Fale-nos um pouco sobre o seu percurso científico.
Comecei por tirar a Licenciatura em Ciências Farmacêuticas na Faculdade de Farmácia da Universidade do Porto (FFUP) em 2004, que incluiu um estágio Erasmus em química analítica, onde colaborei no trabalho experimental que deu origem ao primeiro artigo científico de que fui co-autora. Depois, completei o Mestrado em Epidemiologia, em 2006, e o Doutoramento em Saúde Pública, em 2012, ambos na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto (FMUP). Em 2020 prestei provas de agregação em Saúde Pública na FMUP, onde também fiz um pós-doutoramento e fui investigadora até ao ano passado. Desde julho de 2022 sou investigadora principal no ISPUP. Sou membro integrado da Unidade de Investigação em Epidemiologia (EPIUnit) e do Laboratório Associado para a Investigação Integrativa e Translacional em Saúde Populacional (ITR).

Consegue identificar 2 ou 3 marcos, na sua carreira profissional, que tenham sido mais relevantes para si?
Um dos primeiros marcos foi um estágio que fiz, entre o mestrado e o doutoramento, no escritório europeu da Organização Mundial da Saúde, em Copenhaga, que me ajudou a conhecer melhor a importância enorme das agências das Nações Unidas na construção de uma saúde pública global, justa e orientada pela defesa dos direitos humanos. Alguns anos mais tarde, durante o período do doutoramento e no âmbito de um projeto chamado Observatório Nacional das Doenças Reumáticas (FMUP e Sociedade Portuguesa de Reumatologia), fui co-autora de um extenso trabalho em que descrevemos a implementação do Programa Nacional contra as Doenças Reumáticas, bem como a frequência e a utilização de cuidados de saúde devidos a estas doenças em Portugal. Penso que este terá sido o primeiro trabalho, deste tipo, aplicado a um programa nacional de saúde em Portugal, e tem sido um dos nossos trabalhos em português mais citados. Mais recentemente foi-me atribuída, num concurso internacional competitivo, uma Career Research Grant financiada pela FOREUM – Foundation for Research in Rheumatology, que é parte da European Alliance of Associations for Rheumatology (EULAR). Já este ano, tive o privilégio de ser nomeada membro da Comissão para a Elaboração da Proposta de Reforma da Saúde Pública em Portugal. Em todos estes acontecimentos foi essencial a minha formação e filiação na U.Porto.

Pode falar-nos do trabalho que tem desenvolvido no laboratório de ‘Saúde e doença musculoesquelética numa perspetiva populacional’ do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto (ISPUP), e qual a relevância do trabalho desenvolvido em termos de impacto social e para a aplicação de políticas públicas?
O nosso objetivo principal é estimar, sob várias perspetivas, o sofrimento físico evitável que se deve às doenças musculoesqueléticas e, em particular, à dor musculoesquelética crónica. Nos últimos anos, a comunidade científica tem feito descobertas extraordinárias sobre a biologia da dor, incluindo o reconhecimento de mecanismos de sensibilização do sistema nervoso central que justificam a persistência da sensação de dor após a resolução da lesão que lhe deu origem. Pensa-se que este tipo de dor é responsável por uma grande fração da carga de dor crónica na população. No entanto, sabemos pouco sobre como melhor identificar desde cedo, numa determinada população, as pessoas que virão a ter dor crónica. Sabemos ainda menos – para lá do senso comum – sobre como abordar a dor numa perspetiva populacional, que possa ser um alvo fundamentado de políticas públicas. Por exemplo, o nosso trabalho recente mostra que as crianças que estão expostas desde cedo à adversidade, incluindo a privação de recursos ou experiências de bullying e outras formas de violência, têm mais risco de vir a ter dor física crónica, perpetuando desigualdades injustas. Também sabemos, por exemplo, que os jovens mais insatisfeitos com a sua imagem corporal tendem a ter menor tolerância à dor. Este tipo de conhecimento pode ser, na minha opinião, muito consequente para políticas públicas de promoção da saúde e prevenção da doença, tanto no contexto escolar como dos cuidados de saúde na infância.

Da panóplia de projetos de investigação nos quais participa / lidera, pode falar-nos um pouco sobre aqueles atualmente em execução? Quais as suas temáticas e principais objetivos?
Neste momento, temos em curso um projeto do qual sou investigadora responsável, financiado pela Fundação europeia FOREUM (mencionado acima). Neste projeto, que envolve o ISPUP, o INESC TEC, a Sociedade Portuguesa de Reumatologia (SPR) e duas pacientes parceiras de investigação, caracterizamos as trajetórias da dor na adolescência para melhorar a identificação dos adolescentes com maior probabilidade de vir a ter dor musculoesquelética persistente ou repetitiva ao longo da vida. Queremos comparar as experiências de dor entre jovens com e sem doença articular inflamatória crónica, no que diz respeito à forma como descrevem a dor atual e passada, de maneira a podermos estimar o contributo relativo, para o sofrimento físico, de fatores biológicos (como a inflamação crónica) e psicossociais. O projeto usa dados generosamente fornecidos por duas coortes de jovens e respetivas famílias: os participantes da Geração XXI que são seguidos desde o nascimento e os adolescentes com artrite idiopática juvenil acompanhados através do Registo Nacional de Doentes Reumáticos da SPR. O título completo do projeto é “Uncovering musculoskeletal pain susceptibility profiles since childhood by bringing together population and clinical cohorts” e a página pode ser consultada em https://ispup.up.pt/sepia/.

Qual tem sido o contributo dos Fundos da União Europeia no reforço de redes de I&D e na formação de equipas, para que a ciência esteja ao serviço da sociedade?
Devo dizer que hesito em subscrever uma avaliação universal da ciência baseada no serviço à sociedade a curto prazo (lembremo-nos, por exemplo, que passaram 40 anos desde a invenção da lâmpada incandescente até à sua comercialização, embora isso nada diga sobre o valor da descoberta). Na área específica em que trabalho, são comuns os modelos participativos de criação de conhecimento em que se incorpora representação da sociedade – lembro-me em particular das nossas colaborações sólidas e continuadas com o GAT-Portugal e a Liga Portuguesa contra as Doenças Reumáticas. No que diz respeito especificamente aos fundos da UE, creio que têm sido essenciais para consolidar redes existentes e capacitar investigadores, mais recentemente, promovendo, também, a chamada “ciência cidadã”. De uma forma geral, tem sido possível formar grupos com capacidade de atrair financiamento crescente ao nível europeu, como se vê no caso do Laboratório Associado ITR. Um exemplo interessante, especificamente destinado à promoção destas redes, são as Ações COST que, na minha experiência, permitem lançar as bases para o estabelecimento de consórcios de investigação inclusivos, que incentivem posições de liderança para investigadores mais jovens, entre outros planos de desenvolvimento de carreira.

As doenças reumáticas e músculo-esqueléticas são as doenças mais frequentes e a segunda maior causa de anos vividos com incapacidade. Qual é o atual paradigma destas doenças em Portugal?
Eu até diria que são a maior causa de anos vividos com incapacidade, mas depende da forma como se mede! Em Portugal, tal como na generalidade dos países de elevado rendimento, o impacto destas doenças na população é muito elevado, em parte devido à sua prevalência muito elevada. Mas estamos na verdade a falar de mais de 100 doenças diferentes, que vão desde a lombalgia crónica, uma síndrome comum que pode afetar 20-30% dos adultos, à artrite reumatoide, que é uma doença imunomediada potencialmente grave que afeta menos de 1% da população. Apesar da sua variedade fisiopatológica e clínica, estas doenças têm consequências partilhadas para as pessoas que delas sofrem e implicações para a sociedade, que resultam tipicamente da dor crónica e da incapacidade funcional. Atualmente, com o sucesso observado na prevenção e na gestão das chamadas causas competitivas de morbilidade e mortalidade, como as doenças infeciosas, as cardiovasculares e o cancro, o sofrimento devido à patologia musculoesquelética tem um peso relativo cada vez maior, em Portugal como no contexto europeu. Apesar disso, as doenças reumáticas e musculoesqueléticas continuam a ser tradicionalmente normalizadas como parte do envelhecimento humano, um mal que “não mata mas mói”. Até a enorme comunidade da saúde pública nas suas várias vertentes – incluindo os decisores – presta uma atenção reduzida à saúde musculoesquelética, o que até certo ponto é compreensível pelas limitações à sua prevenção que veremos abaixo.

Num país cada vez mais envelhecido como Portugal, qual é a importância da prevenção e do diagnóstico atempado das doenças reumatológicas músculo-esqueléticas?
Um dos desafios mais interessantes das doenças reumáticas é que ainda se sabe muito pouco sobre as causas de uma grande parte delas, tais como a artrite reumatoide, a espondilite anquilosante ou o lúpus eritematoso sistémico. Sabe-se que são doenças imunomediadas em que estão envolvidos múltiplos fatores genéticos e ambientais, bem como interações entre estes, até no contexto de infeções que poderão precipitar o aparecimento destas doenças. No entanto, cada fator individualmente contribui relativamente pouco para o risco de doença e não se identificaram ainda causas modificáveis que possam ser alvo de estratégias específicas de prevenção primária. De um modo geral, o consumo de álcool ou tabaco e o sedentarismo parecem aumentar o risco de algumas destas doenças e piorar o prognóstico, mas isto também é verdade para doenças musculoesqueléticas com uma etiopatogenia muito diferente, como a lombalgia crónica ou a osteoporose. Já no que diz respeito ao diagnóstico, a identificação precoce das doenças reumáticas imunomediadas é fundamental, visto que hoje há intervenções farmacológicas que podem mudar completamente o curso da doença e evitar grande parte do dano que, há poucas décadas, seria inexorável. Já no caso de síndromes dolorosas como a fibromialgia, a vantagem de um diagnóstico rápido é muito mais duvidosa, porque as opções terapêuticas são bastante mais limitadas. Em qualquer dos casos, aquilo que entendemos atualmente como escolhas saudáveis nos campos da alimentação e da atividade física podem ter um lugar na prevenção das doenças reumáticas, o que nos leva novamente a pensar nos determinantes sociais daquilo a que chamamos escolhas.

Que desafios ainda há a ultrapassar em Portugal para uma resolução efetiva e rápida de diferentes patologias músculo-esqueléticas?
Um outro grande desafio das doenças reumáticas e musculoesqueléticas é que estas muitas vezes não são curáveis. E mesmo quando se encontram em remissão do ponto de vista de critérios clínicos medidos objetivamente, como no caso da artrite reumatoide, é comum que alguns pacientes continuem a referir dor e limitação funcional. Por outro lado, há pessoas que têm lesões muito expressivas (por exemplo exames radiográficos que sugerem osteoartrose avançada) mas que não referem qualquer dor. Esta dissociação, que é bem conhecida dos profissionais de saúde, torna muito complexo resolver completamente estas doenças. Do ponto de vista das intervenções, assegurado que esteja o tratamento farmacológico possível, é importante centrar a discussão também na gestão da dor física e da incapacidade a longo prazo, considerando a sua enorme frequência e as interações com os contextos psicossociais. Aqui não me refiro apenas a intervenções individuais, mas principalmente às da saúde pública. Por exemplo, sabemos que as doenças dos ossos, músculos e articulações são tão frequentes que é impossível pensar em programas de gestão do doente crónico sem pensar na gestão da doença reumática. Creio que essa multimorbilidade é cada vez mais reconhecida no desenho de políticas públicas, embora ainda tenhamos um longo percurso pela frente para que a gestão da saúde e da doença sejam realmente centradas no cidadão.

Como cientista, que apreciação faz do panorama científico português na sua área de investigação, e em outras áreas de um modo geral? Considera que a ciência é devidamente valorizada em Portugal?
Começando pela sociedade, penso que os cidadãos em Portugal, de forma geral, têm uma opinião positiva da ciência e da universidade e que têm sabido valorizar a investigação epidemiológica e em saúde pública, em particular no contexto da COVID-19. Também, aos decisores, penso que a pandemia mostrou claramente a importância de uma saúde pública presente, informada e atual. Não tenho a certeza que o investimento público atual reflita essa visão, nomeadamente na área da investigação em epidemiologia e saúde pública. Num contexto em que se preparam as emergências que seguramente virão, penso que é importante assegurarmos um futuro em que a investigação epidemiológica contribua para uma saúde pública baseada na mais sólida ciência. Neste momento, penso que já existe massa crítica – em pessoas, em produção científica e em projeção internacional – que justifica assegurar um lugar de relevo para a investigação epidemiológica em Portugal.

Com um currículo consolidado na investigação, o que perspetiva para o futuro? Tem algum sonho profissional que gostaria de ver concretizado?
Numa esfera mais próxima gostava que tivéssemos condições para continuar a formar e a manter um grupo de pessoas que se possam dedicar, a longo prazo, a consolidar a investigação na área da epidemiologia das doenças reumáticas e musculoesqueléticas em Portugal. Numa perspetiva mais geral, gostava de ver a investigação e a formação em saúde pública, e em epidemiologia na U.Porto, com um lugar cada vez mais sólido e formalmente reconhecido. Gostava também que o ISPUP pudesse encontrar um espaço físico que corresponda à dimensão que creio que tem conseguido construir na Universidade.






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