Atividade de investigação em Química e Bioquímica
Gostaríamos de voltar ao momento de partida. Como surgiu o interesse pela química, mais especificamente, pela área da bioquímica alimentar e enologia?
Já no liceu eu gostava das disciplinas das ciências experimentais, sendo a Química e a Biologia as duas disciplinas de que sempre gostei mais e nas quais tinha melhores classificações. Uma vez ingressado na licenciatura em Química na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto (FCUP), mantive sempre um interesse pelas áreas das ciências químicas biológicas, nomeadamente pela química dos produtos naturais. Quando terminei a minha licenciatura em 1989, após as minhas provas de aptidão pedagógicas e científicas concluídas em 1991 e já como docente da FCUP, pedi dispensa de serviço para fazer o meu doutoramento no estrangeiro. Com o intuito de desenvolver uma nova área na FCUP em Ciências dos Alimentos, fui estudar para a Universidade de Bordéus onde conclui o meu doutoramento em Ciências Farmacológicas na especialidade da Enologia. Foi durante o meu doutoramento, e depois na FCUP, que comecei a desenvolver o meu interesse por estudar as propriedades químicas e físico-químicas de compostos bioativos como os polifenóis, presentes não só na uva e no vinho como também noutros frutos e produtos alimentares derivados de plantas. Estes estudos foram sempre direcionados no sentido de perceber o impacto destes compostos na estabilidade, na perceção sensorial e nas propriedades nutricionais dos alimentos.
Que grandes marcos destacaria de uma já longa e frutífera carreira académica e de investigação, que o tenham particularmente impactado?
É uma questão difícil, já que são muitos os pontos de viragem e avanços na ciência com que nos deparamos e que nos fazem repensar as nossas atividades, não só no conhecimento que é gerado como também pensando no papel do “cientista” nesta equação. Com o foco apenas nos eventos/descobertas científicas deste século, e sendo a minha formação de base em Química Orgânica, destaco o "desenho e síntese de máquinas moleculares" e ainda o desenvolvimento da química de “clique” (click chemistry), ambos os trabalhos distinguidos com o Prémio Nobel da Química em 2012 e 2022 respetivamente. Um ano antes da atribuição do Prémio Nobel à invenção das máquinas moleculares tive o prazer de assistir no departamento de Química da FCUP a uma palestra de Jean-Pierre Sauvage, um dos três cientistas laureados no âmbito deste tema. Impressionou-me a novidade e o potencial de aplicação desta tecnologia. As máquinas moleculares são consideradas as menores do mundo, sendo mil vezes menores que um fio de cabelo, e consistem em moléculas com movimentos controláveis quando lhes é fornecida energia. Uma das descobertas mais próximas das minhas áreas de investigação, e também laureadas com o Prémio Nobel da Medicina atribuído em 2021 aos cientistas norte-americanos David Julius e Ardem Patapoutian, foi a descoberta do funcionamento dos recetores celulares que respondem a fatores externos, como a temperatura (calor e frio) e o toque (estímulos mecânicos) e como estes estímulos são convertidos em sinais nervosos. Estes cientistas, usando os compostos químicos, a capsaicina responsável pelo picante da malagueta e o mentol, responsável pelo fresco da menta, identificaram os recetores TRPV1 e TRPM8 presentes nas terminações nervosas da pele que, respetivamente, respondem ao calor e ao frio. Já Patapoutian usou células sensíveis à pressão para descobrir uma nova classe de sensores, os Piezo1 e Piezo2, que respondem a estímulos mecânicos na pele e órgãos internos. No nosso grupo temos projetos a decorrer que pretendem evidenciar este tipo de sensores na perceção das sensações tácteis, como por exemplo a adstringência, aquando da degustação de certos alimentos.
Impulsionou, no seio da U.Porto, o desenvolvimento de uma nova área de investigação independente no campo da Química e Bioquímica Alimentar, focada nos compostos polifenóis. Quais as grandes implicações práticas que advieram desta investigação em particular, e de que forma há ainda espaço para inovação no contexto sensorial e biológico dos alimentos?
Os polifenóis são uma família de compostos que está presente na grande maioria dos alimentos, sobretudo naqueles de origem vegetal. Estes compostos apresentam inúmeras propriedades importantes para a qualidade dos alimentos, nomeadamente o seu sabor, a sua cor e a sua capacidade de conservação, todos estes aspetos importantes que a indústria tem em consideração durante o processamento dos alimentos. Estes fatores são também determinantes para a aceitabilidade por parte do consumidor. Por outro lado, estes compostos tem um papel antioxidante e intervêm em determinadas vias de sinalização no nosso organismo, contribuindo para a prevenção da ocorrência de doenças neurodegenerativas, acidentes cardiovasculares e determinados tipos de cancro. Alguns polifenóis que apresentam propriedades benéficas para o consumidor apresentam também propriedades gustativas negativas no alimento, como por exemplo o amargor e a adstringência. O conhecimento da sua estrutura, composição e propriedades físico-químicas ajuda-nos a modelar o sabor destes alimentos, tornando mais apetecíveis os alimentos mais saudáveis. Com as mudanças que se têm vindo a registar com a readaptação da dieta aos produtos à base de plantas em detrimento dos produtos cárneos, a utilização de alternativas naturais, derivadas de plantas, aos aditivos artificiais que não representam qualquer risco para o consumidor, garantir a segurança, qualidade nutricional e sensorial destes novos produtos são importantes desafios que a indústria tem pela frente. Por outro lado, dada a diversidade de compostos polifenólicos que existem na natureza e a complexidade relacionada com os mecanismos fisiológicos associados ao papel que estes compostos têm após a sua ingestão, não é clara a relação estrutura-atividade no nosso organismo. Sabe-se que certos polifenóis têm um papel importante na modelação da microbiota gastrointestinal o que, por sua vez, vai impactar a nossa saúde gastrointestinal tendo um efeito sobre o nosso sistema imunitário e na prevenção de determinados tipos de cancro. É um assunto que está na ordem do dia e com muito ainda por descobrir. Todo o conhecimento gerado sobre o papel dos polifenóis no alimento, quer do ponto de vista sensorial quer nutricional, é muito importante não só da perspetiva académica mas também para o sector agroalimentar, já que o tipo de processamento aplicado pode afetar esta composição nos alimentos. Do ponto de vista nutricional, este conhecimento permitirá avaliar melhor o efeito da dieta na saúde do consumidor e até mesmo tornar possível o desenvolvimento de produtos com especificidades distintas para tipos de consumidores com necessidades nutricionais específicas.
Foi já responsável pela coordenação e execução de inúmeros projetos de I&D, nacionais e internacionais. Na sua opinião, e em matéria de obtenção de financiamento, trabalho interdisciplinar, sinergias com a indústria, entre outros, quais os grandes desafios que os investigadores enfrentam atualmente, e de que forma é possível ultrapassá-los?
A obtenção de financiamento para a atividade de investigação para aquisição de equipamentos, gastos correntes com consumíveis e contratação de recursos humanos, é um dos maiores desafios que os investigadores enfrentam. Os recursos disponíveis são limitados e a concorrência entre investigadores é elevada. Infelizmente não nos podemos apoiar apenas nos fundos disponibilizados pela FCT, que são muito limitados face à necessidade do país e que têm taxas de aprovação demasiadamente baixas. Para superar este obstáculo, é essencial que os investigadores diversifiquem as suas fontes de financiamento, não só em Portugal como no estrangeiro, e sobretudo em projetos europeus, em consórcios e através dos vários programas existentes do Horizonte Europa. O desenvolvimento de projetos científicos, com os objetivos claros, cientificamente bem suportados e de caráter inovador, é crucial para o sucesso na aprovação dos projetos. A complexidade dos problemas modernos em Ciência e Tecnologia Alimentar exige a colaboração entre diversas disciplinas como a Química, a Biologia, a (Bio)Engenharia, a Nutrição e a Ciência do Consumidor. Para superar este desafio é necessário promover uma cultura de colaboração multidisciplinar dentro das instituições de investigação, incentivando a criação de equipas multidisciplinares. Além dos financiamentos públicos e das agências governamentais, é crucial explorar oportunidades em empresas em projetos de co-promoção ou com financiamento das próprias empresas do sistema agroalimentar, que acaba por ser um dos sectores industriais mais desenvolvidos em Portugal. A criação de sinergias com a indústria é crucial para a aplicação prática das descobertas científicas. No entanto, alinhar os interesses académicos com os objetivos comerciais pode ser desafiador. Para promover estas sinergias é essencial desenvolver canais de comunicação eficazes e estabelecer parcerias baseadas na confiança mútua.
Coordena a linha de Tecnologia e Qualidade Alimentar do LAQV/REQUIMTE e lidera o grupo “Food Polyphenol Lab”. Pensando o futuro, que pistas de investigação destacaria como as mais atuais e prementes da contemporaneidade?
A investigação no sistema agroalimentar enfrenta vários desafios que são cruciais para o avanço do conhecimento científico: melhorar a qualidade dos alimentos, garantir a segurança alimentar e uma alimentação mais saudável. Nos dias que correm, o consumidor está cada vez mais exigente nas suas escolhas alimentares, procurando uma alimentação mais saudável e natural. Por questões que podem ser de várias ordens como éticas, religiosas, de saúde e sobretudo ambientais há uma mudança de paradigma na alimentação em que a carne, sobretudo bovina, está a ser preterida pelo consumidor em favor de outras fontes naturais de proteínas e gorduras mais saudáveis. Um dos maiores desafios nesta indústria é a procura de novas fontes inovadoras destes ingredientes, a partir sobretudo de plantas mas também de outras fontes como por exemplo fungos, algas e insetos. Por outro lado, a indústria alimentar tem procurado desenvolver produtos “Clean Label” minimamente processados, desprovidos de qualquer aditivo ou conservante face à crescente demanda por parte do consumidor. A procura de alternativas, quer tecnológicas como químicas, de origem natural e sem riscos para o consumidor é um grande desafio que nos surge. Melhorar a composição nutricional dos alimentos e desenvolver alimentos funcionais são desafios essenciais para combater problemas de saúde relacionados com a dieta como a obesidade, a diabetes e as doenças autoimunes. O conhecimento do efeito dos alimentos na microbiota gastrointestinal e a sua influência na regulação do metabolismo, imunidade e inflamação são áreas de investigação promissoras, nomeadamente no diagnóstico, prognóstico e/ou tratamento de certas doenças como o cancro. Em termos da segurança alimentar é essencial desenvolver sensores e métodos rápidos e precisos que permitam avaliar a qualidade e tempo de vida dos alimentos e, por outro lado, detetar a presença de contaminantes químicos e biológicos para prevenir doenças transmitidas por alimentos. Por último, e com base no conhecimento gerado, é importante entender e influenciar o comportamento dos consumidores de modo a promover escolhas alimentares saudáveis e sustentáveis.
Especificamente no âmbito da bioquímica alimentar e da enologia, qual a sua perspetiva sobre a evolução científica destas áreas, particularmente em termos de inovação e sustentabilidade?
A área da Ciência e Tecnologia Alimentar é bastante desafiante porque está em constante mudança e adaptação às realidades que nos circundam, sejam elas de natureza ambiental como de segurança alimentar. Existem novos desafios de sustentabilidade alimentar, nomeadamente na redução dos desperdícios alimentares e no reaproveitamento de subprodutos da indústria agroalimentar, introduzindo mais valor na cadeia de produção para fazer face ao elevado crescimento demográfico que se tem verificado. Por outro lado, o combate às alterações climáticas passa também pela produção de alimentos menos poluentes que levem a uma redução da acumulação dos gases de estufa e consequente aumento da temperatura do planeta. Urge investigar de que forma as alterações climáticas afetam a produção e a qualidade dos alimentos, e desenvolver estratégias de adaptação para mitigar esses efeitos. Para isso, é fundamental desenvolver técnicas de adaptação das espécies às mudanças climáticas, de procura de espécies mais resistentes a esse aumento da temperatura, ou desenvolver culturas resilientes por processos de biotecnologia e de melhoramento genético.
É atualmente membro da Direção do Centro de Materiais da Universidade do Porto (CEMUP) e Presidente da Delegação do Porto da Sociedade Portuguesa de Química (SPQ). Desta perspetiva de liderança, o que considera que pode ainda ser feito para melhor fazer chegar o conhecimento e a ciência à sociedade em geral?
É importante promover uma cultura científica mais ampla, não só entre estudantes e investigadores, mas também em comunhão com a população em geral. As pessoas só se interessam pela ciência se esta for relevante para elas. Uma das maiores dificuldades é traduzir conceitos científicos complexos em linguagem simples, acessível e precisa. Para isso, é importante a aproximação entre os comunicadores/jornalistas e os cientistas e garantir uma comunicação eficaz utilizando, por exemplo, os meios de comunicação mais modernos como as redes sociais e plataformas digitais. Compartilhar descobertas científicas através destes meios digitais, oferecendo programas educativos como cursos online e workshops e realizar de palestras e debates públicos de ciência onde há um contacto do público com o cientista, permitirá também alcançar um público amplo, diversificado e interessado. Por último, é fundamental valorizar a ciência na sociedade através de políticas públicas que incentivem a investigação e a inovação, bem como a divulgação através dos meios de comunicação. A SPQ, uma das maiores e mais antigas sociedades científicas em Portugal, tem vindo a desempenhar um papel importante, agregador do conhecimento científico e esclarecedor do papel da Química nos nossos dias, por vezes mal compreendido, para além do enorme contributo na disseminação da Química junto das escolas e do público em geral. É importante a continuidade e o alargamento deste seu desígnio, e que outras sociedades científicas vejam na SPQ um exemplo a seguir.
Foi distinguido com o Prémio Excelência Científica, em 2024, pela Universidade do Porto. O que significou este reconhecimento e que conselhos partilharia com as novas gerações que ambicionam uma carreira de excelência na investigação?
Já tenho referido que, como se trata de um prémio de reconhecimento da excelência por parte da nossa instituição, é uma enorme satisfação para mim saber que os nossos colegas reconhecem a dedicação e o impacto do nosso trabalho. Uma carreira de investigação requer muita resiliência e um sentido de oportunidade para tomar as decisões certas nos momentos mais oportunos, o que nem sempre é fácil. Para isso convém traçar um percurso científico, procurar a sua identidade como cientista, demarcar-se dos restantes e manter-se sempre atualizado. Nenhum trabalho de investigação de excelência se faz sozinho. Todo o investigador deve dar o seu melhor, saber ouvir e rodear-se de um grupo de trabalho com o qual possa partilhar as suas ideias e ter discussões frutíferas e criativas. Apesar de a ambição ser um dos motores do sucesso da atividade de investigação, a procura pela excelência não deve ser um objetivo mas uma consequência de um trabalho sério de dedicação e de aproveitamento de oportunidades. Um investigador tem de ter um objetivo, e sobretudo gostar do que faz, e tem de saber interrogar-se sobre os problemas. Sempre me disseram que nunca deveria procurar dar uma resposta a uma questão mal formulada, é uma perda de tempo e de dinheiro. Por isso, a maior dificuldade que eu senti, e sinto, na minha atividade é saber formular bem as questões sobre um problema científico. Depois, tudo acontece!
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