Newsletter #19 - abril e maio de 2025
Gestão de Documentação e Informação
O património bibliográfico da Universidade do Porto foi enriquecido com a recente intervenção de conservação e restauro realizada na obra "Historia geral de Ethiopia a Alta ou Preste Ioam, e do que nella obraram os padres da Companhia de Iesus", escrita por Baltasar Teles e publicada em 1660 (figura 1). Este livro, pertencente ao acervo da Biblioteca do Fundo Antigo, é um exemplar singular na história da literatura missionária e um testemunho do papel da Companhia de Jesus na documentação de culturas e territórios distantes.
Figura 1: Anterrosto do livro "Historia geral de Ethiopia a Alta ou Preste loam, e do que nella obraram os padres da Companhia de Iesus", antes e depois das intervenções de conservação e restauro
Este livro não é apenas um relato geográfico ou etnográfico, representando também uma janela para o pensamento do século XVII, narrando as aventuras dos missionários jesuítas na Etiópia e o impacto das suas ações naquela região. Escrito originalmente pelo jesuíta Manuel de Almeida durante a sua missão na Etiópia, o texto foi posteriormente abreviado e reestruturado por Baltasar Teles, também membro da Companhia de Jesus, incluindo os relatos do irmão Pedro Pays e do Patriarca Alfonso Mendes.
A obra documenta as interações culturais, religiosas e políticas dos missionários jesuítas num reino associado ao mítico Preste João, figura central no imaginário europeu como um poderoso monarca cristão. Além de narrar os esforços missionários e os desafios enfrentados, a obra oferece um panorama detalhado da geografia, costumes e estrutura social etíope, sendo uma fonte indispensável para o estudo das relações entre a Europa e a África no início da era moderna.
Um dos elementos mais relevantes é um mapa detalhado da Etiópia incluído na obra (fig. 2), que serviu como referência para publicações posteriores e contribuiu significativamente para a revisão do imaginário geográfico europeu sobre a região.
Figura 2: Mapa da Etiópia presente no livro
Adicionalmente, a obra contém um frontespício gravado a água-forte que, em alguns exemplares, foi aguarelado. Este processo adicionou trajes europeus coloridos a figuras anteriormente representadas nuas, incluindo o Preste João e figuras indígenas. Curiosamente, observa-se que, noutros exemplares, as personagens surgem já gravadas vestidas e com turbantes, reflectindo possíveis adaptações culturais e editoriais da época, embora a data de publicação permaneça inalterada. Esta peculiaridade, documentada em exemplares presentes noutras bibliotecas, como a Fundação Biblioteca Nacional no Brasil, Bristish Library em Londres, Biblioteca Nazionale Centrale em Florença e Biblioteca Apostolica Vaticana, evidencia o dinamismo cultural e editorial do período e constitui um campo de estudo que carece de uma maior investigação.
Figura 3: Frontispício gravado e aguarelado
O estado de conservação do livro apresentava desafios significativos, resultado de múltiplas patologias acumuladas ao longo dos séculos. Entre os principais problemas identificados, destacava-se o ataque microbiológico que comprometia tanto o suporte de papel como a encadernação em pergaminho. O papel encontrava-se fragilizado, com áreas de grande vulnerabilidade estrutural, dificultando o seu manuseamento e aumentando o risco de danos adicionais. A encadernação, deteriorada pela perda de coesão dos materiais originais, comprometia a funcionalidade do livro enquanto unidade física e não cumprindo a sua função protetora.
A intervenção teve como principal prioridade a estabilização da obra e a recuperação da sua integridade física, respeitando os elementos originais. O processo contemplou uma limpeza mecânica superficial da encadernação e do corpo do livro e uma limpeza química dos fólios iniciais e finais, neutralizando substâncias ácidas e microbiológicas que aceleravam a degradação do suporte celulósico. As lacunas no papel foram preenchidas com materiais de produção artesanal, cuidadosamente escolhidos para garantir uma maior compatibilidade com o suporte original em termos de tonalidade e gramagem. Os transfiles foram refeitos e os nervos consolidados, restabelecendo a estrutura interna do livro.
A encadernação original, fragilizada, foi substituída por uma réplica, respeitando o design histórico. A original foi acondicionada junto do livro numa caixa feita à medida, utilizando materiais isentos de ácido, para garantir a sua conservação a longo prazo.
Com esta intervenção, o SGDI reafirma o seu compromisso com a preservação do património cultural da Biblioteca do Fundo Antigo. Este trabalho não só possibilita o acesso seguro a investigadores e à comunidade, mas também preserva um testemunho vital das dinâmicas entre a Europa e a África e do papel da Companhia de Jesus na disseminação do conhecimento e da fé.
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Figuras 4 e 5: Limpeza por aspiração (imagem da esquerda); Lavagem dos fólios (imagem da direita)
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Figuras 6 e 7: Reforço do fólio final (imagem da esquerda); Construção de um novo tranchefile (imagem da direita)